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Como escritores, editoras e Academia Brasileira de Letras apoiaram ditadura militar

Nomes como Rachel de Queiroz e Rubem Fonseca e editoras como Record ajudaram no roteiro do golpe e seus desdobramentos

Reportagem
24 de junho de 2025
17:03
Arquivo Público DF/Divulgaçāo

Não foi só o front dos militares que sustentou a ditadura brasileira de 1964. Uma outra fronteira, a literária, também ajudou a manter o apoio ao regime. “Nós não gostávamos de Jango, de forma que derrubá-lo foi uma boa ideia”, declarou a escritora Rachel de Queiroz em entrevista à TV Câmara, em maio de 2000. Ao lado de Rachel estavam autores e intelectuais de renome, como Rubem Fonseca, Gilberto Freyre, Dinah Silveira de Queiroz, Guimarães Rosa, Ariano Suassuna e Austregésilo de Athayde. Compartilhavam a mesma trincheira ideológica, as editoras Record, José Olympio, Agir, O Cruzeiro, Globo, Bloch, Ao Livro Técnico e GRD – de Gumercindo Rocha Dórea.

Todas essas organizações e pessoas colaboraram ou estiveram envolvidas no apoio à ditadura, ainda que através de livros, revistas, publicações diversas e, por vezes, por meio de funções burocráticas. “Os escritores e as editoras foram muito importantes na desestabilização do governo Jango ao propagar pautas da direita, como a associação de seu governo ao comunismo, o fim do comunismo e os ideais de liberdade americanos”, diz a historiadora e editora Joana Monteleone.

Ex-presidente da ditadura, Castello Branco, em almoço na José Olympio Editora, em 1965

A reportagem procurou as editoras Record/José Olympio, Ao Livro Técnico (que pertence ao grupo Zit), Agir (Ediouro) e Saraiva (Cogna). Somente a Record e Saraiva responderam.

A Record respondeu que os fatos denunciados pela reportagem “eram até então desconhecidos pela gestão atual do Grupo Editorial Record, que não compactua nem jamais compactuará com governos autoritários”. A resposta completa está aqui.

Já a Saraiva informou que a denúncia da reportagem “não está relacionado à atuação atual da Editora Saraiva e encontra-se sob responsabilidade da nova gestão. Leia a resposta na íntegra aqui.

Por que isso importa?

  • Editoras e institutos financiados por grandes empresários brasileiros e pelos EUA atuaram para desestabilizar governo de João Goulart e justificar golpe;
  • Publicação de livros e até quadrinhos foi usada para elogiar ditadura e combater ideias comunistas.

O instituto literário que abriu caminho para o golpe militar

No topo dessa estrutura havia um instituto patrocinado por organizações dos EUA, o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais, o IPÊS, criado três meses após a renúncia do presidente Jânio Quadros. Fundado em novembro de 1961 por empresários, banqueiros, intelectuais conservadores e oficiais da Escola Superior de Guerra, o IPÊS atuou de forma sistemática para desarticular o governo João Goulart, abrindo caminho para o golpe de 1964. Instalada a ditadura, seus integrantes assumiram postos no poder, a exemplo de Golbery do Couto e Silva e Ernesto Geisel.

Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais, o IPÊS, supervisionou publicações durante a ditadura e distribuiu livros e folhetos

A publicação de impressos ocupou um lugar de destaque entre as atividades desenvolvidas pelo organismo. Entre seus membros estavam o fundador Gilbert Huber Jr., dono da Listas Telefônicas e de um dos maiores grupos gráfico-editoriais do país; Israel Klabin, do setor de papel e celulose; Cândido Guinle, da editora Agir; Décio de Abreu, da Distribuidora Record; e o general Propício Machado, da editora Ao Livro Técnico.

O IPÊS estabeleceu convênios com duas dezenas de companhias do setor editorial, obtendo posição estratégica na supervisão do que se publicava no país. De fevereiro de 1962 até junho de 1963, distribuiu para todo o Brasil um total de 2,24 milhões de livros e folhetos.

Em 1963, o IPÊS subsidiou o primeiro romance de Rubem Fonseca, Os Prisioneiros, através da editora de Gumercindo Rocha Dórea, a GRD, especializada em literatura brasileira, ficção científica, geopolítica e segurança nacional.

