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Na semana passada, o mundo parou pra ver o mugshot do ex-presidente americano e pré-candidato Donald Trump. Por aqui, os jornais deram também o maior destaque – foi capa da Folha, deu em todas as TVs. Não vou nem começar aqui a reclamar do fato de que a tal foto tem absolutamente zero relevância para o público brasileiro – afinal, seguimos recebendo as notícias internacionais principalmente pelas agências do Norte global, e nosso jornalismo segue uma visão colonial do que (e quem) importa no mundo.
Também no jornalismo, “apesar de termos feito tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais”.
Não. Quero me debruçar hoje sobre o gênio do ex-presidente americano e seus estrategistas – entre eles, como sabemos, estão Jason Miller, fundador da rede Gettr, e Steve Bannon, mentor de Eduardo Bolsonaro – que conseguiram, mais uma vez, pautar toda a imprensa, ganhar mais essa batalha da guerra cultural e ainda rir da nossa casa.
A tal da foto da ficha policial de Trump é todo o contrário do que se espera. Pense naquela foto do Chico Buarque, por exemplo, segurando uma plaquinha de identificação diante da polícia de São Paulo, que ilustra a capa do álbum Paratodos.
O mugshot de Trump mostra o setentão americano encarando a câmera, com um ar de rebeldia, o olhar furioso, desafiando aquela autoridade que está por detrás das lentes, neste caso personificado pelo xerife do condado de Fulton. É uma foto posada, ensaiada e calculada exatamente para vender a imagem que Trump queria.
Nada importa que se trate da primeira foto de um ex-presidente dos EUA acusado criminalmente.
Não importa que Trump tenha virado réu sob acusações de conspiração para defraudar o governo dos Estados Unidos e de conspiração para obstruir um procedimento oficial – ambos por causa da sua tentativa de reverter o resultado da votação no estado da Geórgia.
Não importa que 18 aliados seus estejam também respondendo à Justiça como cúmplices, incluindo seu advogado Rudy Giuliani.
Não importa que essa seja a terceira vez que Trump é indiciado apenas este ano; ele também virou réu no caso de roubar documentos secretos da presidência e levá-los para sua casa na Flórida e por pagar para a atriz Stormy Daniels não revelar sobre o caso que mantivera com ele durante as eleições de 2016.
Nada disso importa: a imagem do mugshot diz apenas que ele desafia o sistema.
É música para os ouvidos de marqueteiros, que ainda apostam na ideia de um rebelde lutando contra o sistema. É música para sua própria personalidade de mentiroso compulsivo que mente tanto que acredita nas próprias mentiras. É um episódio de gaslighting massivo, social, contra todo mundo que acredita que alguém que tenta se manter no poder através de um golpe de Estado deveria ser punido e não recompensado.
Mais uma vez, Trump consegue reverter tudo no que é o seu oposto.
A jogada de mestre aconteceu, como não poderia deixar de ser, nas redes sociais. Depois de mais de dois anos e meio sem postar um tuíte na rede que o notabilizou como populista digital – e apesar de ter negado retornar a ela quando Elon Musk o “desbaniu” da sua nova empresa –, Trump postou apenas uma imagem, justamente o seu mugshot, acompanhada das palavras “Election interference. Never Surrender” (‘Interferência nas eleições. Desistir jamais”). E um link para sua página de campanha.
O sucesso da ação de marketing foi tanto que Elon Musk mal se conteve: “10 milhões de visualizações por hora nesta imagem”, escreveu o dono do Twitter. O post recebeu 1,6 milhão de likes, foi retuitado mais de 460 mil vezes e recebeu 247 mil comentários.
Como não poderia deixar de ser, o mugshot foi também uma oportunidade de ganhar dinheiro. Depois de ter pago uma fiança de US$ 1 milhão, Trump já levantou mais de US$ 7,1 milhão em doações, sendo US$ 4 milhões apenas na sexta-feira, da seguinte à publicação da foto.
Ou seja: ele ainda saiu lucrando, e muito. Seu comitê de campanha já está vendendo camisetas, xícaras e seguradores de cerveja com a imagem.
Do outro lado, o Lincoln Project, um grupo republicado antitrumpista, também começou a vender copos com a cara do do ex-presidente e o acrônimo FOFO, que significa “Fuck around and find out”, algo como “faça merda a encare as consequências”, pela bagatela de US$ 55.
Ou seja, todo mundo lucra com o show de Trump.
E daqui pra frente, essa novela promete piorar. No começo do mês, estive em um evento com o professor Steven Levitsky, diretor do Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade Harvard e autor do famoso livro Como morrem as democracias. A uma plateia de centenas de pessoas no Masp, Levitsky afirmou que as instituições brasileiras lidaram muito melhor com Bolsonaro do que os Estados Unidos com Trump. Para ele, aqui, a ameaça à democracia parece ser uma coisa do passado.
Segundo sua análise, não só é provável que o republicano ganhe a disputa pela nomeação do partido, mas ele segue sendo um candidato fortíssimo, apesar de todos os casos criminais contra ele.
Antes do evento, perguntei a ele se não existe, nos EUA, nenhum mecanismo para impedir um réu criminal de concorrer à presidência. “Não existe. Ele pode inclusive ser eleito mesmo se estiver na prisão”, respondeu. Há até um precedente: mais de um século atrás, o líder sindical Eugene V. Debs fez campanha de dentro da prisão, onde fora encerrado por criticar a participação americana na Primeira Guerra Mundial. Só que Debs teve pouco mais de 3% dos votos, enquanto Trump tem apoio de mais de 40% dos eleitores americanos.
Seria mais um feito caótico, assustador e sem precedentes.
Tal cenário, tenho certeza, só anima Trump ainda mais.