Uma fotografia do padre Bernardino Batista dos Santos, então com 65 anos, estampava como símbolo de fé e moralidade a página de um blog em 2013. Mas um comentário anônimo na mesma página sete anos depois mudaria tudo: “Pedófilo!”. A mensagem, que parecia ser uma acusação isolada, revelaria um rastro de denúncias silenciadas por décadas.
Ao menos sete denunciantes, que afirmam terem sido vítimas do sacerdote quando crianças, romperam o medo, a indiferença e expuseram suas histórias à Agência Pública, que teve acesso exclusivo aos detalhes da investigação policial realizada em Tiros, cidade no noroeste de Minas Gerais.

No ano passado, Bernardino foi indiciado por estupro de vulnerável e aguarda desde então o julgamento em casa, com uso de tornozeleira eletrônica. As investigações apontaram que o suspeito teria feito pelo menos 50 vítimas entre os anos de 1975 e 2016.
Em 2021, quando houve a primeira investigação do caso, a Arquidiocese de Belo Horizonte afirmou que, por decisão do Vaticano, o padre seria afastado das atividades, o que não aconteceu. Em 2024, o nome dele ainda aparecia no catálogo de padres como capelão da penitenciária feminina do Horto, em Belo Horizonte. Em nota, a Arquidiocese de BH nega. “Bernardino Batista dos Santos está afastado do exercício do ofício sacerdotal desde o dia 18 de novembro de 2021. A decisão, que teve caráter definitivo com “a confirmação pelo Vaticano, proíbe o referido senhor de exercer quaisquer funções vinculadas ao sacerdócio católico. Sobre o catálogo de 2024, as denunciantes tiveram acesso a um arquivo com informações desatualizadas”.
Nessa época, as vítimas e familiares criaram um perfil no Instagram chamado Vítimas do Santo do Paraíso, sendo Paraíso o nome de um bairro na região leste da capital mineira, Belo Horizonte, onde por mais de três décadas Bernardino Batista atuou como padre da Igreja Católica.

O caso cairia no esquecimento se não fosse a descoberta, pelas próprias vítimas, de uma criança que teria sido abusada por Bernardino em 2016, aos 4 anos de idade. Diferentemente dos outros casos, o suposto crime contra ela ainda não havia prescrito. E foi justamente a mensagem no blog com a foto do padre que traria novos indícios em 2021. A mãe de uma criança que o acusa de abuso se manifestou de forma anônima:

Dois anos depois da postagem, em 2023, uma nova investigação policial na cidade de Tiros, onde teria ocorrido o crime, foi realizada pela polícia.
Keilla Aparecida Pessoa contou à reportagem detalhes do que aconteceu no dia do suposto abuso. Ela trabalhava como caseira no sítio do padre e descreve o local: “eram vários quartos, muitos deles com várias camas, havia uma piscina. Tudo de muito bom gosto e caro!”.
Encarregada de fazer a comida para os funcionários que iam trabalhar numa festa do casamento que foi realizada no sítio em maio de 2016, Keilla recorda que, a pedido dela, pediu ao padre Bernardino que fosse buscar mais carne na cidade de Tiros. “Ele se prontificou a ir e sugeriu levar uma criança para tomar sorvete, que era filha de uma mulher que me ajudava”, contou.
A mãe da menina só permitiu que a filha acompanhasse Bernardino, justamente por saber que estaria sob os cuidados de um padre. O problema é que ao retornarem para o sítio, Keilla percebeu a menina segurando o sorvete muito calada. “Achei estranho. Se eles foram para o local para que ela tomasse o sorvete, porque voltar com o sorvete para casa após tanto tempo fora?”.
Ela conta que a mãe levaria a menina até o quarto para colocar uma roupa mais simples para que ela pudesse brincar e, que neste momento, percebeu que a filha estava com os olhos vermelhos. Ela teria apontado para as partes íntimas ao ser questionada sobre o motivo da tristeza, e relatou que o padre Bernardino teria colocado a boca dele em suas partes íntimas. A criança teria indicado à mãe o movimento realizado pelo padre durante o abuso. “A mãe me contou, ficamos sem ação e seguimos trabalhando. Anos depois, vimos que o mesmo padre estaria sendo acusado de abusos sexuais contra crianças e tudo veio à tona”, lembra Keilla.