Morto em 2021, Dórea era militante integralista e chegou a ser homenageado enquanto vivia pelo deputado federal Carlos Jordy (PL), ainda vereador, na Câmara Municipal de Niterói. Quem recebeu a honraria na Câmara na época foi o dito historiador Breno Zarranz, próximo da família Bolsonaro. Flávio Bolsonaro estava presente na ocasião.

Além de Rubem Fonseca, Dórea lançou por sua editora os primeiros livros de Nélida Pinõn e textos de Dinah Silveira de Queiroz. Fonseca era ex-comissário de polícia, executivo da Light e escritor iniciante, e um dos líderes do IPÊS.

Casamento civil em salão decorado, com homens e mulheres em trajes formais, período histórico marcado por tensões da ditadura e pela circulação restrita de livros críticos.
Casamento de Gumercindo Rocha Dorea, em 1954. O bolo era um mapa do Brasil. O integralista Plínio Salgado foi padrinho.

Anticomunismo financiado pelos EUA

A GRD foi tema do livro Guerra Fria e Política Editorial – A Trajetória da Edições GRD e a Campanha Anticomunista dos Estados Unidos no Brasil, da professora de História da UFBA, Laura de Oliveira. A pesquisa detalha o convênio entre a editora e a Agência de Informação dos Estados Unidos (USIA), responsável por financiar a publicação de obras de interesse cultural dos EUA.

Operando dentro da embaixada no Rio de Janeiro, a USIA fomentou, entre 1953 e 1973, a edição de mais de 3 mil livros no Brasil, dos quais 48 foram pela GRD. Mais de 60 editoras teriam se beneficiado de subsídios da agência, especialmente a Fundo de Cultura (da família de Olavo Bilac), a Lidador e a Record.

A aliança IPÊS/USIA lançou no Brasil o clássico Animal Farm, de George Orwell, por meio da editora Globo, de Porto Alegre. O título pelo qual ficou aqui conhecido, A Revolução dos Bichos, foi obra do tradutor, o capitão Heitor Aquino Ferreira. Já o pacto com a Agência dos Estados Unidos para Desenvolvimento Internacional (USAID), produziu, via Bloch Editores, 1 milhão de folhetos da Aliança para o Progresso.

Réplica da Estátua da Liberdade em cidade brasileira, em cenário associado ao contexto simbólico e cultural dos anos de ditadura e da influência de livros e ideias.
Réplica da Estátua da Liberdade na Vila Kennedy, no Rio de Janeiro, construída com recursos da Aliança para o Progresso

Em dezembro de 1964, outro programa estadunidense, o Franklin Book, se estabeleceu no Centro de Bibliotecnia do IPÊS (gerido pelo filho do editor José Olympio, Geraldo J. Pereira) e na Fundação Roberto Simonsen, da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). A Câmara Brasileira do Livro (CBL) e a Comissão do Livro Técnico e do Livro Didático (Colted) também adotaram o programa.

Fundada em 1966, a Colted foi fruto do acordo entre o Ministério da Educação e Cultura (MEC) e a USAID, e produziu um “boom” no mercado editorial. Os militares criaram programas de compra de livros didáticos em larga escala, como forma de incentivar e, ao mesmo tempo, controlar o setor editorial. Somente em 1970, o Movimento Brasileiro de Alfabetização, o Mobral, encomendou cerca de 50 milhões de livros às editoras Abril e José Olympio.

A Record e a Agir, ao lado da GRD, também são citadas pela historiadora e pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas, Martina Spohr, como atuantes no espectro da direita. “Um dos diretores da Record, Décio de Abreu, era líder do IPÊS. Apesar de patrocinadas pelo instituto, essas editoras não traziam em seus livros o rótulo do IPÊS”, revela Spohr, que escreveu uma dissertação sobre as três companhias.

“O que mais me chamou a atenção foi uma coleção de traduções de livros com teor anticomunista para jovens e crianças. Foram publicados pela Record, alguns no formato em quadrinhos. Na leva estavam A Guerra Revolucionária Comunista, do militar brasileiro Francisco Ruas, e Você e a Democracia, de Dorothy Gordon, mãe do embaixador estadunidense Lincoln Gordon, agente do golpe. “Meu argumento é que essas publicações vêm no bojo de se contrapor a editoras progressistas, como a Civilização Brasileira, que publicavam textos sobre as reformas de base, reforma agrária e outras pautas do período”, considera.

