Quer receber os textos desta coluna em primeira mão no seu e-mail? Assine a newsletter Brasília a quente, enviada às terças-feiras, 8h. Para receber as próximas edições por e-mail, inscreva-se aqui.
A Polícia Federal (PF) enfrentou condições das mais adversas na investigação sobre os mandantes do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ) e de seu motorista, Anderson Gomes.
Quando o inquérito foi aberto, em 21 de julho de 2023, já haviam se passado cinco anos e quatro meses desde o crime; uma investigação anterior da Polícia Civil fora “sabotada” por membros da própria Polícia Civil, segundo a PF; e pelo menos três pessoas que poderiam esclarecer pontos do plano do homicídio foram assassinadas depois do crime contra Marielle (Edmilson da Silva de Oliveira, o Macalé, morto a tiros em 2021, André Luiz Fernandes Maia, assassinado em 2018, e o ex-capitão da PM Adriano da Nóbrega, em 2020, morto pela Polícia Militar da Bahia).
O tempo numa investigação sobre homicídio é crucial. Conforme os dias passam, os indícios no local do crime se perdem, as testemunhas podem ficar com mais medo de falar ou apenas se confundem. Dados fundamentais são desperdiçados. As empresas de internet e de telefonia não estão obrigadas, por lei, a guardar indefinidamente seus registros (prazos máximos são, respectivamente, de seis meses a um ano e de cinco anos).
“Numa investigação instaurada para apurar crimes de homicídio, a janela de oportunidade para a captação de vestígios e demais elementos de convicção é compacta, razão pela qual se torna crucial sua captação no decorrer das chamadas horas de ouro da investigação, sob pena de inviabilização da investigação de modo a torná-la um cold case [arquivo morto]”, escreveram, no relatório final, os delegados da PF que conduziram a investigação sobre os possíveis mandantes da morte de Marielle.
É preciso levar em conta essas difíceis circunstâncias na hora de analisar o relatório final da PF divulgado neste domingo (24) por ordem do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes.
O relatório foi recebido com entusiasmo pelos meios de comunicação. Ecoando palavras do ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, que durante entrevista coletiva à imprensa declarou que “neste momento” os “trabalhos foram dados como encerrados”, fixou-se na opinião pública uma sensação de dever cumprido.
Boa parte da aceitação deriva de uma série de consistentes descrições feitas pela PF sobre os supostos mandantes e o papel combativo de Marielle na Câmara de Vereadores do Rio. É apresentado um alentado panorama das atividades dos irmãos Brazão, o deputado federal Chiquinho Brazão (ex-União Brasil) e o conselheiro do Tribunal de Contas do Estado Domingos Brazão, além de novas e importantes luzes sobre o ex-diretor da Polícia Civil do Rio Rivaldo Barbosa de Araújo Júnior.
O relatório recupera corretamente e dá volume ao trabalho legislativo de Marielle em prol de famílias de baixa renda no tema da ocupação do solo, em detrimento dos interesses de milicianos e do grupo político dos supostos mandantes.
“Este posicionamento a colocava, assim como os demais vereadores posicionados à esquerda do espectro político, em contraposição frontal às políticas de ocupação de solo urbano encampadas por Chiquinho Brazão, com destaque para o PLC n.º 174/2016, […] idealizado para flexibilizar regras de regularização sem considerar questões sociais, urbanísticas e ambientais, favorecendo especialmente loteamentos e condomínios de classe média e alta em áreas controladas pela milícia”, diz o relatório.
A PF insere os Brazão em um contexto maior de violência e dominação de território. “Neste sentido, constata-se que a interação da Família Brazão com grupos paramilitares é intensa e se destaca na Zona Oeste do Rio de Janeiro, notadamente nos bairros de Jacarepaguá, Tanque, Gardênia Azul, Rio das Pedras, Osvaldo Cruz e arredores. […] Neste sentido, observa-se que Família Brazão goza de especial influência na comunidade de Rio das Pedras, um enclave geográfico controlado por organização criminosa do tipo milícia há mais de duas décadas.”
A relação entre voto e áreas controladas por milícias, que aliás inclui duas citações a uma reportagem da Agência Pública, dá uma dimensão comprovável das atividades políticas dos Brazão. A partir desse quadro maior, chega-se à questão do mando do crime.