Nunca desconfiei ter “pagado” para ele violentá-la
Com uma área equivalente a 27 campos de futebol, o sítio “Luz e Vida” em Tiros pertenceu ao Padre Bernardino até 26 de novembro de 2021, quando a propriedade foi vendida de forma parcelada por R$1,6 milhões de reais — das 4 parcelas de 400 mil reais, a última venceu em 10 de janeiro de 2025.
Como consta no relatório do inquérito policial, era “um local propício para ocorrência do crime atualmente investigado e que aconteceu na clandestinidade”.
No mesmo lugar, a filha de Leida Juliana da Silva Oliveira, também teria sido abusada por Bernardino. “Minha filha só me contou quando já estava adulta. Fiquei chocada!”, relembra Leida, que percebera que a filha estava mais calada, triste e que às vezes chorava. “Eu perguntava, mas ela não me dizia o que era”.
Teria sido durante uma excursão da escola no sítio do padre que a menina teria sido abusada dentro da piscina da propriedade. Segundo o relato da mãe, o padre teria passado as mãos nas partes íntimas da filha, em seguida a levado para um matagal onde ficou se esfregando sobre o corpo dela até que ela desmaiasse. “Nunca desconfiei que teria ‘pagado’ para um padre violentar minha filha! E o pior é saber que existiram adultos ali que foram, no mínimo, coniventes com isso”, afirma Leida.


Por envolver crianças e adolescente, o inquérito que apura as acusações contra o Padre corre em segredo de justiça. Mas em 2021, uma investigação paralela foi realizada pela Arquidiocese de Belo Horizonte, em que as vítimas teriam prestado depoimento a uma comissão estabelecida pela Igreja Católica, mas nenhuma denunciante ouvida pela reportagem recebeu cópia da declaração. O pedido para ter acesso à investigação também foi negado à reportagem.
Um olhar para o paraíso
Na casa paroquial onde o padre Bernardino Batista dos Santos morava, no bairro Paraíso, a janela dava vista à uma quadra infantil, que ele mesmo, segundo moradores da comunidade, havia planejado e mandado construir com dinheiro da Igreja. Foi dali que ele teria visto Kênia Quirino, então com 8 anos de idade, em 1982.
“A gente estava na quadra sentados em roda e brincando. O padre Bernardino se aproximou, me pegou pela mão e disse que precisava de ajuda na casa. Fui com permissão da professora. Ao entrarmos, o padre fechou a janela que dava pra ver a quadra, puxou a cortina e trancou a porta. Em seguida, me colocou sobre a mesa, levantou minha saia, e esfregou o órgão genital dele em minha vagina (resguardada pela calçinha). Não sabia o que estava acontecendo. Teve uma hora que ele tampou minha boca com força para impedir que gritasse. Logo, o padre se satisfez e simplesmente abriu a porta e mandou que voltasse a brincar com os colegas. Saí correndo com um sentimento enorme de alívio, de liberdade. Não falei para ninguém o que tinha acontecido”
Kênia conta que após o trauma, sua vida social foi de intensa dificuldade e silêncio: “tenho 52 anos e sou virgem até hoje. Guardo várias saias e vestidos, que jamais consegui usar porque me fazem lembrar o dia do abuso”.

Quando o padre Bernardino foi preso preventivamente em Juatuba, interior de Minas, em 23 de outubro de 2024, ele ficou apenas um mês na penitenciária, conseguindo reverter a decisão para aguardar o julgamento em casa sob a alegação de que é diabético, idoso e sofre de depressão.
Na defesa das vítimas, a advogada Ana Carolina Campos Oliveira afirma que, ao contrário do que se pode imaginar, a tornozeleira eletrônica que Bernardino é obrigado a usar não tem a função de mantê-lo afastado de crianças. Ao invés disso, ele está estritamente proibido de se aproximar das testemunhas do inquérito e da criança que ele abusou no sítio em 2016. Além dessas restrições, explica a advogada, Bernardino “leva uma vida normal”, cenário que para ela contrasta com a situação das inúmeras vítimas que vivem com o trauma, e daquelas que, incapazes de suportar a violência sexual a que foram expostas, acabaram tirando suas próprias vidas, como será explicado adiante.