Publicação de livros anticomunistas no Brasil teve dinheiro dos EUA. Título do livro a Revolução dos Bichos, de George Orwell, foi traduzido por capitão.

Saraiva, Melhoramentos, Delta, Guanabara Koogan, Freitas Bastos, Editora Brasil-América, Vecchi, Monterrey, Atheneu, Reader’s Digest, Francisco Alves e Companhia Editora Nacional estavam entre as outras companhias que se associaram ao IPÊS. Algumas estavam ligadas ao programa editorial da entidade, de cujo Grupo de Publicações/Editorial faziam parte Rachel de Queiroz, Augusto Frederico Schmidt e Odylo Costa Filho.

O instituto contou com colaborações esparsas de Gilberto Freyre, Érico Veríssimo, Austregésilo de Athayde, Dinah Silveira de Queiroz e Alceu Amoroso Lima. Cofundador da Agir, Lima se tornaria ativo opositor da ditadura. “Muitos escritores e intelectuais apoiaram a ditadura num primeiro momento e outros, como Rachel de Queiroz, continuaram a apoiar depois”, observa Joana Monteleone.

Carlos Drummond de Andrade foi um dos que não escondeu sua simpatia inicial ao golpe de 1964 ao registrar em seu diário (O Observador no Escritório) uma “sensação geral de alívio” com a deposição de Jango. Com o tempo, o poeta se tornaria crítico do regime.

Professor de Sociologia da Unicamp, Marcelo Ridenti menciona que muitos autores expressavam plena concordância com os ideais do movimento de 1964, enquanto outros, como Érico Veríssimo, os aceitavam com certa reserva.

Conforme Ridenti relata em seu livro O Segredo das Senhoras Americanas: Intelectuais, Internacionalização, Financiamento na Guerra Fria Cultural, Veríssimo expunha em cartas sua opinião: “continuo confiando no nosso Castelinho, que tive o prazer de conhecer em Poços de Caldas, quando coronel. Mas às vezes acontecem coisas que me revoltam e eu tenho de soltar um protesto, muito embora sabendo que já estaríamos todos mortos e enterrados se o Brizola tivesse ganho a parada”.

Já a escritora Nélida Pinõn mantinha, segundo ele, posição ambígua.“Nélida foi redatora da revista Cadernos Brasileiros, financiada pelo Congresso pela Liberdade da Cultura, sediado em Paris, que, por sua vez, era financiado secretamente pela CIA. Parte da intelectualidade de esquerda escreveu para a revista. A escritora tinha uma aproximação com os Estados Unidos, onde morou, e também com Cuba, onde foi premiada e recebida por Fidel Castro. Ambiguidades dos intelectuais na Guerra Fria”, conclui.

Letrados a serviço da literatura e da ditadura

Considerado o principal editor do país na época, José Olympio oferecia na sede de sua editora concorridos almoços nos quais se reuniam escritores e políticos feito Guimarães Rosa e o presidente-militar Castelo Branco. Ao lado de clássicos da literatura, ele lançou os livros sobre geopolítica do general Golbery do Couto e Silva, ideólogo da Escola Superior de Guerra e articulador do golpe de 1964.

Os seus textos são adotados até hoje em bibliotecas militares. Eminência parda da ditadura, Golbery foi o mentor do Serviço Nacional de Informação, o SNI, órgão de espionagem do governo ditatorial gestado ainda nos tempos do IPÊS. Em 1954, ele redigiu o Manifesto dos Coronéis, protesto de oficiais contra o aumento de 100% do salário mínimo concedido por João Goulart, então ministro do Trabalho. No ano seguinte, participou da conspiração que tentou impedir as posses de Juscelino Kubitschek e Goulart na presidência e vice-presidência da República.

O assessor de imprensa de Golbery no IPÊS era José Rubem Fonseca – a quem teria apresentado ao editor Gumercindo Rocha Dórea. Uma das lideranças do instituto e chefe do Grupo Editorial, Rubem Fonseca redigia e supervisionava o conteúdo de textos e roteiros de filmes, livros, panfletos, apostilas e projetos diversos. Ao lado do general Heitor Herrera, ele foi o locatário do imóvel da sede no Rio de Janeiro.

Rubem Fonseca foi um dos principais elos entre empresários, militares e jornalistas. “Ele coordenava uma assessoria de imprensa que pautava textos jornalísticos para desestabilizar o governo Jango. Esse material era fartamente reproduzido na mídia, como no Repórter Esso”, descreve a historiadora Joana Monteleone.

