O embaixador André Corrêa do Lago, que preside a 30ª Conferência do Clima da ONU, a COP30, divulga nesta segunda-feira (10) uma carta que traz a visão e os objetivos do país para o evento, que será realizado em Belém, em novembro. Mais do que metas ou uma agenda concreta, porém, o documento traz, ao longo de 12 páginas, um apelo para que países, sociedade civil, empresários não desistam da luta contra o que ele chamou de inimigo comum a todos: as mudanças climáticas.
O Brasil faz um chamado a uma mobilização geral diante do complexo cenário internacional, em que os Estados Unidos, sob Donald Trump, estão provocando mudanças no tabuleiro geopolítico; e a ameaça de uma nova grande guerra vem redirecionando os esforços de muitos países, antes voltados para o clima, para estratégias de defesa. É o que Corrêa do Lago chama de “banalidade da inação”, em sua carta.
“Este ano marca o 80º aniversário do fim da Segunda Guerra Mundial e de nossa aliança na criação das Nações Unidas. A filósofa germano-americana Hannah Arendt denunciou a ‘banalidade do mal’ como a aceitação do que era inaceitável. Agora, estamos enfrentando a ‘banalidade da inação”, uma inação irresponsável e também inaceitável”, escreve.
“Nesta década crítica, o Brasil convoca novamente nossa aliança de povos para, mais uma vez, deixarmos nossas diferenças de lado e nos unirmos para vencer o inimigo comum: a mudança do clima”, continua.
Logo no primeiro parágrafo da carta, Corrêa do Lago pede que a comunidade internacional reflita sobre os valores “que nos mantêm unidos: paz e prosperidade, esperança e renovação, consideração e gratidão, unidade e conexão, resiliência e otimismo, generosidade e bondade, diversidade e inclusão”. Serão necessários “em um século que testará a capacidade de adaptação e inovação de nossa espécie na construção de um futuro comum”.
Para o embaixador, que desde 2023 é o negociador-chefe do Brasil nas negociações climáticas, o momento demanda uma mudança inevitável, “seja por escolha ou por catástrofe”.
Nos últimos anos, o aquecimento global tem se agravado. O ano de 2024 foi o mais quente do registro histórico, superando o recorde de 2023, e foi o primeiro em que a temperatura média do planeta ultrapassou em mais de 1,5 °C a que era registrada antes da Revolução Industrial. A consequência tem sido um aumento de eventos extremos e tragédias em todo o mundo, como as chuvas que devastaram o Rio Grande do Sul e as queimadas na Amazônia e no Pantanal.
“Se o aquecimento global não for controlado, a mudança nos será imposta, ao desestruturar nossas sociedades, economias e famílias. Se, em vez disso, optarmos por nos organizar em uma ação coletiva, teremos a possibilidade de reescrever um futuro diferente. Mudar pela escolha nos dá a chance de um futuro que não é ditado pela tragédia, mas sim pela resiliência e pela agência em direção a uma visão que nós mesmos projetamos”, aponta a carta.
É o mesmo tom que ele já havia adotado, na quarta passada (5), durante reunião informal na Assembleia Geral da ONU. “Diante da urgência, a complexidade da nossa tarefa é fortalecer a governança climática e proporcionar agilidade, preparação e antecipação tanto na tomada de decisões quanto na implementação”, disse.
Por que isso importa?
- Esforços globais para o combate às mudanças climáticas estão sendo enfraquecidos com medidas adotadas pelos Estados Unidos e redirecionamento de recursos de países europeus para a defesa diante de risco de novas guerras.
- Brasil faz um apelo para que países, empresas, sociedade civil e outras entidades internacionais não desistam do combate às mudanças climáticas e voltem o foco para o problema que ameaça o futuro de toda a humanidade.
Em conversa com alguns veículos de imprensa na sexta-feira (7), da qual fez parte a Agência Pública, Corrêa do Lago e Ana Toni, secretária de Mudança do Clima, do Ministério do Meio Ambiente, e diretora-executiva da conferência, explicaram que a ideia da carta foi realmente fazer um chamado à mobilização que vá além da própria conferência.

“Nós estamos vendo muito claramente os limites de tratar do tema de mudança do clima apenas entre países negociando num acordo internacional cheio de regras extremamente complexas”, afirmou o embaixador.
No documento, a presidência brasileira da COP se vale do conceito tão brasileiro de mutirão. “Todo brasileiro entende essa palavra, e agora o mundo vai descobrir que existe, que todo mundo tem que se juntar para um bem comum”, disse ele na entrevista.
“Não apenas os países. Nós temos que juntar a sociedade, o setor privado, a juventude. Nós temos que juntar todos em torno de um movimento que nos parece tão urgente, mas que nós não estamos tendo no mundo, neste momento: um foco sobre clima como deveria ser”, complementou.