Crimes prescritos
A maioria dos crimes denunciados contra o padre Bernardino prescreveu. A prescrição é o tempo que o estado tem para punir um crime. Depois desse prazo, o acusado não pode mais ser responsabilizado penalmente. Pela legislação brasileira o prazo de prescrição só começa a contar a partir do momento em que a vítima completa 18 anos, e não na data do crime. Mas em quase todos havia o mesmo modus operandi. Para os investigadores do caso, o acusado faz uso da oportunidade, ou seja, aproveita-se de pequenos momentos para realizar os abusos sexuais, inclusive praticando os atos em ambientes próximos dos pais ou dos responsáveis pelas crianças. Em geral, ainda de acordo com os investigadores, padre Bernardino ficava com as vítimas o tempo suficiente para a satisfação sexual dele e não fazia uso de armas. Quanto à natureza dos atos não havia preferência pela conjunção carnal, embora tivesse praticado em alguns dos casos reiteradamente, aponta a investigação.
Os investigadores dizem que as vítimas eram, em maioria, meninas entre 3 e 11 anos de idade. E para atrair o contato com todas elas, Bernardino valia-se da função de líder religioso e diretor de escola infantil, o que lhe garantia o respeito dos pais e da comunidade.
Um ex-funcionário da igreja, Marcilio Pereira, que prestou depoimento em 2021, disse que “o padre sempre foi acobertado pelas lideranças” e que “em muitos casos houve — alguns acordos financeiros —, para que as famílias abandonassem as denúncias e que isso deveria ser apurado através dos extratos financeiros da Paróquia, principalmente os extratos das obras sociais”.
Marcílio contou que certa vez questionou Bernardino de estar abusando sexualmente de uma menina que era coroinha e que em resposta o padre teria negado: “meu sacerdócio é santo, eu respeito meu sacerdócio, isso é invenção do povo!”. Ao longo dos 8 anos em que trabalhou com o padre, Marcílio afirmou que atendeu pelo menos por três vezes pessoas que procuraram o pároco com intenção de matá-lo. Numa dessas vezes o padre teria fugido para o sítio em Tiros. “Tive que encontrar padres para substituírem as cerimônias!”, contou Marcílio, que foi demitido sem justa causa pelo padre Bernardino em maio de 2005, sem acerto trabalhista, fato que foi resolvido apenas na justiça.
Marcílio conta ainda que foi procurado por Cibele Itaboray Frade, outra denunciante do padre, e que se dispôs a testemunhar a favor dela, mas a denúncia não seguiu adiante. Cibele falou com a Pública sobre os abusos sexuais que sofreu entre 8 e 9 anos de idade e de como vem travando uma verdadeira guerra para provar os crimes que teriam sido cometidos pelo padre. Ela acompanha o passo a passo do caso em busca de justiça e de reparação.
“Fui abusada sexualmente pelo padre Bernardino logo após a missa. Era época de festividades na igreja e tinham barraquinhas espalhadas pela rua. A igreja estava em obras, em um determinado momento o padre me chamou para ajudá-lo em um quartinho onde ficam os materiais de construção. Meus pais permitiram. Chegando lá, ele trancou a porta e começou a dizer que estava sendo perseguido. Colocou um papelão no chão e mandou que eu me deitasse, veio por cima de mim e começou a se esfregar sobre meu corpo. Assim que ele sentiu prazer, parou e mandou que eu saísse como se nada tivesse acontecido”.
A mesma situação teria ocorrido em outra ocasião, ela disse. Um dia, ainda na infância, enquanto conversava com outras colegas da paróquia, a mãe de Cibele ouviu que as meninas falavam dos abusos sexuais que estariam sendo cometidos pelo padre. Cibele conta que a mãe procurou a Arquidiocese e pediu reparação. Mas ambas saíram sem respostas. O máximo que conseguiram foi ouvir que o padre “sofria de uma determinada doença e que elas precisavam compreender as dificuldades dele!”.
