Membros do movimento Policiais Antifascismo processaram a União pedindo reparação por danos morais por terem sido vigiados ilegalmente no governo Bolsonaro. O caso tramita desde o dia 5 de junho na 14ª Vara Cível da Seção Judiciária do Distrito Federal, ligada ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Ao menos 579 servidores federais e estaduais de segurança foram alvo de dossiês ilegais produzidos pela antiga Secretaria de Operações Integradas (Seopi) do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), à época chefiado pelo ministro do Superior Tribunal Federal (STF) André Mendonça.
“Quando reflito, percebo que tive oportunidades de trabalho e pedidos de transferência negados, que sofri um ‘bullying’ institucional no período em que fizeram aquele dossiê contra nós… a verdade é que me senti como uma persona non grata”, disse à Agência Pública a investigadora da Polícia Civil do Tocantins Patrícia Vasconcellos.
Membro da coordenação nacional do movimento dos policiais antifascismo, a investigadora afirmou que o governo ainda não compartilhou a íntegra do dossiê produzido pelo MJSP com os policiais espionados, mesmo após a repercussão do caso – que já foi julgado pelo STF. “Só tive acesso a uma página com meu nome e informações pessoais minhas, uma resposta igual à que outros colegas receberam do ministério. Isso serve para comprovar que eu fui alvo desse dossiê, mas essa resposta enxuta, por assim dizer, foi uma decepção”, disse.
Delegado aposentado da Polícia Civil do Rio de Janeiro e membro da coordenação nacional do movimento, Orlando Zaccone foi outro alvo do monitoramento. À Pública, o policial confirmou que os alvos não tiveram acesso à íntegra do dossiê, enxergando neste empecilho um paradoxo – ao menos do ponto de vista legal.
“Quando o STF deliberou sobre o caso, considerou ilegal esse tipo de investigação politica contra servidores, mas a própria Corte também manteve o sigilo das informações. Se é um ato ilegal, isso não pode ser mantido em sigilo”, afirmou Zaccone, presidente da Comissão Especial da Segurança dos Direitos dos Servidores Policiais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). “Temos informação que alguns dos policiais tiveram nome de filhos, de parentes, endereço e outras informações pessoais e sensíveis inseridas neste dossiê, o que é gravíssimo”, disse o delegado.
STF: dossiês são “afronta aos direitos fundamentais”
Em junho de 2022, o STF decidiu que a fabricação de dossiês com dados pessoais de servidores públicos por seu posicionamento político-ideológico era “ilegal”, equiparando a prática do governo Bolsonaro a violações de direitos humanos e a métodos da ditadura militar. O caso dos dossiês ilegais foi revelado em 2020 pelo jornalista Rubens Valente no UOL.
A relatora do caso no STF, ministra Carmen Lúcia, disse em seu voto que “o uso da máquina estatal” para coleta de informações sobre pessoas – servidores públicos contrários ao governo Bolsonaro, naquele caso – “caracteriza desvio de finalidade e afronta aos direitos fundamentais de livre manifestação do pensamento, de privacidade, reunião e associação”.
No mesmo julgamento, o atual decano da Corte, ministro Gilmar Mendes, afirmou que os dossiês ilegais foram criados “não em virtude do risco” ou para “evitar a ocorrência de eventuais atos criminosos ou terroristas”, mas “em virtude do exercício da liberdade de expressão e de crítica das pessoas monitoradas” – algo “incompatível com o regime de proteção às liberdades constitucionalmente estabelecido”.
A fabricação de dossiês contra indivíduos foi uma prática recorrente no governo Bolsonaro não apenas na antiga SEOPI e no MJSP, mas também na Agência Brasileira de Inteligência (Abin), como prova a prática de fichamento ilegal de líderes caminhoneiros segundo seu grau de “ameaça” ao governo em 2020 pela agência, então sob comando do hoje réu pela trama golpista Alexandre Ramagem (PL), revelada pela Pública.