JANEIRO DE 2019. Ainda é escuro quando uma multidão de palestinos se ajoelha entre as filas de vistoria do exército israelense para a primeira reza do dia. O relógio marca 5 horas de uma manhã congelante no galpão onde funciona a inspeção de Qalandia — um dos 572 checkpoints que Israel criou pelo território palestino e ao longo da barreira de separação, construída a partir de 2002 para isolar o país da Cisjordânia. As filas já não cabem na área coberta: invadem um extenso campo aberto onde os ventos deixam o frio ainda mais hostil. Cada um se esquenta como pode. Quase todos vestem longas jaquetas que alcançam os joelhos. Alguns apelam ao cigarro para suportar a espera. Os lenços protegem o pescoço e quase todos guardam as mãos nos bolsos. Pelo menos parou de chover.
Desde que a barreira foi erguida em 2002, palestinos são submetidos a uma rotina de inspeções, seja circulando em sua própria terra, seja para atravessar para Israel. As botinas de couro desgastadas e a sacola com a marmita pendurada no pulso revelam quem cruza a barreira para chegar ao serviço — os palestinos são força de trabalho barata em Israel, e o polo industrial do outro lado de Qalandia é o destino de muitos que ali estão. Outros milhares fazem a jornada até o coração de Jerusalém para estudar, visitar a família, ir aos hospitais da cidade ou frequentar a reza em Al-Aqsa, mesquita sagrada para os muçulmanos. No entanto, cruzar a barreira nem sempre é possível. É comum que a travessia seja interrompida indeterminadamente, ficando horas sem liberação, como era o caso daquela manhã de janeiro de 2019 presenciado pela reportagem.
Eu estive na região nos meses que sucederam a transferência da embaixada dos Estados Unidos em Israel para Jerusalém, em maio de 2018 — evento que acirrou a tensão na Palestina.
Durante três meses eu percorri a Cisjordânia para tentar entender os diferentes significados dessa ocupação para os povos da região. Conversei com estudiosos, ativistas, comerciantes e, principalmente, com palestinos que há décadas reivindicam mais direitos e dignidade.
Quatro anos depois, o mundo novamente acompanha horrorizado os desdobramentos do conflito, que já entra no seu 12o dia de intensificação de atos de violência. Desde a ofensiva do Hamas contra Israel no último dia 7 de outubro, mais de 1.300 israelenses morreram. Em Gaza, os bombardeios de Israel já vitimaram mais de 3 mil palestinos, sendo 853 crianças. As estatísticas são da ONU.
Mas distante dos holofotes, e menos suscetível às repercussões do noticiário, uma realidade dura é enfrentada cotidianamente pelos 3 milhões de palestinos que vivem sob ocupação militar na Cisjordânia há mais de 50 anos, caso da família Sabbagh, que conto a seguir.
Os 32 Sabbagh
Ghaleb Sabbagh tomava café da manhã quando duas batidas sutis na porta anunciaram a notícia que todos já antecipavam. Uma pequena carta, deslizada pelo vão entre a porta e o chão, alertava que a família estava oficialmente em processo de remoção da casa onde vivem há mais de 60 anos, no bairro de Sheikh Jarrah, em Jerusalém Oriental.
A decisão judicial de uma corte israelense dava um prazo de 20 dias para a família abandonar a residência. O local seria transformado num assentamento para colonos judeus, e os 32 Sabbagh que viviam ali teriam que achar um novo lar para morar.
Quem me apresenta à família é Ahmad, um pesquisador de campo de uma ONG israelense chamada Ir Amim, que atua com direitos civis em Jerusalém. Ahmad passa os dias conversando com famílias em risco de remoção. “Estamos pensando em articular a vinda de outros conhecidos, familiares e ativistas… eles querem levantar uma barraca na frente de casa e resistir aqui mesmo”, explica Ahmad.
Encontramos Ghaleb, um dos irmãos Sabbagh, chegando em casa do trabalho. Ele não está otimista. “Minha esposa está com problemas de saúde, tenho uma menina de 16 anos também. Como elas vão ficar?”