Recluso em seus anos como celebrado escritor, pouco falava sobre seu passado político. Em rara nota à Folha de S. Paulo, em 1994, o autor procurou minimizar sua atuação no IPÊS, alegando que fizera parte da ala democrática e que se afastara do instituto em 1964. Em 2001, em fax enviado ao Fantástico, da TV Globo, foi enfático: “Já ouvi que eu teria colaborado com o governo militar, o que é uma deslavada e estúpida falsidade. Se algum papel desempenhei durante a ditadura, foi o de vítima”. A queixa se referia à censura a uma de suas obras em 1976, fato que o fez angariar a simpatia da esquerda.

Embora sua filha tenha recentemente declarado que o autor se desligou do instituto após o golpe, Rubem Fonseca esteve associado a ele até próximo de seu fechamento, em 1972, conforme registros da entidade.

À época, ele e Rachel de Queiroz integravam outra associação patronal correlata, o Movimento Universitário de Desenvolvimento Econômico e Social (MUDES). Em 1979, ele se tornou diretor do Departamento de Cultura da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro, nomeado pelo prefeito “biônico” Israel Klabin, ex-membro do IPÊS. Sua secretária era Nélida Piñon.

Primeira mulher a ingressar na ABL, em 1977, Rachel de Queiroz era uma autora popular quando ingressou nos quadros do IPÊS. Autointitulada “fiadora do governo”, escrevia artigos de encomenda na revista O Cruzeiro, atacando Jango e o PTB ou enaltecendo Castelo Branco e Emílio Médici.

Em carta enviada ao último, em 1972, escreveu: “(…) cada vez me sinto mais obrigada e fiel a esta Revolução, encarnada na figura do Presidente Emílio Médici. Cada vez tenho mais orgulho neste Brasil novo que vamos construindo, de 1964 para cá. Aliás, quem acompanha minha modesta atuação jornalística, facilmente pode verificar a adesão e solidariedade constantes que mostro em relação aos feitos e obras e políticas revolucionárias”.

Reunião formal no Conselho Federal de Cultura em 1970, com escritores e acadêmicos ligados à produção de livros durante o período da ditadura.
Rachel de Queiroz, Guimarães Rosa e Ariano Suassuna e demais no Conselho Federal de Cultura, em 1970

Queiroz promovia reuniões em casa com Golbery e o escritor Adonias Filho: “era conversa de conspiração, no duro”, afirmou em biografia. Em entrevista à historiadora Isabel Lustosa, declarou ter conspirado por um golpe de direita desde o segundo governo de Getúlio Vargas. E também revelou que tramou na tentativa de golpe para impedir as posses de Juscelino e Jango em 1955. Já era, portanto, uma golpista experiente quando participou do governo de seu amigo e parente Castelo Branco na década seguinte.

Em 1966, ela foi nomeada delegada brasileira na Assembleia Geral da ONU e passou a integrar o Diretório Nacional da ARENA, partido governista. No ano seguinte, se tornou integrante do Conselho Federal de Cultura (CFC) – órgão atrelado às políticas do MEC que teve entre seus membros Manuel Bandeira, Adonias Filho, Guimarães Rosa, Ariano Suassuna, Gilberto Freyre e Miguel Reale. Em 1971, coproduziu o conteúdo de livros didáticos de Educação Moral e Cívica editados pela José Olympio.

Por seus préstimos, recebeu comendas do Exército e foi condecorada com a medalha Marechal Mascarenhas de Moraes – também dada a Vernon Walters (oficial estadunidense que participou do golpe), Alfredo Stroessner, Delfim Netto, Alexandre Garcia (jornalista assessor de João Figueiredo) e a todos os presidentes militares.

Militante trotskista na juventude, a romancista exibia com orgulho sua atuação no governo militar. Em entrevista concedida ao programa Roda Viva, em 1993, ela explicitou sua colaboração com o golpe e a profunda amizade que a ligava a Castelo Branco. Confrontada pelo escritor Caio Fernando Abreu, limitou-se a dizer que não tinha arrependimento e ainda sustentou a defesa do ditador, alegando que ele não tinha culpa pelo o que se sucedera com o país após Costa e Silva assumir a presidência.