Em depoimento à polícia, primeiro no inquérito de 2021 e, depois, no inquérito de 2023, Cibele relatou vários outros casos de abusos sexuais cometidos pelo padre que ela teria conseguido rastrear ao longo dos anos. Em um deles, Cibele conta a história de Keitilane Aparecida de Almeida, uma menina que foi levada para a casa do padre Bernardino em “troca de um lote”. A Arquidiocese não teria aprovado a situação na época, então Bernardino a teria mandado a um orfanato. “Ela não foi a única a ser literalmente estuprada”, afirma Cibele à Pública. Anos depois, em 28 de abril de 2023, Keitilane Aparecida, tirou a própria vida aos 36 anos de idade. Pouco tempo antes, ela havia desabafado em um áudio de WhatsApp com outras vítimas e testemunhas:
“Foi só dos 6 aos 12 anos. Depois do orfanato, ele me levou para o Caio Martins (Fundação Educacional Caio Martins — Fucam). Isso sim é um tiro na cabeça! A minha família me vendeu para conseguir um lote. Se você entende a situação… minha família me colocou para morar na rua, para protegê-lo e ganhar dinheiro. Tanto é que a casa que minha família tem no bairro foi ele quem comprou!”
A psicóloga me disse: “você foi estuprada”
A sensação de Ana Paula Costa é de que o padre Bernardino sabia muito bem como articular as situações para que tivesse acesso às meninas que ele tinha interesse sexual. Ela revela um padrão doloroso de abuso que começou ainda na infância, por volta dos 8 anos de idade, dentro do ambiente religioso que sua família frequentava. Segundo contou à reportagem, tudo teria começado após suas primeiras confissões, um ritual católico que exige que os fieis estejam livres de pecados antes de comungar.
“Eu tinha 11 anos e, na época, minhas confissões eram sobre coisas banais, como brigar com minha mãe ou não querer fazer a lição de casa”, conta Ana Paula Costa. Foi nesse contexto que, segundo ela, o padre Bernardino teria se aproveitado da situação. Ela se lembra que, após a confissão, foi levada para a sacristia. “Ele me colocou em cima da mesa, começou a se masturbar e me machucou. Não houve penetração, mas ele tirou minha roupa íntima e se esfregou em mim, causando sangramento”. O trauma físico e psicológico a levou a acreditar que o abuso fazia parte da penitência, após a confissão. “Achei que meu pecado era grave demais e que a dor fazia parte do castigo por não honrar pai e mãe. Como ele não me mandava rezar, entendi que minha punição era aquela (o abuso)”, relatou.
A situação seguiu até que, um dia, o pai de Ana Paula desconfiou. “Demorei a sair da missa, e meu pai foi me procurar. Nos encontramos na esquina e ele me viu chorando, perguntou o que tinha acontecido, e disse que o padre tinha tentado me agarrar”, lembrou. Depois desse episódio, Ana Paula foi afastada do grupo de coroinhas e o padre parou de frequentar a casa dela, como era comum na época, mas a família continuou a frequentar a Igreja. Ana Paula conta que eram frequentes os abraços do padre Bernardino. “Ele me agarrava com força para perto do corpo dele e fazia isso em qualquer ambiente, sem que ninguém dissesse que era estranho ou inapropriado. Guardo uma fotografia que mostra exatamente como me sentia nessa situação”.

Mais tarde, ao entrar no ensino médio, Ana Paula teve contato com aulas de biologia e educação sexual. “Foi quando comecei a entender o que realmente tinha acontecido comigo. Na época, ninguém falava em abuso ou pedofilia, então, simplesmente segui minha vida”, afirmou. Ana chegou a ser encaminhada para terapia porque a mãe dela, embora não soubesse do que se tratava, percebia que de alguma forma, a filha precisava de ajuda. “No início, não conseguia falar. Só depois de três ou quatro anos de terapia a psicóloga me disse com todas as letras: ‘você foi estuprada’”.