O drama que a família Sabbagh enfrenta se desenrola num contexto de colonização do território palestino por Israel. E a situação de Jerusalém é ponto-chave para entender essa história.
Pelo plano de partilha da Palestina aprovado pelas Nações Unidas em 1947, Jerusalém deveria ser uma cidade internacional, administrada pela ONU. Mas isso nunca aconteceu. A guerra de 1948 entre Israel e os países árabes da região levou à divisão da cidade. Israel tomou o controle da parte ocidental, enquanto a Jordânia passou a administrar a parte oriental.
Após a Guerra dos Seis Dias, em 1967, Israel passou a ocupar também as regiões de Cisjordânia e Gaza, e, em seguida, ainda anexou para si toda a cidade de Jerusalém.
A ONU aprovou uma resolução demandando a retirada de Israel de Jerusalém Oriental e condenando a aquisição de território por meios bélicos. Mas Israel nunca respeitou a resolução sobre essa divisão. E em 1980 o Parlamento israelense aprovou a “Lei Básica: Jerusalém Capital de Israel”, consolidando a anexação da cidade. Essa lei também foi contestada pela ONU de maneira unânime em diversas decisões do Comitê de Segurança e da Assembleia Geral do órgão.
As resoluções não reconhecem a Lei Básica e não aceitam nenhuma mudança nas fronteiras ou no status de Jerusalém desde 1967. As fronteiras de 67 são conhecidas como “linha verde de armistício” e são reconhecidas internacionalmente, hoje, para dividir toda a região da Palestina até que haja uma resolução definitiva para o conflito.
Exercer controle sobre Jerusalém é crucial para um dos principais objetivos de Israel na região: a colonização do território em disputa. Desde 2000, mais de um terço do território anexado foi expropriado dos palestinos para criar 11 grandes bairros para israelenses judeus, de acordo com as Nações Unidas. Mais de 7 mil palestinos foram diretamente afetados, com suas casas demolidas, em razão dessas iniciativas.
A colonização de um território por um poder de ocupação é considerada ilegal pela ampla maioria dos países que votam na ONU e é tida por muitos como um dos principais obstáculos para a paz na região. Hoje, aproximadamente 620 mil israelenses moram em assentamentos que se espalham por toda a Palestina — sendo 210 mil somente em Jerusalém Oriental.
Esse movimento de colonização é fortemente influenciado por grupos sionistas que pretendem a consolidação de uma “Grande Israel” — conceito que defende a anexação da Cisjordânia inteira, onde vivem atualmente quase 3 milhões de palestinos. Alguns colonos têm motivações religiosas: acreditam que é um direito bíblico ocupar a região que consideram sagrada. Outros migram por motivos ideológicos. No entanto, acredita-se que as vantagens econômicas que o governo israelense criou é o que mais impulsiona a colonização.
Alguns assentamentos são verdadeiras cidades para israelenses em pleno território palestino. No caso de Jerusalém, as colônias são criadas até mesmo dentro de bairros palestinos, para onde 2.800 israelenses já foram transferidos. Para tanto, o governo força remoções de palestinos — e a família Sabbagh é a bola da vez.
Abu Abid Sabbagh, o principal articulador da família, é um senhor de 72 anos, a pele parda contrastando com os cabelos grisalhos. Já está acostumado a receber jornalistas e autoridades para falar sobre o drama da remoção.
A casa hoje em disputa tem a forma de um grande cubo, construído a partir de blocos retangulares de pedra. Típico da arquitetura árabe, o material ajuda a manter o ambiente fresco durante o intenso calor dos meses de verão.
Abu Abid me convida para uma pequena sala e oferece um chá. Duas poltronas apontam para uma televisão antiga, sintonizada na Al-Jazeera, e o pequeno aquecedor elétrico, centralizado no cômodo, ajuda a manter o ambiente aconchegante.