Os indícios mais eloquentes da participação dos Brazão citados pela PF estão contidos na delação do ex-PM Ronnie Lessa, que representou um ponto de virada na investigação. A delação é considerada apenas um meio de obtenção da prova. Por isso, é necessário que a polícia realize diligências para confirmar, de todas as formas possíveis, aquilo que o delator afirma.
Nesse ponto, a investigação do caso Marielle tem as suas principais confirmações e lacunas. O peso dessas variáveis para a formação de uma convicção depende de quem as lê. O relatório final demonstra as inúmeras e exaustivas tentativas de confirmação de dois anexos da delação de Lessa que tratam exclusivamente da morte de Marielle (outros anexos, que tratariam de outros crimes, permanecem sob segredo de Justiça).
O Anexo I trata da “cadeia de mando e a motivação do crime”. O Anexo II fala dos “atos preparatórios, execução e pós-crime”.
Lessa contou que, a propósito do crime, esteve reunido com os irmãos Brazão três vezes (duas antes e uma depois do assassinato de Marielle), sempre na companhia do ex-sargento da PM Edmilson Macalé. A PF conseguiu comprovar que uma das supostas reuniões ocorreu “a poucos metros” da casa de Domingos na Barra da Tijuca. Lessa não fez ou não apresentou gravações de tais conversas. Ao final da apuração, não foi possível comprovar, por meio dos registros telefônicos disponíveis ou por câmeras de segurança (tantos anos já se passaram), por exemplo, que os Brazão, Lessa e o já falecido Macalé estiveram juntos nos locais indicados pelo delator.
A PF age corretamente ao deixar transparente, no próprio relatório, até onde conseguiu chegar com a sua investigação, na velha máxima de que o melhor detergente é a luz do sol. Os delegados escreveram, por exemplo, que, “não obstante a escassez de provas diretas decorrentes da natureza clandestina das tratativas que Ronnie Lessa alega ter mantido com Domingos e Chiquinho Brazão, é possível inferir que suas declarações sobre o motivo que teria ensejado a morte da vereadora Marielle Franco se mostram verossímeis diante dos dados e indícios ora apresentados”.
A exatidão de alguns pontos da delação de Lessa é discutida em outras partes do relatório. Se não há confirmação total, há muita proximidade. A palavra verossimilhança é usada dez vezes; verossímil, dez; e verossímeis, mais dez. A palavra inferência aparece dez vezes; a expressão “é possível inferir”, mais três. Em vez de esconder, a PF debate os limites da sua apuração no documento, o que não o diminui, mas sim colabora para a sua credibilidade.
Outros pontos da delação de Lessa, se não foram corroborados pela PF com cem por cento de certeza, ao menos ficam muito próximos disso.
Lessa disse, por exemplo, que, no suposto primeiro encontro marcado para tratar da execução de Marielle, Domingos Brazão era “o mais verborrágico”. Ele teria dito que um “infiltrado” nas “fileiras do PSOL” a fim de “levantar informações internas do partido”, de nome Laerte, lhe teria dito que Marielle “em algumas reuniões comunitárias pediu para a população não aderir a novos loteamentos situados em áreas de milícia”. Essa afirmação surgiu vinculada ao plano do assassinato, mas Lessa evitou avançar sobre o motivo do crime, pois, como executor, entendeu que não lhe cabia debater a motivação.
Lessa afirmou também que, no dia da emboscada contra Marielle, em 14 de março de 2018, ele recebeu de Macalé, por telefone, informações sobre a agenda e o deslocamento previsto da vereadora. Tais dados, segundo Lessa, teriam sido passados a Macalé por uma pessoa identificada como Major Ronald.
A PF primeiro foi atrás de informações sobre o “infiltrado”, identificado posteriormente como Laerte Silva de Lima. Seu nome apareceu no noticiário da imprensa ainda em 2020.
A PF pesquisou os achados da Operação Intocáveis, que levara Laerte à prisão ao lado de Marcus Vinicius Reis dos Santos, o Fininho, e Ronald Paulo Alves Pereira, o Major Ronald, “entre outros suspeitos de integrarem o grupo militar responsável pela exploração de serviços e afins na localidade de Rio das Pedras”. De acordo com a PF, os autos da investigação demonstram inúmeros contatos de Laerte com Fininho, que por sua vez era “o vínculo direto entre os Brazão e a Comunidade de Rio das Pedras, área na qual a família era eleitoralmente soberana”.