Em relato à polícia registrado num boletim de ocorrência, Patrícia Salviano conta que decidiu denunciar Bernardino após ver o caso na televisão, em 2024. “Pensei que precisava falar porque talvez tenha sido a primeira, senão uma das primeiras meninas abusadas pelo padre”, explicou. Ela recordou que o crime ocorreu em 1975 quando tinha por volta dos nove anos de idade, durante uma excursão escolar perto da Serra da Piedade. “Bernardino me chamou para ver um cavalo no meio do mato, e, de repente, me jogou no chão. Lembro do peso dele sobre mim, dele passando a mão em meu corpo de forma inadequada. Eu usava um short e fiquei aterrorizada”, contou. Patrícia fugiu para o ônibus, trocou de roupa, mas a dor do ocorrido a marcou profundamente. Na época, Bernardino ainda era seminarista e professor. Foi só em 11 de novembro de 1977 que, de acordo com registros da Arquidiocese, Bernardino dos Santos foi ordenado padre.
Padre havia batizado menina 4 anos antes de abusos
Outra denunciante, Carine Diniz, lembra à reportagem dos abraços apertados do padre. Hoje, é advogada e conta que seguia à risca o que era determinado pela igreja, quando criança. “Me tornei coroinha e foi nessa época que ele começou a se aproximar de mim. Tinha cerca de nove anos de idade. Antes da missa, dentro da sacristia, o padre passava as mãos em meu corpo, especialmente nos meus seios que estavam começando a crescer. Isso aconteceu inúmeras vezes”.
Para Carine, esses abusos aconteciam como uma forma de punição já que os pais dela acreditavam numa forma diferente de atuação da Igreja Católica, o que incomodava o padre. “Teve uma vez que ele fez uma festa na casa paroquial em que só participaram as coroinhas beges e vermelhas — preferidas dele! E todas elas, inclusive eu, fomos abusadas. No meu caso não houve penetração, mas o que ele fazia já era por si só uma violência absurda”.
Segundo os investigadores, em depoimento à polícia em 2024, padre Bernardino confirmou que era dono do sítio em Tiros e que o terreno foi vendido em 2021. No entanto, negou que fossem realizadas excursões escolares para o local. O que é confrontado pela mãe de uma das vítimas. Leda Juliana conta que além de pagar pelas mensalidades da filha ainda pagava pelas excursões e que numa delas a filha teria sido violentada pelo padre Bernardino, que havia batizado a menina quatro anos antes do abuso no sítio.

Juliana não poupou esforços para que o caso da filha e de outras vítimas não caísse no esquecimento. Em setembro de 2024, ela fez um apelo ao Ministério Público de Minas Gerais pedindo ação dos promotores. Em um dos trechos do documento ela registra: “como mãe estou desesperada por justiça. É uma dor imensa ver a tristeza da minha filha e não poder fazer mais do que estou fazendo. São muitas vítimas sem respostas”.
A convivência do padre Bernardino com as famílias de moradores do bairro Paraíso onde ficava a paróquia era muito comum. Isso marcou a infância de muitas meninas que viam com frequência o padre em almoços de domingos e festas dos parentes. Márcia Helena Gonçalves, 53 anos, conta que isso era comum na casa do tio dela, que ficava bem perto da Igreja Santa Luzia.
“Num domingo, o padre levou todas as crianças que estavam na casa do meu tio para dar um passeio de carro. Estávamos eu e meus primos, inclusive uma prima minha que é dois anos mais velha e que foi abusada várias vezes pelo padre. Ao chegar num mirante de Belo Horizonte, um lugar ermo onde vários casais se encontravam para namorar, o padre mandou que descessemos para brincar, mas quando saí do carro ele me segurou pelo pescoço. As outras crianças se foram e eu simplesmente desmaiei. Só me recordo de voltar para casa”. Márcia conta que descobriu que havia sido abusada sexualmente anos depois, quando estava em uma aula na faculdade e a professora confirmou que o “apagão” e o trauma sofrido por ela eram os sinais da violência.
