A poucos meses das eleições, um pré-candidato já começou a buscar os votos dos moradores da zona oeste do Rio de Janeiro. Concorrendo ao terceiro mandato na Câmara, Felipe Michel, do Partido Progressista (PP), já desfila com uma camiseta verde escrita “Como vai seu bairro? Reclame aqui”. O autointitulado “síndico do Rio” gravou um vídeo em uma nova linha de ônibus em Campo Grande, que teria sido conquistada graças ao seu mandato.
Além da linha de ônibus, o mandato de Felipe Michel realizou outro feito: desde 2021, o vereador tem Marcelo Bianchini Penna trabalhando em seu gabinete. Penna, cedido pela prefeitura do Rio, é ex-assessor dos irmãos Chiquinho e Domingos Brazão e um dos elementos que comprovariam a relação da família Brazão com a grilagem de terras e a milícia, segundo o relatório da Polícia Federal (PF) que culminou com a prisão dos irmãos em maio deste ano.
Penna atuou em defesa dos moradores da Vila Taboinha, em Vargem Grande, na região da zona oeste, que haviam ocupado um pedaço de terra em 2007. Segundo a PF, o esquema de grilagem no Rio de Janeiro funciona assim: alguém poderoso, como um empresário ou político, apoia a invasão de terras, ajuda a regularizá-las e, na sequência, compra os terrenos dos moradores por um preço bem abaixo do valor real.
No ano seguinte à ocupação, testemunhas ouvidas na CPI das Milícias apontaram o nome dele como conhecido de milicianos na zona oeste, em Jacarepaguá. Em 2009, Penna acabou preso na Operação Leviatã 2, que desarticulou a milícia Águia de Mirra, em 2009.
Apesar do currículo, o vereador Felipe Michel conta com Penna em seu gabinete há três anos. Em 2023, trocou de cargo e passou a integrar a comissão de auxiliar de gabinete. Atualmente, o salário do assessor é de R$ 10 mil.
Por que isso importa?
- Segundo a investigação da Polícia Federal, o advogado Marcelo Bianchini Penna, que é asessor do vereador Felipe Michel, é um elo entre os irmãos Brazão, acusados pelo assassinato de Marielle Franco, e a grilagem de terras na zona oeste do Rio de Janeiro.
A amizade entre eles parece ter se fortalecido nos últimos dois anos. Nas redes pessoais de Penna, em abril de 2022, ele postou uma foto com o vereador, a quem chamou de irmão. Naquele mesmo ano, participou da campanha de Felipe Michel a deputado estadual – ele recebeu quase 30 mil votos e ficou como suplente do PP.
Segundo fontes consultadas pela Agência Pública, as prisões e mortes recentes desencadeadas, principalmente, por conta das investigações do caso Marielle Franco, abriram um vácuo no submundo do crime fluminense. E novos atores agora disputam esse legado político e territorial deixado por eles – tanto pela família Brazão quanto por outros milicianos presos ou assassinados. De acordo com fontes da PF, a nomeação de Penna aponta uma cultura entre os parlamentares de pedir favores a seus colegas, para “abraçarem os amigos” e não deixá-los desamparados.
A reportagem procurou Felipe Michel que, via assessoria de imprensa, disse que o assessor é “servidor público municipal cedido para a Câmara” e que, desde que tomou, em 2016, “posteriormente à sua nomeação, não teve nenhuma atitude que o desabonasse”. A assessoria ainda informou que sua única relação com Chiquinho Brazão foi “ser seu colega de Câmara”.
Já Marcelo Penna, também via assessoria de imprensa do vereador Felipe Michel, informou que ele e o pai tinham, entre 1990 e 2000, o “maior escritório de advocacia de Jacarepaguá” e que “a família Brazão foi cliente, apenas isso”, sem “mais nenhum vínculo” com eles desde 2016. “Éramos advogados de gente humilde, não de grileiros, fato provado e arquivado sem cometimento de crime”, disse.
A estreita ligação entre as famílias Penna e Brazão
Em maio de 2007, a Debret, uma empresa de construção, abriu processo para impedir ocupação ilegal em uma de suas áreas em Vargem Grande. Segundo eles, 15 pessoas haviam entrado na terra, a fim de expandir a favela, e contavam com a proteção armada de milicianos de Rio das Pedras. A área ocupada ganhou o nome de Vila Taboinha.
Em março do ano seguinte, a Justiça concedeu liminar para expulsar os moradores de lá. Representados por uma associação de moradores, eles recorreram da decisão. O principal advogado deles era Marcelo Bianchini Penna – mas o pai dele, César Augusto Rodrigues Penna, também aparecia como um dos procuradores da associação.
