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Uma mulher a menos

A demissão de Ana Moser e a saída de Rosa Weber têm um ar de humilhação diante do qual não deveríamos mais ficar caladas

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17 de setembro de 2023
06:00
Este artigo tem mais de 1 ano

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Passei o feriado com um gosto amargo que não cedeu nem com o sol nem com as chuvas periódicas que caíram no litoral sul de São Paulo. A notícia da demissão de Ana Moser do Ministério dos Esportes, com pouquíssimo barulho, como se fosse coisa corriqueira, se ligou dentro de mim à imagem de outra esportista que há apenas algumas semanas teve seu ápice profissional roubado pela ganância e luxúria masculina, a jogadora de futebol Jenni Hermoso, da Espanha, que, mal começou a celebrar o ouro da Copa do Mundo, título máximo do esporte ao qual dedicou a sua vida, foi violentada na frente de todo o mundo, ao ser beijada à força pelo então presidente da federação espanhola, Luis Rubiales. Durante dias, enquanto a federação e grande parte da imprensa espanhola ensaiaram um deixa-pra-la-é-só-uma-brincadeirinha, ouvi amigos homens me dizendo que a reação a esse “pequeno gesto” estava sendo exagerada.    

Jenni resistiu à pressão da federação para que ela assinasse uma declaração dizendo que o beijo foi consensual; resistiu à pressão feita sobre a própria família; e teve ao seu lado fãs, suas colegas jogadoras e seus colegas jogadores, até a suspensão de Rubiales. 

Mas o momento da vitória da sua primeira Copa do Mundo, esse não volta nunca mais. 

Assim como não volta, na carreira de Ana Moser, a possibilidade de chefiar as políticas públicas da sua área com uma visão democrática, de impacto social e avanço real para os brasileiros, sejam esportistas ou não. E ela estava fazendo um tremendo trabalho no ministério. 

Ana Moser foi uma grande ídola da minha adolescência, quando eu também sonhava ser jogadora de vôlei ao vê-la voar nas quadras. Eu achava lindo ver o seu saque, aquela força e a precisão, e pensava no quanto era possível conseguir, com dedicação, com seriedade. 

No dia 5 de setembro, ela foi substituída pelo deputado André Fufuca, cujo portfólio no esporte é absolutamente nulo, mas que carrega o apelido herdado do pai, prefeito em Alto Alegre do Pindaré, cidade do interior do Maranhão, e o hábito de dar a mão para ser beijada pelos subalternos, segundo o jornalista André Borges. Protegido do deputado Arthur Lira, agora representa o PP, do centrão, no governo.

Ao sair, Ana deixou o ministério com uma nota singela em que dizia ver “com tristeza e consternação a interrupção temporária de uma política pública de esporte inclusiva, democrática e igualitária” e relembrou que essa política foi, inclusive, parte das promessas de campanha. 

Uma mulher a menos. 

Da base de seguidores de Lula, nem um pio. Quem fez algum barulho foram apenas as outras ministras mulheres, que aplaudiram, elogiaram e a abraçaram pelas redes sociais não em desagravo, mas em reconhecimento pelo trabalho de uma grande profissional. Anielle Franco, (Igualdade Racial), Cida Gonçalves (Mulheres) e Esther Dweck (Gestão e Inovação) recuperaram o profissionalismo, seriedade, competência de Ana Moser. Elas sim enxergam.   

O amargo na minha boca vem ainda de outras mulheres que foram publicamente defenestradas por uma casta masculina para quem nosso sucesso existe apenas como derivado do sucesso deles; nossa ascensão, apenas por permissão deles; e nossa humilhação – bem, essa não existe. 

Porque mulher não tem honra.  

Lembro de Dilma Rousseff, sentada durante 12 horas e respondendo a cada um dos senadores raivosos que não faziam exatamente perguntas, apenas gritavam palavras de ordem segundo as quais ela era traidora, corrupta, manipuladora. Lembro da demissão de Soninha Francine, transmitida em vídeo pelo seu chefe, o então prefeito de São Paulo João Doria, que ainda a obrigou a ficar ali, de pé, ao seu lado, enquanto ele dizia para todos os eleitores que ela não era “dinâmica” o suficiente. 

E penso, mais que tudo, na ministra Rosa Weber

Penso no rito de humilhação lento e silencioso ao qual Lula a tem submetido; Rosa, ao ver seus últimos dias na corte, tem que encarar o fato de que na sua cadeira se sentará um homem, mais um entre os 168 ministros homens que já integraram o STF nos seus 132 anos de história.

Em um século e meio, foram apenas três mulheres ministras do STF.

Na terça-feira passada, faltando duas semanas para sua aposentadoria, Rosa liberou para votação o julgamento da descriminalização do aborto nas primeiras 12 semanas de gestação, para deixar registrado seu voto, como um dos dois membros integrantes da corte que tem um útero. Antes, ela chegou a aventar aos jornais que, se não houvesse tempo para a votação, deixaria seu voto registrado no plenário virtual, o que garantiria que ele conta. São as pequenas humilhações de Rosa, uma mulher que quer votar sobre o direito das mulheres ao seu corpo, sabendo que ela será a última durante décadas a sentar naquela cadeira e ter voz de decisão.

Dentre todas as cortes superiores, são 90 ministros e apenas 17 mulheres. A única corte suprema que tem representação relativamente mais igualitária é o Tribunal Superior do Trabalho, onde, dos 26 ministros, sete são mulheres. No STF e STJ, elas são 18%.

O pior de todos é o Superior Tribunal Militar (STM), que só tem uma mulher. A ministra Elizabeth Rocha, que tem dado maior parte dos votos que valem a pena naquela corte e que me disse, numa longa entrevista, que se acostumou a ser o “voto vencido” entre os colegas militares e os colegas civis – todos homens. 

Elizabeth foi importante, por exemplo, para condenar a brutalidade com que os militares assassinaram o músico Evaldo Rosa diante da mulher e do filho em 2018, disparando pelo menos 62 tiros de fuzil no carro da família. Elizabeth viu como a viúva, Luciana Nogueira, encarou os soldados e não deixou que eles se aproximassem da cena do crime, protegendo o nome e a reputação do marido, enquanto chorava dolorido diante das câmeras de TV. “A voz dela foi ouvida aqui no tribunal”, me disse a ministra, que se diz feminista na corte formada de homens fardados.     

A diferença que faz uma mulher a menos. 

 “Claro que tem sempre um ou outro que você percebe nitidamente a discriminação, mas eu relevei. Aliás, eu relevei, não, eu enfrentei, porque eu acho que são embates que todas nós, mulheres, enfrentamos”, ela me disse. “Isso não tem como fugir. Se você quer se projetar um pouco mais, se você busca uma ascensão profissional maior, se você faz escolhas trágicas para poder ascender profissionalmente, como eu fiz, abrindo mão da maternidade, não tem como fugir do embate.” 

Não sei se o embate vai resolver, mas talvez não haja outra saída.  

Quando as jogadoras da federação de futebol espanhola decidiram pedir demissão coletivamente até que a direção fosse demitida, boa parte da sociedade abraçou o slogan “se acabou”, um grito de revolta contra a dominação machista que não se importa em humilhar publicamente uma profissional no auge da carreira para saciar sua vontade e a vontade de outros homens.

Talvez seja a hora de retomarmos o antigo refrão feminista, ressignificado, para deixar claro para o homem que tem a caneta que não, não aceitamos nem uma mulher a menos na mais alta corte do país. 

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