Não é a primeira vez que os Sabbagh passam pelo risco de remoção forçada. A família chegou em Jerusalém na década de 1950, fugindo da guerra iniciada em 1948 entre Israel e países árabes. Até então, moravam em Jaffa, cidade vizinha a Tel Aviv, hoje território israelense. “Lá atrás não fomos removidos. Na verdade, eles estavam ameaçando nos matar”, conta Abu Abid. “Somos refugiados de Jaffa! Durante o Nakba.”
Nakba, ou “grande catástrofe”, é como muitos palestinos se referem à guerra que culminou na criação do Estado de Israel, em 1948, e que também deslocou uma população de mais de 700 mil palestinos, em fuga ou expulsos de suas comunidades. Como os Sabbagh, esses refugiados nunca tiveram direito a retorno e perderam todos os bens que foram deixados para trás.
“Mas eu ainda visito minha casa em Jaffa”, revela o senhor, alcançando algumas fotos na estante que mostram os irmãos durante uma visita ao antigo lar. “Todo mês eu tento passar lá e andar um pouco pelo bairro. Hoje moram duas famílias na casa. Eles sempre me perguntam por que eu continuo indo lá. Eu respondo: ‘Porque é minha casa, ora’.”
Já se passaram mais de 50 anos desde que a família foi expulsa de Jaffa. Os Sabbagh viveram seis anos de favor na casa de outros familiares, já em Jerusalém, até que em 1956 essa casa, em Sheikh Jarrah, lhes foi cedida pela ONU. Em 2019, a família estava novamente sob risco de ter que recomeçar a vida num outro lugar. A agonia permanece.
O terreno dos Sabbagh está sendo reivindicado por uma organização judaica que defende que a área era de propriedade de judeus até a guerra de 1948, quando passou para a administração da Jordânia. A empresa teria adquirido o direito sobre a terra e agora promove os assentamentos em Sheikh Jarrah.
Mesmo com a autenticidade da documentação frequentemente contestada, a Autoridade de Terras de Israel tem aceitado petições como essa para transferir propriedades situadas em Jerusalém Oriental aos israelenses. No entanto, o mesmo direito nunca foi dado aos palestinos para reivindicarem terras em Israel que deixaram na mesma guerra, como o caso dos Sabbagh.
A situação levou a Coordenação para Assuntos Humanitários da ONU a pedir o congelamento das ações de colonização. “Em muitos casos, incluindo Sheikh Jarrah, a remoção forçada de palestinos está acontecendo dentro de um contexto de criação e expansão de assentamentos israelenses, que são ilegais de acordo com as leis internacionais de direitos humanos”, diz o comunicado do órgão.
Não é algo que Israel pretende cumprir. O bairro é estratégico para as pretensões israelenses de manter Jerusalém “unificada”. Em 2021, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu disse, em discurso televisionado, que rejeita firmemente a pressão para não construir em Jerusalém”, fazendo menção aos assentamentos da região. Hoje, mais de 800 palestinos jerusalemitas estão em risco de remoção forçada em decorrência dessas iniciativas.
Do lado dos Sabbagh, o plano é resistir. “Grande parte da minha vida aconteceu aqui, meus sonhos se realizaram aqui. Todas as nossas histórias acontecem aqui”, diz Abu Abid. “Mas hoje minha família vai dormir pensando em como fazer para morar em outro lugar.”
Limite de armistício israelo-árabe de 1949 (verde) e área de construção de muro separatista (tracejado em duas cores)
Isolados
Vou à sede da Ir Amim para uma conversa mais ampla sobre a cidade que é sagrada para tantos povos. Quem me recebe é Betty Herschman, uma israelense formada em Harvard, então diretora para assuntos internacionais da ONG. “Jerusalém é um microcosmo do conflito Israel-Palestina. Tem todos os elementos acontecendo bem aqui, num pedaço pequeno de terra”, ela explica. “O que acontece em Jerusalém é também um gatilho para os acontecimentos relacionados ao conflito em toda a região da Palestina e, na verdade, em todo o mundo árabe. Qualquer solução viável para o conflito deve envolver a possibilidade de ambos os povos nacionais terem Jerusalém como suas capitais — Israel na parte ocidental e Palestina na oriental.”
Mas a realidade na cidade é bem diferente.
