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Morte de crianças Korubo lança sombras sobre a saúde indígena no Vale do Javari

Bebês morreram de causas evitáveis, como diarreia e gripe, em meio a surtos e denúncias de má gestão na saúde

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23 de janeiro de 2025
06:00

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Em um intervalo de apenas três meses, duas crianças indígenas Korubo morreram de causas evitáveis, como diarreia e gripe, no Vale do Javari, no oeste do Amazonas. Nos últimos dois anos, surtos de síndromes gripais têm assolado a etnia de recente contato.

Uma parte dos Korubo agora atingida pelas doenças foi contatada apenas seis anos atrás, em 2019, em uma expedição liderada pelo indigenista Bruno Pereira, que viria a ser assassinado três anos depois, ao lado do jornalista Dom Phillips, em represália à sua defesa do território.

A sequência de doenças põe em xeque o atendimento à saúde no Javari, a segunda maior terra indígena do país, e preocupa a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o Ministério Público Federal (MPF), que têm solicitado providências urgentes da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), vinculada ao Ministério da Saúde.

Os Korubo hoje se dividem em dois grupos distintos: uma parte contatada nas décadas de 1990 e 2010 e hoje distribuída em cinco aldeias nos rios Ituí, Itaquaí e Coari e outra parte que continua em isolamento voluntário na floresta. A saúde e a segurança dos grupos Korubo que mantêm relações com a sociedade não indígena dependem fundamentalmente das políticas públicas do governo federal.

A parte contatada é relativamente pequena, com cerca de 150 pessoas. Por isso, a morte prematura de duas crianças impacta ainda mais a reprodução física e cultural da etnia e é recebida como ameaça ao próprio futuro dos Korubo. Em tese, o número diminuto deveria permitir um melhor atendimento de saúde. Contudo, ao longo dos últimos anos, são inúmeros os sinais de que os Korubo enfrentam graves ameaças à sua saúde.

A primeira recente vítima Korubo, Mananvö, de apenas 10 meses de idade, morreu em 6 de outubro de 2024, num hospital em Atalaia do Norte (AM), após ter sido removida de barco às pressas da aldeia Sentelemaë, no rio Ituí. Um enfermeiro informou à Funai que ela morreu por “desidratação”. A aldeia, formada pelo grupo contatado nos anos 2014/2015, naquele momento estava tomada por um surto de doenças diarreicas agudas (DDAs).

Na semana seguinte à morte, liderados pelo pai da bebê, Txsipä, com bordunas e ornamentos corporais, os Korubo ocuparam a base de fiscalização da Funai na confluência dos rios Ituí e Itaquaí a fim de denunciar falhas no serviço prestado pelo Distrito Sanitário Especial (Dsei), o braço da Sesai na região.

Segundo os indígenas, a falta de profissionais de saúde, de recursos e de combustível impediu a remoção imediata da criança, o que contribuiu para o óbito. Um ponto de grande relevância levantado pelos indígenas é a ausência de água tratada nas aldeias – mais adiante voltarei a esse ponto.

Após o protesto na base da Funai, foi realizada uma reunião virtual entre os Korubo e o coordenador do Dsei que tem sua base em Atalaia do Norte, Kora Kanamary. Ele negou desassistência ou negligência, disse que tem cumprido os compromissos feitos com os indígenas e que sua gestão já formalizou ao governo federal todas as necessidades do Dsei, incluindo mais equipamentos, insumos e profissionais. Prometeu ainda deslocar uma balsa de saúde para a aldeia Sentelemaë e implantar um sistema de tratamento de água na aldeia Vukumaë.

Reativa, a resposta da coordenação do Dsei não reconheceu nenhuma falha no serviço.

A segunda morte infantil ocorreu no último dia 11, na aldeia do rio Coari, formada pelo grupo contatado em 2019. A criança morreu em Tabatinga (AM) após ter sido socorrida em meio a um novo surto gripal que atingiu a aldeia. Vários casos de síndromes gripais e diarreia têm sido registrados nas aldeias Korubo nos últimos anos. Em junho passado, no terceiro episódio do podcast Morte e Vida Javari, a Agência Pública relatou um desses surtos, ocorrido em 2023.

Em março de 2024, um novo surto atingiu os Korubo. Profissionais de saúde detectaram 101 casos de síndrome gripal e 22 de pneumonia, praticamente todos os habitantes da aldeia. Dos enfermos, 11 eram crianças com menos de 5 anos de idade. O atendimento ocorreu numa balsa estacionada no rio Ituí, onde as famílias se abrigavam “de forma precária”, debaixo de lonas que não suportavam as fortes chuvas.