Este não foco ganhou escala a partir da vitória de Trump nas eleições americanas. E não somente pela postura ant-climática do republicano, que, além de ter iniciado o processo de mais uma vez retirar os EUA do Acordo de Paris, defende uma exploração maior de petróleo, tem agido contra incentivos à transição energética e vem promovendo um desmonte da área ambiental e de pesquisas de clima.
O impacto ainda maior é pela desestabilização da ordem mundial que ele vem provocando, por exemplo, em relação à guerra entre Rússia e Ucrânia e que faz com que países europeus direcionem o foco para uma eventual guerra no continente.
Na carta, Corrêa do Lago cita isso de modo indireto. “A falta de ambição será julgada como falta de liderança, pois não haverá liderança global no século 21 que não seja definida pela liderança climática […]. Ao reconhecermos que somos todos interdependentes na luta contra a mudança do clima, devemos reconhecer que a comunidade internacional é tão forte quanto seu elo mais fraco.”
Na entrevista, ele foi mais enfático. “[É um momento em que] os maiores, ou o que se espera que sejam os maiores, entre aspas, doadores [para a ação climática]… um está saindo de Paris e não parece ter muita intenção de colocar recursos para isso, e os outros estão tendo que desviar os recursos para outras coisas também, um pouco por causa das circunstâncias mundiais hoje”, resumiu.
A visão é que é preciso traduzir melhor às pessoas o que significam as negociações climáticas e qual é a relação delas com a vida real. “Acho que o mundo entende que a gente está assinando várias coisas importantes e tal [no âmbito das conferências do clima], mas não está entendendo muito bem. A gente tem que traduzir o resultado dessas negociações para o público em geral, para que ele volte a acreditar que a gente tem que entrar nessa agenda para o bem comum”, explica.
Uma ideia que precisa ser combatida, diz, é que investir em combate à mudança do clima é ruim para a economia. “Não é. Eu acho que nós temos que chegar com muitíssimos exemplos do quanto pode ser bom, se bem feito, e há vários exemplos. É mostrar que o combate à mudança do clima não piora a vida das pessoas. Ao contrário, melhora”, diz.
“Porque há essa percepção, por exemplo, em alguns países europeus, que o combate à mudança do clima está aumentando o custo da energia. Então as pessoas acham que não têm que pagar por isso. A ideia é fazer um movimento que dê um novo impulso ao combate à mudança do clima, com novos argumentos e com novos atores.”
A presidência da COP30 e o governo brasileiro, em especial na figura da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, têm defendido, desde o ano passado, que esta deve ser a conferência da implementação de tudo o que já foi decidido ao longo dos últimos anos. Que o que precisa ser feito para combater a mudança do clima já está posto, agora é preciso pôr em prática. A carta traz essa ideia. De que a COP30 seja o “momento da virada”.
Questionados sobre como esperam ser possível fazer essa virada justamente diante do diagnóstico, que eles mesmos fizeram, de que as preocupações neste momento de todo o mundo são outras, como a guinada da extrema direita, um discurso antiambiental e a iminência de uma guerra mais ampla, tanto o presidente da COP quanto a diretora-executiva fizeram um chamado à razão.

“A gente tem de perceber que o tema da mudança do clima vai continuar conosco. As guerras vêm, vão. Ficam aí um ano, dois, três… Muita destruição e vão embora. A mudança do clima, ela fica. Vai ficar por muitos anos. A gente sabe disso”, respondeu Ana Toni.
Na carta, eles propõem que outros atores atuem como “alavancas” das soluções que já estão disponíveis e já estão acontecendo: “A presidência recrutará agentes entre as partes interessadas não estatais para se associarem como ‘alavancas’, ajudando a aplicar soluções em ‘pontos de alta alavancagem’, onde pequenas mudanças podem resultar em grandes impactos no comportamento de sistemas complexos”.
De acordo com Ana Toni, uma dessas alavancas precisa ser sobre a transição energética. “É inevitável, ela vai acontecer. O que a gente precisa agora é dar velocidade e escala a essa mudança. Já tem soluções em muitos setores. Já tem tecnologia. A gente já sabe que os recursos existem. Eles precisam ser colocados. Se a gente olhar para soluções, olhar para essa alavanca, pensando nesse mutirão, não só os negociadores, mas a sociedade como um todo, setor privado, governo multinacional, governos subnacionais, a gente tem uma oportunidade incrível de avançar neste combate à mudança do clima”, afirma.
“Temos, sim, esse inimigo comum e temos já soluções na mesa. [A carta traz] essa esperança de fazer com que a próxima década seja essa década de mutirão, de trabalhar juntos, de pensar nesse bem comum. Sabendo que as soluções já existem, a gente só precisa dar velocidade e escala para ela”, complementa.