Freyre, Rosa, Queiroz, Suassuna e Veríssimo: as relações com o governo militar

Menos engajado do que sua colega cearense, mas amigo próximo de Castelo Branco, o sociólogo Gilberto Freyre exaltou em artigo de jornal a “saudável presença das Forças Armadas na vida pública brasileira”, em 1964. Apesar da sua biografia, o autor de Casa-grande & Senzala liderou uma campanha de perseguição a intelectuais adversários em Pernambuco – como o professor João Alfredo, reitor da Universidade do Recife, onde o educador Paulo Freire dirigia o Departamento de Extensões Culturais.

Em artigo ao Diário de Pernambuco publicado em 26 de maio, Freyre cobrou punição severa contra os “ninhos comunistas”, que deveriam ser objeto de “uma operação corajosa de limpeza”. Em junho, o reitor foi afastado.

Prima “por afinidade” de Rachel de Queiroz, Dinah Silveira de Queiroz também utilizou a imprensa para validar o governo militar – do qual fez parte como embaixatriz. Casada com o diplomata Dário Moreira de Castro Alves, fixou residência em Brasília, onde estabeleceu colaboração com o Correio Braziliense como jornalista do grupo Diários Associados. Entre 1970 e 1982, não economizou elogios aos chefes do Executivo.

Em editorial laudatório de 21 de junho de 1973, louvou o “grande Presidente Médici” como um dos “governos mais profícuos que a República nos deu” e saudou Ernesto Geisel como líder ideal para o prosseguimento da revolução: “aprendemos a contar muito com os homens da Revolução de 1964 que são de muito fazer e pouco dizer, e o povo brasileiro bem se afeiçoa a esses líderes da ordem pacífica, num mundo tão desordenado e controvertido”. Ainda em 1973, a escritora ganhou a Medalha do Pacificador.

Diplomata que ao lado da esposa Aracy de Carvalho se empenhara em salvar judeus da Alemanha nazista, Guimarães Rosa era chefe da Divisão de Fronteiras do Itamaraty quando ocorreu o golpe de 1964. Discreto em público, em correspondência mantida com amigos festejou a derrota do “dragão perigoso e feroz”, metáfora atribuída ao comunismo, e demonstrou satisfação com a deposição do presidente: “Jango estava ‘dopado’ ou mais emburrecido ou louco? Graças a Deus”.

Em 1965, Guimarães Rosa recebeu o título de Comendador de Mérito Militar e no ano seguinte foi protagonista de uma reunião do Conselho de Segurança Nacional sobre divergências com o Paraguai em relação ao Salto de Sete Quedas, onde, anos depois, seria construída a usina de Itaipu. No Conselho Federal de Cultura, participou de resoluções para o acordo ortográfico, da criação de concursos literários e da avaliação de projetos para ações culturais. A colaboração com o regime foi breve: Rosa faleceu de infarto em 19 de novembro de 1967, aos 59 anos.

Membro do CFC entre 1967 e 1973, Ariano Suassuna alinhou-se inicialmente às ideias nacionalistas e conservadoras promovidas pelo governo, apoio que refletia sua defesa da cultura popular como elemento crucial para a afirmação da identidade nacional. Em artigos da imprensa, justificou a adesão: “o motivo principal de eu, em princípio, dar meu apoio aos Soldados é que, não tenho partido, meu partido é o Brasil – e o único Partido que eu vejo com organização e força suficientes para comandar nosso processo de emancipação é a Força Armada Brasileira”.

Entretanto, Suassuna foi crítico da censura, autoritarismo e entreguismo. Sua peça A Farsa da Boa Preguiça foi parcialmente censurada em 1975 por conter críticas sociais sutis à ordem estabelecida. Amigo de Paulo Freire e Dom Hélder Câmara, tornou-se, paulatinamente, defensor da abertura política.

Em carta escrita em 1969 a um amigo, Érico Veríssimo expressava o que muitos intelectuais pensavam no período, simpáticos à gestão militar, mas críticos das restrições às liberdades democráticas: “seria muito pior se tivéssemos uma ditadura de esquerda extremista. Ou a volta do Jango e do Brizola. O que mais me assusta é o “terror cultural” […]. Mas se houvesse habilidade ou, melhor, justiça, bom senso, eles deixariam em paz o setor cultural. É uma estupidez equiparar crítica construtiva com subversão. Estou desolado”.

