“A morte estava na atmosfera”
A primeira coisa que aprendi quando cheguei ao Mato Grosso do Sul foi a pensar na morte. Me surpreendia a presença dela na fala dos indígenas, mas não só deles. A morte estava na atmosfera de todo mundo que vivia naquele lugar e o enxergava sob a ótica de um dos mais violentos conflitos de terra do país. Os índices não deixavam dúvidas. Em 2016, o primeiro ano em que estive lá, a média foi de quase dois Guarani e Kaiowá mortos por mês – além de 16 tentativas de assassinato computadas pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Liguei para o fotógrafo João Roberto Ripper e contei sobre o trabalho. Pedi instruções. Estando lá, só me vinham à cabeça as suas narrativas dos 16 anos consecutivos em que ele documentou esse povo. Nessa época, meados dos anos 1980 e início dos 1990, as retomadas de terra estavam no auge e os repórteres podiam acompanhar as famílias indígenas que entravam nas fazendas para retomar o território tradicional.
Entretanto, a criminalização do movimento fez com que os próprios Guarani e Kaiowá revissem essa prática, e hoje em dia nenhum não indígena pode acompanhá-los neste momento extremamente perigoso.
Eu estive na retomada do território Tey’i Jusu, no município de Caarapó, fundado em 2013. “Você está fazendo o mesmo que eu fiz quando tinha a sua idade”, me disse Ripper. Eu estava com 30 anos; Ripper, com 60. O cálculo é fácil: os Guarani e Kaiowá estão há pelo menos três décadas saindo do confinamento imposto pela política indigenista do antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI).
Na época de Getúlio Vargas, foram criadas oito reservas indígenas, que somavam quase 19 mil hectares, para a segunda maior população do país. Levados compulsoriamente para esses locais, os indígenas em pouco tempo se viram obrigados a sair. A memória dos mais velhos os levou ao lugar de origem, que às vezes ficava a dias de distância. Em algumas situações, percorriam esse caminho a pé.
O ano da Constituinte, 1987, testemunhou as retomadas de terra dos Guarani e Kaiowá já em avançado processo. As reservas do SPI existem ainda hoje. Mas, por conta dessas iniciativas (e da mudança na política indigenista) de voltar para os territórios ancestrais, algumas Terras Indígenas (TI) novas já foram reconhecidas pelo Estado. Tey’i Jusu faz parte da Terra Indígena Dourados Amambai Peguá I. Essa TI está em processo de demarcação, mas a morosidade do Estado em finalizar o procedimento fez com que os índios ocupassem seis aldeias entre 2012 e 2016 como forma de pressionar o andamento das etapas conclusivas.
Eu estava lá em 2016. Passei algumas noites com as lideranças que na semana seguinte iriam sofrer o ataque que ficou conhecido como o Massacre de Caarapó, quando o agente de saúde indígena Clodiodi Aquileu, de 23 anos, foi assassinado.
Foi duro entrar no Hospital da Vida, em Dourados, e rever Kunumi deitado na cama de operação. “Sou eu, Ana. Pode me contar como aconteceu?” Eu me segurava para não sugerir pena ou medo no meu olhar. Kunumi estava com uma bala alojada a milímetros do coração. A remoção é perigosa, dizem os médicos, e o projétil continua lá.
Na última vez que o visitei, em agosto de 2017, ele capinava no sol quente. Estava plantando mandioca crioula com os parentes no intervalo entre uma fumigação e outra do agrotóxico da fazenda contígua. Enquanto o avião com o veneno não passa, estão até conseguindo vender o excedente. Nessa última visita, conheci também o primeiro bebê nascido em Tey’i Jusu. Todo mundo estava alegre.
“Escrevia em vermelho, intenso como sangue”
Eram 2 da madrugada quando cheguei à cidade de Dourados, Mato Grosso do Sul. Apesar da ansiedade, consegui dormir um pouco. Depois de um tempo, acordei ao som de uma voz agitada do lado de fora da casa. Ao sair, o indígena Manuel buscava uma caneta, mas só encontrou um velho lápis colorido vermelho de ponta grossa.
Em português e na língua guarani, ainda desconhecida para mim, ele anotava informações de um lugar onde ocorrera um ataque. Temia que um novo massacre, como o de Tey’i Jusu, um mês antes, se repetisse.
Sem se dar conta da analogia, escrevia em vermelho, intenso como sangue. A mesma cor com a qual a história dos Guarani Kaiowá continua sendo escrita. Reconheço que ler essas histórias que violam todos os tipos de direitos humanos, do conforto de um sofá em uma cidade tranquila, não tem nada a ver com testemunhá-las diretamente. O ditado “O que os olhos não veem, o coração não sente” assume outra dimensão.
Em campo, a morte, com a qual andamos de mãos dadas todos os dias, deixou de ser algo distante e se tornou um monstro tão real quanto imensurável. No campo, no chão, a morte adquire essas dimensões, ao mesmo tempo que crescem a resistência e a coragem presentes nos Kaiowá.