O último dia da programação de aniversário da Agência Pública se iniciou com debate sobre barbárie e violência na política entre Anielle Franco, diretora do Instituto Marielle Franco e pesquisadora; e o sociólogo e professor José Cláudio Sousa Alves, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), autor de livro sobre poder das milícias e que já foi entrevistado pela Pública em 2019. A conversa foi mediada pelo jornalista e pesquisador Bruno Paes Manso, autor de República das Milícias, que também já foi entrevistado no podcast Pauta Pública. Enquanto o debate se desenrolava, o público podia mandar perguntas para os convidados, que foram selecionadas e lidas pela repórter Clarissa Levy.
O evento, transmitido no canal de Youtube da Pública, aconteceu no dia 20 de março, de forma online. Abordou as consequências duradouras do assassinato da vereadora Marielle Franco, crime ainda não solucionado; e a falta de vontade política que permite que a violência seja utilizada contra novas lideranças. Nas eleições municipais de 2020, a Pública monitorou os casos de violência política e identificou que a reta final do pleito registrou um caso de violência política a cada 3 horas. No segundo turno, foram cinco casos por dia.
3 anos do assassinato de Marielle Franco
“O Brasil e o mundo merecem uma resposta”, iniciou Anielle Franco, se referindo à identificação dos responsáveis pelo assassinato de sua irmã, Marielle Franco, que completou três anos no dia 14 de março. “Não dá mais para continuar como o país da impunidade”, acrescentou ela, que considera que a demora na descoberta dos mandantes não se dá por motivos técnicos. “Esse caso se transformou em um caso político. É disso que se trata”, finalizou.
Anielle também pontuou que a atuação de sua irmã, que fazia política de forma “diferente”, “com afeto”, e “com diálogo”, inspirou mulheres e novas lideranças, o que também traz novos desafios. “Como que a gente cuida dessas mulheres eleitas? Como que a gente lida olhando todas essas mulheres negras, trans que foram eleitas, se sentindo tão ameaçadas a exercerem seus mandatos?”, questionou.
“Há mais de 500 anos o discurso bélico de segurança pública serve para perseguir e matar pessoas negras no Brasil”, lembrou Anielle. “A gente não se curva, a gente não se cala, mas a gente tem que se cuidar. São pessoas perigosas demais”, concluiu a pesquisadora e diretora.
O Rio de Janeiro
“O que aconteceu com o Rio de Janeiro?”, perguntou o mediador Bruno Paes Manso para o professor José Cláudio, lembrando que a cidade se destacou na economia mundial nos últimos anos por ter sediado grandes eventos — como a Copa do Mundo e as Olimpíadas — pela riqueza gerada pela exploração de recursos naturais.
“Foi o desmoronamento de um castelo de cartas”, resumiu o professor em resposta. “Você criou uma grande fachada, o Cristo Redentor estava flutuando acima das nuvens de braços abertos acolhendo o mundo, mas lá embaixo, no subterrâneo dessa estrutura toda você tem os porões, os porões da morte, do sofrimento, da tortura, dos assassinatos.” “Isso subterraneamente já estava sendo implodido há muito tempo, é que agora vem à tona, agora se releva, se expressa, cai essa máscara toda”, acrescentou o pesquisador, que considera que a eleição de Jair Bolsonaro marca a “queda final dessa máscara”.
“Hoje o Rio vive o que ele sempre foi. Ele sempre foi o Rio da violência, da desigualdade, das favelas massacradas por operações, de inúmeras Marielles Franco sendo mortas”.
As milícias
O professor também analisou a relação das milícias — que estiveram envolvidas no assassinato de Marielle Franco, como lembrou Anielle — com a política.
“A milícia se consolida muito, já tem o fenômeno agora da segunda geração de milicianos sendo eleitos, filhos de milicianos sendo eleitos”, explicou. O professor apontou a existência de relações “que fortalecem a manutenção das milícias” e são estabelecidas entre os milicianos e partidos, prefeitos e o governo do estado do Rio.
“A milícia controla votos, controla a economia naquela região, controla o acesso à campanha eleitoral. A milícia é uma grande jogada” e “se torna imbatível” em algumas regiões.
Em resposta a pergunta do público, José Cláudio também falou sobre a relação entre a milícia e as religiões evangélicas, o que ele considerou como um dos temas “mais complexos”.
Ele avalia que essas igrejas se constituem como “espaços de recomposição de projetos de vida destruídos”, como desemprego, famílias separadas, doença, dependência química e disputa com o tráfico ou milícias. Dessa forma, tornam-se espaços importantes, por conseguirem “elaborar o sofrimento para essas pessoas, e dar um sentido para esse sofrimento”, especialmente para os moradores de periferias, onde existe o “desmonte da estrutura do Estado”, como “projeto”.
Porém, o professor identifica que “o mundo evangélico hoje está sendo disputado por dentro”, e que pessoas que inicialmente se alinharam à extrema-direita e à milícia, estão sentindo os efeitos “dessa política da extrema-direita, tão violenta, tão brutal”. “Há resistências, mas há também os apoios”, resumiu, ressaltando que “não adianta ir para confronto e para a estigmatização do mundo evangélico’”.
Perspectivas para o futuro
Para o professor José Cláudio, o presidente Jair Bolsonaro já está se mobilizando e organizando para permanecer no poder, o que não se dará com “tanques nas ruas”.
“Esse negócio de golpe, como foi em 64, isso não é mais necessário. Não precisa mais de tanque nas ruas, de fuzil nas mãos, de pastelar a imprensa e prender pessoas”, afirmou. “Hoje a disputa dessa guerra, que eles estão travando, é uma disputa em WhatsApp, em Facebook, em Twitter. É uma disputa na comunicação, em ganhar mentes e corações, em construir mitos que eles possam acreditar para jogar para frente”. “É uma outra expressão de uma outra dimensão de guerra”.
Por isso, o professor considera que, para que a esquerda seja vitoriosa, ela precisa se modificar e se aproximar das pessoas. “A esquerda não percebe que você tem que ter dimensões identitárias, mas você tem que ter um embate de política nacional mais consistente, que fale para a população mais pobre de dimensões próximas a eles”. Anielle concorda, citando também a falta de uma “autocrítica racial” no meio.
Caso as coisas permaneçam como estão, José Cláudio avalia que “temos a grande chance de que, mesmo que a esquerda assuma o poder em 2022, ela vá naufragar lá na frente”.
Porém, existe esperança: “A gente só está aqui, eu só estou aqui, porque eu vejo a saída”. “[Marielle] nunca esteve morta”, afirmou o professor. “Essas pessoas não desaparecem, jamais desaparecerão”.