A despeito da insatisfação de alguns intelectuais conservadores, os que se perfilaram plenamente ao projeto de poder militar foram recompensados com cargos, honrarias e benesses. Afeitos a medalhas e cerimoniais, os militares não pouparam homenagens a simpatizantes do regime discricionário – vivos ou mortos.

Em 1973, oficiais promoveram dupla homenagem ao laurear o sociólogo e escritor Luís da Câmara Cascudo, anticomunista e integralista de carteirinha, com o Prêmio Henning Albert Boilesen – criado após a morte do presidente da Ultragaz, líder ipesiano e patrocinador do MUDES e do órgão de repressão e tortura OBAN/DOI-Codi.

Do outro lado, repressão e censura a escritores que se opunham à ditadura

Enquanto os intelectuais que apoiavam ou faziam vistas grossas à ditadura floresciam, autores e editores não alinhados ao governo militar eram perseguidos ou mesmo presos. Esse foi o caso de Ênio Silveira, militante do PCB e sócio da Editora Civilização Brasileira – um alvo predileto das forças da repressão. A sua editora sofreu um atentado a bomba e ele foi preso por sete vezes durante a década de 1960. Em uma de suas detenções, Silveira foi acusado de, entre outras faltas, ter oferecido uma feijoada ao governador Miguel Arraes.

Grupo de homens em trajes formais reunidos em evento social, em contexto histórico ligado à elite intelectual e ao apoio de setores da cultura e dos livros à ditadura.
Editora Civilização Brasileira, cujo um dos sócios foi Ênio Silveira (à esquerda), militante do PCB, sofreu atentado a bomba durante a ditadura. À direita está Luís Carlos Prestes. Foto de 1961.

Outro alvo preferencial foi o escritor e jornalista Carlos Heitor Cony, mesmo sendo apontado como coautor do editorial “Basta”, do Correio da Manhã, que pedia a saída de Jango. Ele declararia, anos depois, que sua participação no texto se limitou a “uma linha e ao corte de um parágrafo”. Cony foi, de fato, um dos primeiros críticos do golpe civil-militar, taxando-o de “revolução de caranguejos” em editoriais do jornal.

Em novembro de 1965, juntamente com Antônio Callado e outros intelectuais, participou de um protesto contra Castelo Branco. Encarcerados durante quase um mês, Callado, Cony e o cineasta Glauber Rocha criaram, respectivamente, três obras-mestras dos anos de chumbo: os romances Quarup e Pessach: A Travessia e o filme Terra em Transe, que seriam lançadas em 1967.

Após responder a diversos processos e inquéritos, ser detido por “delito de opinião”, ter sua casa invadida e sofrer ameaças de sequestro de sua filha, Cony deixou o país em 1967, se auto-exilando em Cuba por um ano. Na volta ao Brasil, foi preso mais uma vez, somando até o final da década um total de seis prisões.

Ao lado da perseguição a autores, o “terrorismo cultural” promoveu censura a obras de nomes consagrados, como Primeiro de Abril, de Mário Lago, O Casamento, de Nelson Rodrigues, Roque Santeiro, de Dias Gomes, Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, e A Revolução Brasileira, de Caio Prado Júnior – ele próprio, preso em 1970, acusado de subversão. Em 1977, Lygia Fagundes Telles entregou no Ministério da Justiça um abaixo-assinado de mais de mil signatários contra a censura de obras. Nélida Pinõn, chamada de “esquerdista” por Rachel de Queiroz por ter se tornado mais progressista ao longo dos anos, foi uma das signatárias.

Cerca de 470 livros foram vetados pela censura federal, incluindo Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca, em 1976. Censurado por 13 anos, o livro de contos foi proibido por conter “excesso de palavrões” e “matéria contrária aos bons costumes”. Curiosamente, várias obras de Fonseca foram proibidas em Roraima durante o governo de Jair Bolsonaro, notoriamente defensor da ditadura.

Estátua diante de prédio histórico da Academia Brasileira de Letras, símbolo da relação entre intelectuais e livros durante a ditadura.
Ex-presidente da Academia Brasileira de Letras negociou com militares e garantiu uma cadeira na instituição para militar que assinou AI-5

A Academia Brasileira de Letras e a caserna

Em sua longa história, a Academia Brasileira de Letras sempre esteve ligada à elite intelectual e política brasileira. E, por vezes, ligou-se ao autoritarismo, quando o poder foi assim representado.