“De acordo com a lei israelense, Jerusalém é um só município. Mas no lado ocidental temos os israelenses, que são considerados cidadãos; já no lado oriental, os palestinos são considerados apenas ‘residentes permanentes’. Então há dois grupos nacionais vivendo com direitos bem diferentes”, conta Betty.
Israel concedeu a condição de residentes aos palestinos que viviam em Jerusalém no momento em que anexou a cidade inteira para si. É um tratamento diferente do que é dado ao resto da população palestina que vive na Cisjordânia, já que a residência assegura alguns direitos sociais e políticos que não são garantidos aos palestinos que moram na Cisjordânia ou em Gaza. “Por exemplo, se você é um residente de Jerusalém e é processado, você responde à corte civil, e não à militar, que é muito mais rigorosa”, explica.
Os palestinos residentes em Jerusalém vivem sob constante risco de ter a residência revogada — o que já aconteceu com mais de 14 mil pessoas desde 1967, segundo a ONU. A residência também não lhes dá o direito de comprar terras em Israel, tampouco permite a participação nas eleições nacionais. Na visão de Betty, a falta de representação política pode ter forte influência na maneira como as duas populações são tratadas. “A taxa de pobreza em Jerusalém Oriental beira os 80%. E, apesar de os Palestinos serem 38% da população do município, apenas algo em torno de 8% a 10% do orçamento é alocado para as áreas onde eles vivem.”
Segregados
A estrada de Jericó é uma via histórica. A importante rota comercial do território palestino unia Jerusalém às cidades do vale do Jordão e ao mar Morto. Mas hoje a enorme barreira de separação corta a via ao meio, transformando o que era uma estrada vibrante numa rua deserta.
“É muito difícil manter essa loja aberta. A barreira acabou com a gente”, lamenta Hasan, um comerciante de 63 anos, apontando com indignação para a muralha vizinha a sua loja.
A barreira começou a ser construída por Israel em 2002, sob o pretexto de garantir a segurança nacional. Na época, Israel vivia um cenário em que episódios de violência eram ainda mais frequentes, muito em razão da Segunda Intifada — um movimento de revolta dos palestinos contra a ocupação de seu território. No entanto, muitos questionam a real eficácia da barreira para a segurança dos israelenses e levantam a tese de que a construção pode ter outras motivações.
Dos 712 quilômetros de barreira previstos, 465 já foram erguidos. Com ela, Israel incorpora para si aproximadamente 9% da Cisjordânia, incluindo Jerusalém Oriental. Isso levou a Corte Internacional de Justiça, em 2004, a considerar a barreira ilegal, recomendando que fosse derrubada. Quase 20 anos depois, ela segue em construção.
“Essa barreira separa a gente de nós mesmos!”, protesta Hasan. “Tenho familiares e amigos que moram bem perto, mas do lado de lá. Da minha loja até a casa dos meus parentes, não levava mais que cinco minutos. Hoje demora uma ou duas horas para dar a volta para visitá-los.
Ao avançar sobre a linha verde de armistício para incorporar alguns assentamentos israelenses na Cisjordânia, a barreira acaba isolando— quando não dividindo — diversos bairros e vilas palestinas.
No caso de Jerusalém, Israel ergueu a barreira de modo a separar o município do resto da Cisjordânia. Ou seja, acabou com a continuidade territorial que a Palestina tinha com Jerusalém — e um símbolo desse isolamento é a estrada de Jericó, que é interrompida pela muralha. No entanto, alguns bairros palestinos do município, como os de Kafr Aqab e Shufaat, ficaram para o lado de fora da barreira, isolando mais de 150 mil palestinos jerusalemitas de sua própria cidade.
Os clientes de Hasan são apenas poucos transeuntes, que abastecem com mantimentos no caminho de casa. Mas sua loja já foi motivo de orgulho para a família. “Meu pai abriu esse mercadinho em 1962. Fazia muito sucesso, tanto que mesmo depois de ter metade da loja bombardeada durante a guerra de 67 nós conseguimos reconstruir”, revela Hasan. “Somos nove irmãos, e com essa loja meu pai sustentou toda a família. Era um ótimo negócio. Não é mais.”