“Necessitamos de providências urgentemente para prestar serviços de saúde minimamente dignos à população Korubo. Não temos mais alimentos para servir aos pacientes em tratamento na balsa, que ficam em condições precárias principalmente durante a chuva impedindo recuperação adequada. Além disso, não temos mais gasolina para realizar as visitas diariamente como planejado. Apesar de responderem bem às medicações disponíveis na farmácia para tratamento, a maioria evolui rapidamente com complicações, o que implica avaliações e cuidados diários”, escreveram profissionais de saúde em um relatório situacional enviado, no calor dos acontecimentos, ao Dsei do Javari em Atalaia.

Como disse acima, os problemas de diarreia estão relacionados, em grande parte, à ausência de água tratada nas aldeias. Antes do contato com os não indígenas nos anos 2014/2015 e 2019, os Korubo das aldeias Sentelemaë e Vukumaë viviam próximos a igarapés e interflúvios de rios com água de boa qualidade. Após o contato, eles passaram a viver de forma sedentária em aldeias perto de cursos d’água de baixa qualidade, principalmente nos momentos de forte seca que a Amazônia tem vivido no contexto da emergência climática mundial. Os igarapés na região do Ituí, por exemplo, têm secado no auge do verão, forçando os Korubo a consumir a água do rio sem tratamento.

Para a Funai, contudo, a escassez de água potável para os Korubo não se justifica, pois já existe tecnologia adequada para o tratamento de água “em contexto amazônico, de baixo custo e boa solução”. Citou-se a solução Salta-Z, desenvolvida pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa), um purificador utilizado pelo projeto Água Boa, disponibilizado pelo governo do Amazonas por meio da Companhia de Saneamento do Amazonas (Cosama), e um programa lançado pelo próprio Ministério da Saúde no final de 2022.

Contudo, quando especialistas foram verificar o Plano Distrital de Saúde Indígena do Vale do Javari para o período 2024-2027, elaborado pelo Dsei, encontraram como meta a implantação de uma única infraestrutura de abastecimento de água em apenas uma das cinco aldeias Korubo. Para a Funai, a oferta de serviços de saneamento básico em terras indígenas é de competência da Sesai, por meio do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena.

Apurei que os problemas no Javari estão longe de ficar restritos à população Korubo. No sábado (18) conversei por telefone com o cacique Mayoruna Waki Kaissuma, uma das principais lideranças indígenas do Vale do Javari. Em outubro passado, Waki enviou uma carta ao secretário de Saúde Indígena, em Brasília, Weibe Tapeba, com cópia ao MPF e à Polícia Federal, para pedir a exoneração do coordenador do Dsei. Algumas das principais reclamações são a ausência de profissionais de saúde nas aldeias e a suposta participação de funcionários da saúde em campanhas políticas na região.

Waki não é voz isolada, muito pelo contrário. Em uma reunião de 47 lideranças Mayoruna, Marubo e Kanamari ocorrida em Atalaia do Norte em 30 de dezembro último, os indígenas denunciaram que combustível do Dsei foi usado, em duas oportunidades, para transporte de pirarucus produzidos por indígenas num projeto de manejo, enquanto falta gasolina para levar e trazer pacientes a unidades hospitalares das zonas urbanas.

Segundo a ata da reunião, as lideranças também decidiram pedir ao comando da Sesai a exoneração dos atuais coordenadores do Dsei Javari. Os indígenas denunciaram que “continua havendo falta de medicamentos e gasolina”. Presente à reunião, um dos coordenadores do Dsei argumentou que a estiagem severa “dificultou a execução das ações de saúde”. Um cacique da etnia Kanamari, Pilingo, relatou na reunião “a grave situação” vivida nas aldeias na área da saúde e disse que “mais de dez Kanamary já perderam a vida devido a essa crise em menos de meses”.

Os dados e relatos compõem um cenário alarmante. Isso deveria provocar uma operação, a partir do Ministério da Saúde em Brasília, de apoio à saúde indígena na Terra Indígena Vale do Javari, a exemplo do que o atual governo realizou no território Yanomami a partir de janeiro de 2023. Aos trancos e barrancos, superando a sabotagem feita em 2023 pelas Forças Armadas, a operação na terra Yanomami agora apresenta, dois anos depois, alguns números positivos, como o aumento, segundo o governo, de 155% no número de profissionais de saúde atuando no território, a redução de óbitos e o combate ao garimpo. O Javari também pede, novamente, socorro.

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