A partir de 1964, a instituição teve mais de um representante na cúpula do governo militar. Membro da ABL desde 1954, o jornalista e historiador Luís Viana Filho foi ministro da Casa Civil do governo Castelo Branco e integrante do triunvirato próximo ao presidente, ao lado de Golbery, chefe do SNI, e de Geisel, chefe da Casa Militar.

Para o poeta e jurista Pádua Fernandes, a centenária instituição costuma ter relações com o poder. “A ABL elegeu o general Lyra Tavares, mas também elegeu membros comunistas como João Cabral de Melo Neto. Então não dá para dizer que ela aderiu à ditadura, mas que convivia com ela”, considera.

Presidente da ABL por 34 anos, Austregésilo de Athayde soube tirar proveito dessa convivência. Diplomado na Escola Superior de Guerra, onde tornou-se assíduo conferencista, Athayde pleiteou com os generais a doação de um antigo edifício, o Pavilhão Inglês, para a construção de um centro cultural para a academia. Como moeda de troca com Médici, a entidade reservou em 1970 uma cadeira ao general Aurélio de Lyra Tavares, ex-ministro do Exército, signatário do AI-5 que participou da Junta Militar que governou brevemente o país após Costa e Silva.

De acordo com o jornalista Elio Gaspari, o militar, que usava o pseudônimo Adelita, jamais fez as pazes com a gramática. Mas sua cadeira na Casa de Machado de Assis garantiu sua “imortalidade” e o financiamento para o edifício do centro cultural, que finalmente se concretizou durante o governo Geisel, em 1975. O empréstimo foi facilitado pelo chefe da Casa Civil, o quase onipresente general Golbery.

Naquele ano, Juscelino Kubitscheck foi candidato a uma vaga na Academia Brasileira de Letras. Mas seus passos eram dificultados desde que tivera seus direitos políticos cassados. Ele somente participou da cerimônia de posse de Guimarães Rosa na academia, em novembro de 1967, porque Castelo Branco não compareceu – o destino fora providencial: o marechal havia morrido meses antes num acidente aéreo.

Em 1975, sentindo o ambiente acadêmico favorável à sua eleição, o ex-presidente anunciou sua candidatura. Se eleito, sua vitória iria relançá-lo no espaço público e representaria uma derrota para o regime. Então, meses antes do pleito, Golbery chamou a seu gabinete Austregésilo de Athayde para uma conversa sobre os empréstimos e a eleição. Empenhado em contornar a resistência dos militares, JK enviou ao oficial sua obra Por que Construí Brasília. O empenho não surtiu efeito: Juscelino perdeu o terceiro escrutínio para o romancista Bernardo Élis, candidato lançado por Golbery.

A ABL ainda era vigiada pelo SNI no início dos anos 1980, conforme aponta um documento do órgão sobre “infiltração comunista na Academia Brasileira de Letras”. O informe diz que um “grupo forte de acadêmicos trabalha uma candidatura ousada: Oscar Niemeyer, militante do PCB”.

Em 1980, Dinah Silveira de Queiroz se tornou a segunda escritora eleita para a academia e Nélida Pinõn, em 1996, a primeira a presidi-la. Candidata única, Pinõn teve votos de 38 dos 39 acadêmicos. A única abstenção foi de Rachel de Queiroz: uma crise de labirintite a impediu de votar. Três anos depois, resquícios da ditadura ainda ressoavam pela casa literária.

O economista Roberto Campos, ex-militante ipesiano e ministro do Planejamento do governo Castelo Branco, concorreu a uma vaga, com apoio de Queiroz. Celso Furtado (cassado em 1964), Ariano Suassuna e a viúva de Dias Gomes – cuja cadeira Campos assumiria – foram contra sua candidatura. A força do conservadorismo venceu e ele foi eleito. No dia de sua posse estavam presentes José Sarney, Antônio Carlos Magalhães e Roberto Marinho, presidente do grupo O Globo.

Ainda hoje, a Academia Brasileira de Letras se beneficia de sua temporária associação com os militares. Construído com verbas governamentais durante o período da ditadura, o edifício ao lado da sede da ABL foi inaugurado em 20 de julho de 1979. O aluguel de salas do prédio de 29 andares, o Palácio Austregésilo de Athayde, proporciona a renda da ABL até hoje.

Edição:
Editora 1965/Reprodução
Reprodução
Matheus Daisy
CPDoc FGV
Reprodução
Arquivo Nacional

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