Assim como os Sabbagh, a família de Hasan também foi obrigada a fugir durante a guerra de 1948. Alguns parentes migraram para outras cidades da Cisjordânia, outros foram para Síria, Líbano e Jordânia. “Mas meu avô veio para Jerusalém. Eu nasci em Jerusalém, me diverti na infância em Jerusalém, casei em Jerusalém e vou morrer em Jerusalém.”
A barreira de separação que condenou tantas lojas como a de Hasan é apenas uma das faces do planejamento urbano que segrega os palestinos. Desde 1967 as duas partes da cidade — ocidental e oriental — são administradas por Israel, mas na prática são dois locais completamente diferentes.
Se na parte ocidental de Jerusalém as ruas são pavimentadas, do lado de cá o asfalto é irregular, quando não inexistente. Calçada é coisa rara. Também são poucas as vias que interligam bairros palestinos. Mas um dos cenários que mais chamam atenção são os extensos campos inabitados que se espalham por Jerusalém Oriental. A densidade populacional dos palestinos é duas vezes maior que a dos israelenses da mesma cidade, mas não é por falta de espaço.
O governo israelense arrendou diversos campos e passou a considerá-los “parques nacionais” ou “áreas verdes”— onde construir é proibido. Juntos, esses terrenos compõem praticamente 22% de Jerusalém Oriental. Quando se somam a isso os outros 35% que foram confiscados para construção de colônias e os 30% que Israel ainda não destinou, o resultado é que hoje apenas 13% da cidade é alocada para os palestinos.
A Coordenação de Assuntos Humanitários da ONU classifica a obtenção de autorização para construir como “praticamente impossível”. Em função disso, ao menos um terço dos palestinos passou a construir ou reformar suas casas sem a autorização do governo, e não raro são removidos ou têm suas edificações demolidas. Desde 2000 já são mais de 1.700 demolições na cidade. Para muitos, a opção que resta é sair.
Expulsos
A dificuldade em sustentar uma vida em Jerusalém faz com que muitos palestinos jerusalemitas migrem para os bairros do lado de fora da barreira. É o que aconteceu com a família Moain Odeh, advogado palestino, morador do bairro de Kafr-Aqab, situado no extremo norte de Jerusalém e isolado pela barreira de separação. Combinamos um encontro para ele me mostrar a situação do bairro, onde vive com sua esposa e filha.
A paisagem em Kafr-Aqab destoa do resto de Jerusalém Oriental, contrasta ainda mais com o desenvolvimento da região israelense. Do lado de cá da barreira, os prédios estreitos se espremem e permitem pouco espaço de circulação entre as construções. Levantados diretamente sobre chão batido, muitos estão inacabados, com enormes estruturas de metal ainda sustentando a obra em andamento, que compõem a trilha sonora do bairro, que cresce vertiginosamente.
Até 2003 a população de Kafr-Aqab era de aproximadamente 10 mil palestinos. Aos poucos o bairro começou a sofrer uma explosão demográfica: em apenas 15 anos, sua população quadruplicou. “Os palestinos viram que aqui conseguiriam construir sem a necessidade de permissão, sem as licenças exigidas pelas autoridades, e isso causou uma verdadeira explosão desses bairros”, conta Moain. “Você vê todos esses prédios, mas nenhuma infraestrutura na região. Olha essas ruas, está tudo destruído! — narra, indignado, enquanto conduz o carro ladeira acima.
Apesar das incontáveis construções, Kafr-Akab parece um bairro fantasma durante os dias. A maioria dos moradores está no centro de Jerusalém ou em outras cidades de Israel, onde encontram trabalho. Por aqui, somente caminhões, tratores e escavadeiras.
Na visão do advogado, o fenômeno é obra pensada. “Israel tenta forçar a transferência do maior número de palestinos para cá quando não nos deixa construir nos bairros de dentro da barreira. A ideia deles é reduzir o número de palestinos em Jerusalém o máximo possível.”