A psicanalista e especialista em traumas Rosane Trapaga, que atende às mulheres que contam terem sido vítimas do padre Bernardino e os familiares delas, explica que houve silêncio durante anos, não apenas pelo medo, mas também pelo prestígio social e religioso que ele carregava. Segundo Trapaga, como ocorre em diversos casos de abuso, o agressor se ocultava atrás de um papel social respeitável — neste caso, o de representante de Deus — para ter acesso irrestrito a crianças.
“Não é incomum que abusadores se posicionem estrategicamente em ambientes onde há crianças, como escolas, igrejas e até dentro das famílias. No caso específico, a perversidade se acentua pelo local onde os abusos ocorreram: espaços sagrados, como a casa paroquial e propriedades associadas à igreja. O impacto foi devastador, atingindo profundamente a sexualidade das vítimas e deixando marcas duradouras em sua saúde mental e afetiva”, afirma. A psicanalista reforça, também, que há uma grande importância no debate sobre abuso infantil dentro de instituições religiosas.
A espera do julgamento
Quando a notícia da prisão de Bernardino foi divulgada em outubro de 2024, a reação imediata de Ana Paula foi de que seria possível haver justiça. “Não sabia descrever o que estava sentindo. Não era alívio, nem justiça, mas parece que havia tirado um peso do coração.”
Em dezembro de 2024, o caso do padre Bernardino foi tema de duas audiências públicas na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG). Em ambas, foi discutido o impacto de crimes sexuais cometidos contra crianças por líderes religiosos. Ao fim de uma das reuniões foi publicado o Projeto de Lei nº 3.163/2024, que institui a política estadual de garantia de direitos da criança, do adolescente, da mulher e da pessoa vulnerável vítima ou testemunha de violência praticada por instituições religiosas e seus agentes.
A eleição do Papa Leão XIV traz à tona um dos maiores desafios enfrentados pela Igreja Católica: os escândalos de abuso sexual clerical. Durante o pontificado de Francisco, medidas foram implementadas, como a promulgação do motu proprio “Vos estis lux mundi”, que obriga bispos e superiores religiosos a denunciarem casos de abuso e de quem os acoberta, além da criação de sistemas para denúncias em todas as dioceses. Além disso, Papa Francisco aboliu o segredo pontifício em casos de violência sexual, permitindo que informações sejam compartilhadas com autoridades civis. No entanto, críticas persistem quanto à eficácia dessas medidas, e no que diz respeito à responsabilização.
Segundo a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais (Sejusp), a informação de que Bernardino Batista dos Santos teria atuado como capelão no Complexo Penitenciário Feminino Estevão Pinto (Piep) em 2024, não procede. Ele, segundo a Sejusp, teve vínculo contratual com o Estado para atuações religiosas no sistema prisional entre 1995 e 2015.
Sobre a situação atual de prisão, a Sejusp afirma que Bernardino Batista dos Santos teve registro de admissão no Presídio Inspetor José Martinho Drumond, em Ribeirão das Neves, entre 23/10/2024 e 28/11/2024. E está sob monitoração eletrônica, por determinação judicial, desde 28/11/2024.
De acordo com a Justiça, a previsão é de que o julgamento do caso que envolve Bernardino Batista dos Santos ocorra até o fim de 2025.
O que diz a Igreja e a defesa de Bernardino
Em nota, a defesa das vítimas afirma que, desde 2021, trabalha no caso e ressalta o compromisso inabalável com a defesa dos direitos das vítimas e da busca incessante por justiça. O advogado de defesa de Bernardino Batista dos Santos também foi procurado, mas não retornou os contatos até a publicação. Já a Arquidiocese de Belo Horizonte, em resposta à Pública, informou que a Comissão Arquidiocesana para a proteção de Crianças, Adolescentes e Vulneráveis da Arquidiocese de Belo Horizonte prontamente acolheu as denunciantes no processo eclesial, além de ter contribuído com o trabalho das autoridades civis. Mas, informou que quando questionada sobre o motivo pelo qual as denunciantes não tiveram acesso ao conteúdo dos depoimentos que deram à instituição católica, não foi possível informar nada, já que “conforme o direito canônico, não se pode expor detalhes do processo”.