Em outra investigação, a Operação Nevoeiro, a PF verificou que “é possível aferir que, no dia 6 de março de 2018, a uma semana do delito, o deslocamento de antena do terminal vinculado a Major Ronald é compatível com a agenda de Marielle Franco na Universidade Cândido Mendes, então situada na Rua da Assembleia, n.º 10, Centro, Rio de Janeiro/RJ”.
Além disso, no mesmo dia 6, segundo a PF, “o deslocamento de Major Ronald é compatível com o local no qual Marielle, Anderson e Fernanda foram emboscados no fatídico dia 14/03/2018, o que denota a ideia de que Major Ronald teria sido um dos responsáveis pelo levantamento de informações da rotina de Marielle para a horda, o que converge com a dinâmica narrada por Ronnie Lessa, especificamente no que se refere à ligação recebida por Macalé ao meio-dia do dia 14 de março”.
Presos desde 2020, Laerte e Ronald foram contatados pela PF, mas não indicaram disposição de colaborar com a investigação.
Em outro ponto importante da delação de Lessa (já que Domingos Brazão alega não conhecer Lessa), o ex-PM disse que conheceu os Brazão mais de 20 anos atrás por intermédio de um homem chamado Santiago, o Gordo. Ele às vezes frequentava, junto com Macalé, a casa de Gordo na Estrada Comandante Luís Souto, que se tornara um ponto de encontro de criadores de passarinhos. Havia mesa de sinuca e cerveja. Ela era contígua a um “haras da família Brazão”, que seria administrado por um cunhado de Chiquinho.
A PF fez diligências para confirmar essas informações. Localizou a ex-mulher de Gordo, já falecido, que confirmou Lessa e Macalé como frequentadores do local e que seu ex-marido, Santiago, era muito próximo do ex-PM. Ela disse não se recordar de um “evento específico” que tivesse envolvido Lessa e Domingos Brazão no mesmo local. Mas a PF lembra que o contato mais frequente de Lessa era com Macalé. Confirmou ainda a ligação dos Brazão com criação de passarinhos.
Em outro trecho da delação, Lessa disse que a contrapartida para o assassinato de Marielle, para ele e Macalé, seria ganhar “um loteamento a ser levantado nas imediações da Rua Comandante Luís Souto”. O outro delator do caso, Élcio Queiroz, já dissera que Lessa prometeu “lhe doar cinco lotes pelo crime na região invadida da Gardênia Azul”.
A PF solicitou uma análise técnica da perícia criminal federal. Em laudo, a perita indicou que, embora existam “restrições de cunho normativo e ambiental, é possível a implantação de loteamentos nas áreas mencionadas pelo colaborador Ronnie Lessa”.
Dados aparentemente laterais como esses ajudam a robustecer a narrativa feita pela PF no relatório e a própria delação de Lessa.
Embora o ministro Ricardo Lewandowski tenha dito que “trabalhos foram dados como encerrados” naquele “momento”, nenhum caso é considerado acabado até uma decisão judicial final, o que ainda está muito longe de ocorrer no caso Marielle. O relatório é apenas a primeira etapa do processo judicial (ainda não está claro se haverá um desmembramento do processo, pois há pessoas com e sem foro especial por prerrogativa de função).
Relatórios policiais sobre um crime funcionam como uma “verdade policial” que servirão, mais adiante, na hora da definição de uma “verdade jurídica”. Quando um crime já foi cometido, a tarefa que cabe ao sistema policial-judicial é reconstruir o evento da melhor maneira possível, usando todas as ferramentas à disposição. Ou seja, o relatório final de um inquérito policial não representa “a verdade”, mas sim o resultado do trabalho que um grupo de policiais construiu, sabendo que haverá um escrutínio alheio, para chegar a uma versão mais próxima possível do que eles entenderam ser a verdade dos fatos. Esse relatório será então debatido, desconstruído, avaliado e reavaliado por todos os lados durante o processo.
Por isso é um pouco inútil quando a discussão caminha para saber se uma pessoa é “culpada” ou “inocente”. A pergunta mais útil a ser feita é se a condenação ou a absolvição ocorreu acima de qualquer dúvida razoável sobre a autoria do crime. E se o juiz ou o tribunal do júri realmente levaram em conta todos esses elementos de prova na hora de decidir pela condenação ou pela absolvição.
Para os lados da polícia, o trabalho mais complicado foi concluído, mas para o conjunto da sociedade, em especial sempre para a família da vítima, o caso Marielle seguirá uma pauta de constante acompanhamento e preocupação, até seu desfecho final em juízo.