Diversos ativistas pelos direitos humanos e civis acreditam que, ao estabelecer os limites de Jerusalém no momento da anexação, Israel adotou uma política de agregar o máximo de terras com o mínimo de palestinos possível. Em função disso e dos sucessivos conflitos na região desde o início do século, a população árabe em Jerusalém, que era de 45% em 1922, passou a ser de apenas 26% em 1967, ano do início da ocupação.
O Comitê Gafni, uma iniciativa interministerial israelense, estabeleceu em 1973 que o governo deveria adotar políticas visando manter o balanço demográfico de então. Mas, com uma taxa de crescimento populacional maior, hoje os árabes já representam 40% dos habitantes de Jerusalém.
Parlamentares israelenses estão tratando de desequilibrar a balança. Uma lei que tramitou no Parlamento em 2017 pretendia remodelar as fronteiras de Jerusalém para “conter uma ameaça demográfica” à maioria judaica na região. Outra legislação, a lei da “Grande Jerusalém”, tinha o objetivo de transferir cinco assentamentos na Cisjordânia para a jurisdição de Jerusalém. Um dos autores do texto, o então ministro dos transportes Yisrael Katz, defendeu que a medida “fortaleceria Jerusalém adicionando milhares de judeus residentes para a cidade, enquanto enfraqueceria a influência árabe na capital”, conforme reportado pelo jornal Haaretz em 2017.
Para Betty Herschman, medidas como essas têm um objetivo claro. “O planejamento e a construção da cidade é a maneira primordial de consolidar o controle israelense de Jerusalém Oriental”, diz. “A razão para criar todos esses assentamentos, de negar permissão de construção aos palestinos, as revogações da condição de residentes, a barreira de separação que deixa um terço da população palestina para fora da cidade… a razão para todas essas políticas é consolidar o poder e o controle de Jerusalém Oriental. De todas as maneiras possíveis.”
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A bandeira e o futuro
Faltando apenas uma semana para o fim do prazo para abandonar a casa, os advogados da família Sabbagh trouxeram uma notícia carregada de esperança: eles conseguiram na Justiça uma paralisação no processo de remoção. Mas a estratégia da família é seguir divulgando a situação, e a primeira opção sempre é ir para as ruas.
Na Palestina, os protestos acontecem semanalmente, espalhados por todo o território. Dois gritos nunca faltam: “Liberte a Palestina!” e “Fim da Ocupação já!”. Palavras de ordem que se unem às reivindicações locais das famílias de cada comunidade.
Nesta tarde ensolarada de inverno em Sheikh Jarrah, o clima tranquilo do ato contra a remoção dos Sabbagh foi interrompido pela aproximação de três viaturas da polícia israelense. Os manifestantes, que não passavam de cem, exibiam seus cartazes numa pequena praça do bairro, quando os policiais encurralaram o grupo.
Um policial os encara um a um, bem de perto. Num movimento brusco, ele puxa a bandeira palestina de um jovem rapaz, o que desperta um princípio de confusão. O jovem que empunhava a bandeira é acudido pelos companheiros, que tentam ajudar o manifestante a segurar o manto, sem sucesso. Os policiais logo deixam o grupo e caminham em direção às viaturas. Antes de entrar no carro, o confiscador levanta sutilmente a bandeira conquistada, embolada no próprio punho.
Naquela semana, as passeatas marcaram também o Dia da Terra na Palestina. Milhares de palestinos estiveram nas ruas ou veiculando mensagens nas redes sociais. Todos da família de Moain e de Hasan, inclusive.
Hoje, os Sabbagh ainda aguardam um desfecho do processo de remoção, e acompanham com preocupação a situação dos parentes em Gaza. Eles tiveram a casa bombardeada e estão abrigados numa escola da Agência das Nações Unidas para Refugiados.
Com o acirramento do conflito, a violência chegou também a Jerusalém e Cisjordânia de maneira geral. Os protestos tomaram conta das ruas, com atos contra a violência e o bloqueio a Gaza, e pelo fim da ocupação militar. Para muitos, um cenário cada vez mais distante.