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Distrair, protelar e desmontar: as táticas da indústria da carne para evitar regulações

Estudo revela como as 22 maiores empresas do setor, como a JBS, agem para gerar dúvidas e escapar de ações climáticas

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2 de agosto de 2024
06:00

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Há algumas semanas citei aqui neste espaço as articulações e estratégias de empresas de petróleo para não apenas negar e desinformar sobre a emergência climática, mas também para barrar alternativas limpas. Elas não inventaram essas artimanhas. Tampouco estão sozinhas. A indústria de carne e leite faz igualzinho. Talvez até pior, porque tenta dizer que é, na verdade, muito certinha e sustentável. Não é.

É o que aponta um relatório divulgado recentemente pela Changing Markets Foundation, que faz investigações sobre práticas irresponsáveis a fim de incitar mudanças nos mercados rumo a ações mais sustentáveis. Segundo o levantamento, as grandes empresas mundiais de carne e laticínios usam táticas para “protelar, distrair e desmontar ações que poderiam transformar o sistema alimentar, ressuscitando táticas usadas no passado por empresas dos setores de fumo e de combustíveis fósseis”.

O trabalho analisou a influência das 22 maiores empresas do setor, como Nestlé, Danone, JBS e Marfrig, e constatou que elas têm sido amplamente bem-sucedidas em convencer os políticos da “excepcionalidade agrícola”, conseguindo concessões, exceções e adiamentos em ações climáticas no setor.

“​​Em diversos países, a indústria conseguiu convencer os formuladores de políticas – como na fábula do burro empacado – a dar recompensas, ou cenouras, por condutas adequadas, deixando de lado as punições por condutas inadequadas ao regulamentarem as emissões agrícolas”, aponta o documento “Os novos mercadores da dúvida” (link do resumo executivo em português). 

“Assim, qualquer mudança nas práticas agrícolas precisa ser voluntária e depende de incentivos financeiros adicionais, enquanto os grandes subsídios públicos que o setor já recebe permanecem fora do alcance de qualquer reforma”, continua.

O título do trabalho faz uma referência ao livro Mercadores da dúvida, em que os historiadores Naomi Oreskes e Erik Conway descrevem como “meia dúzia de cientistas de alto nível, com amplas conexões políticas, conduziu campanhas eficazes para enganar o público e negar conhecimento científico bem estabelecido ao longo de quatro décadas”

Esses cientistas desenvolveram toda uma metodologia para, inicialmente, negar os riscos do tabaco à saúde, que avançou depois até produzir muita desinformação que alimentou o negacionismo sobre os perigos das mudanças climáticas. Uma escola baseada na geração de dúvidas seguida à risca pelo agronegócio, em especial por essas grandes empresas de carne e laticínios, como mostra o novo estudo. 

Na prática, relata o trabalho, o que se vê do setor são “compromissos climáticos voluntários, greenwashing (‘banho verde’) e investimentos em publicidade em vez de soluções de baixo carbono”. Para conseguir isso, as empresas capricham no relacionamento político por meio de doações eleitorais e muito dinheiro gasto em influência e lobby. Há, ainda, assim como aconteceu com o tabaco e com as mudanças climáticas, um movimento de cooptar cientistas por meio de financiamento de pesquisas para gerar dados favoráveis às empresas.

“O setor nos distrai com a cortina de fumaça de metas climáticas voluntárias, produtos ecologicamente corretos e investimentos aparentemente ambiciosos em tecnologias de redução de emissões, enquanto, nos bastidores, mobiliza vultosos recursos para protelar e desmontar qualquer legislação ambiental progressista”, descreve o documento. Qualquer semelhança com o que a gente observa no Brasil não é mera coincidência.

(Aliás, pausa para um momento merchant: mostrei como essa tática é adotada pelo agronegócio brasileiro no segundo episódio do podcast Tempo Quente.)

Por sua importância não apenas no agronegócio, na produção mundial de carne, na relação entre o desmatamento e o avanço da pecuária, mas também pelo poder político das empresas brasileiras, o país mereceu um “estudo de caso” no relatório, com destaque para a atuação da bancada ruralista no Congresso, a Frente Parlamentar da Agropecuária e a inteligência por trás dela, o Instituto Pensar Agro (IPA). 

“O lobby do agronegócio no Brasil trabalha arduamente para manter a situação favorável e aumentar sempre seus lucros, com pouca fiscalização”, aponta o relatório. “Os interesses do setor estão profundamente imbricados na formulação de políticas agrícolas brasileiras.”

Além da atuação nos bastidores da política, o relatório descreve atuações do setor também na tentativa de mudar a percepção do público, como a campanha “o agro é pop” e a implementação de programa que tenta “criar empatia pelos produtores” em escolas e influenciar mudanças no material escolar. 

Fora todo o greenwashing, por meio do qual as empresas gastam muito mais com propaganda dizendo que são verdes do que realmente com ações para reduzir seus impactos socioambientais e suas emissões de carbono.

Toda essa enganação não tem passado despercebida e já está trazendo reveses para as companhias. Em fevereiro deste ano, a procuradora-geral de Nova York, Letitia James, entrou com um processo contra a JBS alegando que a empresa faz declarações enganosas sobre os seus esforços para reduzir as emissões de gases de efeito estufa.

No processo, James disse que a JBS “utiliza lavagem verde e declarações enganosas para capitalizar o desejo crescente dos consumidores de fazer escolhas pró-ambiente”. Segundo ela, as promessas de “emissões líquidas zero” até 2040 feitas pelas empresa não são factíveis porque ainda “não existem práticas agrícolas comprovadas para reduzir as suas emissões de gases com efeito estufa”.

Coincidência ou não, todo o esforço que a JBS tem feito de abrir o capital na Bolsa de Nova York até agora não deu resultado. Há mais de um ano o processo de IPO está em avaliação no SEC (a comissão de valores monetários americana).

Um levantamento feito pela organização Mighty Earth, que tem advogado para que a JBS não consiga concluir o processo sem antes promover mudanças efetivas para reduzir suas emissões, indica que a “pegada climática” da empresa, individualmente, equivale à da Espanha. As emissões de gás metano de todo o gado que alimenta a JBS excedem às de França, Alemanha, Canadá e Nova Zelândia juntas e equivalem à metade de todas as emissões de metano da agricultura norte-americana. 

“A JBS é o maior impulsionador corporativo da destruição da natureza”, define Glenn Hurowitz, da Mighty Earth. Está mais do que na hora de ser cobrada por isso.

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