A imprensa descobriu que Penna trabalhava, desde maio de 2006, como assessor de Domingos Brazão, então deputado estadual do Rio de Janeiro pelo antigo PMDB. À época, Penna negou e disse ser apenas “filho de um ex-vereador”.
Eleito em 1988, o dr. César Pena, como era conhecido o pai de Marcelo, atuou apenas durante uma gestão, entre 1989 e 1993. Ao longo do mandato, propôs projetos de lei voltados para bairros da zona oeste, como Campo Grande e Jacarepaguá. Um deles foi uma tentativa de transformar em área ambiental um trecho da rua Professor Henrique Costa, na Taquara. Hoje, um conjunto de prédios residenciais compõe a área do PL arquivado de Pena.
Anos depois, em 2008, quando pai e filho atuavam pela permanência das famílias na Vila Taboinha, a Corregedoria da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) começou a investigar uma denúncia contra Domingos Brazão sobre grilagem de terras. Conforme consta no livro Os bens que os políticos fazem, do jornalista Chico de Góis, a Delegacia de Crimes Ambientais da Polícia Civil acusou o deputado de invadir e vender terrenos e casas em áreas ambientais. Brazão saiu impune das acusações.
Tanto Penna quanto Brazão foram mencionados no relatório final da CPI das Milícias, presidida por Marcelo Freixo, à época deputado estadual pelo PSOL, mas nunca denunciados. Segundo denúncia anônima realizada à CPI das milícias, Luiz André Ferreira da Silva, o Deco, vereador naquele ano, andava armado por Jacarepaguá e ameaçava expulsar moradores que não votassem em Brazão. Meses antes, Deco havia concedido moção honrosa a um ex-presidente da Associação de Moradores de Vila Taboinha.
Penna seguiu lotado no gabinete do deputado até 30 de maio de 2009, quando foi preso pela Polícia Civil na Operação Leviatã 2. Segundo a denúncia, Penna era o braço jurídico da milícia de Fabrício Fernandes Mirra, ex-fuzileiro naval e ex-policial militar, que invadia e vendia ilegalmente casas nas zonas norte e oeste, entre elas imóveis do programa “Minha casa, minha vida”, do governo federal. De acordo com a denúncia, acessada pela Pública, ele e outro advogado, Carlos Alberto Costa de Oliveira, davam “aparência lícita às atividades criminosas, além de intimidarem testemunhas, tendo acesso às informações em razão de suas prerrogativas profissionais”.
No tempo em que passou preso, a irmã, Lílian Bianchini Penna, também advogada, patrocinou sua defesa. Mas, em 2021, os dois se desentenderam na Justiça, numa briga pelos bens herdados do pai, morto naquele mesmo ano, e pela curatela da mãe, diagnosticada com Alzheimer. A disputa resultou numa troca de acusações. De acordo com ela, o irmão era “altamente problemático, manipulador” e ainda tinha “sérios problemas com uso de álcool e compulsão alimentar, chegando a pesar mais de 200 quilos”. Relatou ainda ter sido ameaçada por ele. Lílian mencionou em seu depoimento o fato de Penna ter sido preso – o irmão tentou processá-la por calúnia, mas o processo não foi adiante.
Assim como também não avançou o processo criminal contra ele. Em fevereiro de 2010, o Ministério Público considerou que não houve “prova substancial consistente do envolvimento do advogado nas atividades ilícitas de seus clientes”. Entre as testemunhas ouvidas estava Chiquinho Brazão. Em seu depoimento, ele afirmou que “o acusado Marcelo Bianchini Penna trabalha como advogado, inclusive no auxílio a pessoas carentes de recursos financeiros”.
Em agosto de 2010, a juíza Ana Luiza Coimbra Mayon Nogueira, da 21ª vara criminal, concluiu que os indícios contra Penna “não se confirmaram sob o crivo do contraditório”. Penna foi, então, absolvido.
Penna só voltaria à cena em março de 2024. No relatório da PF que culminou com a prisão de Domingos e Chiquinho Brazão, acusados de serem os mandantes do assassinato de Marielle Franco, ele aparece como uma das evidências de que a família Brazão fazia grilagem de terra.
A PF retomou a história da favela de Taboinhas, apontando a ligação entre Penna e Domingos Brazão e sua posterior prisão e exoneração do gabinete do então deputado estadual. A proximidade entre ambos é tanta que, mesmo após os escândalos, Chiquinho Brazão o convidou para assessorá-lo na Comissão de Assuntos Urbanos da Câmara do Rio, em 2014, segundo consta no relatório da PF.
E não foi a única vez em que a família Brazão arquitetou para colocar Penna em cargos públicos. Em 2017, ele foi nomeado gestor do Bosque da Freguesia pelo então prefeito Marcelo Crivella, do Republicanos. Em entrevista ao jornal O Globo, Cidinha Campos, então deputada estadual pelo PDT, disse que Penna “foi um dos nomes mais citados por outros milicianos” durante a CPI das Milícias – ela era vice-presidente da comissão. No plenário, no dia 21 de junho, a deputada voltou a falar sobre o caso.
“Ele [Crivella] acaba de nomear uma pessoa chamada Marcelo Bianchini Penna, que foi preso na Operação Leviatã, nomeado para gestor do Bosque da Freguesia. Esse homem vendia terrenos, fazia ocupações. Vai lotear o Bosque. Vai vender árvore por árvore, vai desmatar aquilo tudo, acabar com tudo. Ele trabalhava, para Vossa Excelência ver a referência, no gabinete do Domingos Brazão. Agora, vai ser assessor especial do prefeito Crivella. […] Eu estou anunciando aquilo que vai acontecer: o Bosque será ocupado e vendido, com essa nomeação.”
O estardalhaço da deputada e da imprensa obrigou a prefeitura a voltar atrás. Penna foi desligado do cargo dois meses após ter tomado posse.
As ligações entre Felipe Michel e a família Brazão
Ex-jogador de futebol, Felipe Michel venceu sua primeira eleição em 2016, quando ainda era filiado ao PSDB – no pleito anterior, ele havia ficado apenas como suplente. O bairro da Praça Seca, onde Michel foi criado, é um dos principais redutos eleitorais do político. Em 2016, um a cada quatro votos de Michel veio de moradores de lá. Quase metade dos 10,3 mil eleitores dele moravam na zona oeste – a maior região do Rio de Janeiro tomada por milicianos.
Em 2020, Michel se reelegeu, dobrando a quantidade de votos no bairro e na zona oeste – com 25% e 50% do total de votos dele nessas áreas, respectivamente.
Colado à Praça Seca, outro bairro é dominado por grupos paramilitares: o Tanque. É lá, segundo a delação de Ronnie Lessa, assassino confesso de Marielle e Anderson, onde ficam os terrenos da família Brazão que seriam entregues como forma de pagamento pelo crime. A influência na região se mostra evidente também nas urnas: nas eleições de 2016, um a cada cinco votos em Chiquinho Brazão veio do Tanque, totalizando 4.696 votos.
Felipe Michel, naquele mesmo pleito, em sua segunda disputa, não chegou nem a 500 votos naquela zona eleitoral. Em 2020, com Chiquinho fora da corrida, já que havia sido eleito deputado federal dois anos antes, Michel triplicou os votos no Tanque. Waldir Brazão, candidato dos Brazão à Câmara, herdou apenas parcialmente a influência política do clã: obteve os mesmos 1,5 mil de Michel – o que representou 18,6% do total de seus votos.
Além de compartilharem currais eleitorais na zona oeste, outros indícios mostram a boa relação entre Felipe Michel e os irmãos Brazão. Em 2021, segundo o jornal O Dia, o vereador esteve com o ex-conselheiro do TCE-RJ Domingos Brazão em um camarote do Rock in Rio. “Quem estava na área vip do Rock in Rio ficou impressionado com o poder do conselheiro afastado do TCE-RJ Domingos Brazão (MDB). Foi um beija-mão sem fim: do vereador Thiago K. Ribeiro (MDB) e do secretário municipal de Envelhecimento Saudável, Felipe Michel (PSDB), até deputados como Gustavo Schmidt (PSL), demonstrando a influência política do ex-parlamentar”, diz a publicação.
Em maio de 2024, quando a vereadora Monica Benicio, do PSOL, viúva de Marielle, pediu a revogação das medalhas Pedro Ernesto aos irmãos Brazão, os vereadores “desapareceram” na hora da votação – Felipe Michel foi um deles. Embora estivessem registrado presença, a maioria não votou, numa manobra para fugirem do pedido de cassação das homenagens. Sem quórum, a votação se arrastou por mais de um mês – e só foi aprovada no dia 11 de junho. Felipe Michel chegou a votar favoravelmente à revogação, mas em outras seis oportunidades, inclusive na sessão que retirou as medalhas, o vereador não registrou seu voto.