EP 1 Um estranho que chega
Uma conversa despretensiosa abre uma janela para um passado desconhecido.
Na casa de uma amiga em comum, em Cambridge, Massachusetts, a jornalista Natalia Viana conhece Lucretia Slaughter, uma senhora que diz ser descendente de uma mulher acusada de ser bruxa no século 17. Intrigada, Natalia começa uma jornada em busca dos vestígios que ainda sobraram daquele episódio, e acaba indo parar na capital mundial do Dia das Bruxas – Salem. Conhecida pela história das Bruxas de Salem, a cidade foi recriada em filmes de Hollywood e centenas de livros e lendas urbanas, e é também palco da festa de Halloween mais famosa dos Estados Unidos, atraindo milhares de turistas a cada ano.




Mas, por mais que tenha virado fantasia, a história das Bruxas de Salem é real. Ou melhor, o que é real é que há mais de 330 anos, em 1691, houve uma caça às bruxas nessa cidadezinha a 40 quilômetros de Boston, em Massachusetts, nos Estados Unidos. Três séculos depois, munida da curiosidade de repórter, e do gosto por uma boa história, Natalia inicia sua jornada visitando uma distante biblioteca, para tentar encontrar documentos que tragam revelações sobre como tudo ocorreu.
Transitando entre séculos, a jornalista tenta recompor as cenas e os eventos que levaram à caça às bruxas mais conhecida do mundo. Uma história de terror real, e um podcast narrativo como você nunca ouviu antes. Ouça agora o primeiro episódio da série.
Leia abaixo o roteiro do episódio na íntegra:
[Natalia Viana]
A última mensagem que recebi dela ecoava as anteriores. Me pareceu triste. Ela dizia: “Natália, não consigo te dar uma entrevista nem mesmo online. Minha saúde está muito ruim. Boa sorte com seu projeto”. Foi no começo desse ano, mas já tinha quatro anos que eu estava tentando essa entrevista. Queria ter algum registro sonoro, algum lastro real do nosso encontro mais de três anos atrás.
[Natalia Viana]
Conhecer a Lucretia Slaughter, uma senhora americana de cerca de 70 anos que nasceu e cresceu em Massachusetts, foi como um portal de entrada para uma das investigações mais fascinantes que eu fiz na minha vida. Eu só vi a Lucretia uma vez. Cheguei num domingo à noite ao décimo andar de um dos poucos prédios altos na cidade de Cambridge, uma das mais antigas dos Estados Unidos, fundada em 1630, quando ainda era uma colônia inglesa.
[Natalia Viana]
Em Cambridge, a vida gira em torno da Universidade de Harvard, fundada em 1636. Eu tava estudando em Harvard graças a uma bolsa. E durante meses vaguei pelos gramados verdes e salões centenários da universidade. Tudo ali tem uma atmosfera de outro tempo. Os prédios de pedra escura parecem grandes palácios com pés-direitos altos e colunas de inspiração romana.
[Natalia Viana] 
Ali em Cambridge, dá pra sentir ainda hoje o legado do colonialismo inglês na maneira como as pessoas falam e até como olham umas pras outras. Ou como evitam olhar. Eu nunca me senti em casa ali. Então eu passava todos os domingos na casa da escritora Anne Bernays, que me acolheu como uma grande nova amiga.
[Natalia Viana]
Anne é bem mais velha do que a Lucretia e ainda muito mais velha do que eu, tinha 92 anos na época. Mais que o dobro da minha idade. Anne Bernays é uma escritora conhecida com livros best-sellers e vem de uma linhagem prodigiosa. Seu pai, Edward Bernays, foi responsável por revolucionar a propaganda moderna, levando para os anúncios os desejos ocultos do nosso subconsciente. É por causa dele que em uma propaganda de cerveja a gente vê duas mulheres de biquíni em vez de uma lista sobre as qualidades da bebida. Desejos inconscientes, um conceito que Edward aprendeu do seu tio, Sigmund Freud. Sim, a Anne Bernays é a sobrinha neta do Freud. E eu confesso que o meu fascínio pelos domingos na sua casa vinha um pouco daí.
[Natalia Viana]
Todo domingo ela reunia na sua sala professores, escritores, jornalistas e sentávamos em sofás com cálices de vinho jogando papo fora e olhando para a bela sacada que se debruçava sobre o rio Charles. Até que uma noite eu conheci a Lucretia Slaughter. Quando ela me foi apresentada, seu nome me chamou a atenção. Para mim, Lucretia sempre soou como um nome meio de bruxa. Slaughter significa massacre, matança em inglês. Mas a Lucretia era sorridente, alegre. Nos conectamos imediatamente. Ela me contou que sempre viveu em Massachusetts e que era tão filha da terra que uma das suas antepassadas chegou a ser acusada de bruxa durante as famosas caçadas às bruxas do século XVII.
[Natalia Viana]
Sabe quando tudo ao seu redor parece ficar em suspenso? Como assim caça às bruxas? Então ela me contou um pouco mais sobre a viúva Winifred Holman, uma senhora que viveu em meados do século XVII. Ela era sua tatatataravó. Acusada por muitas pessoas de ser uma bruxa, ela teve uma vida conflituosa e um destino triste. Era o tipo de mulher que vivia brigando com os vizinhos. Um incômodo, sabe? Me dizia Lucretia sem esconder no fundinho um certo orgulho.
[Natalia Viana]
Poucos dias depois, chegou no meu e-mail uma mensagem simpática da Lucretia com uma cópia de um livro da Sociedade Genealógica da Nova Inglaterra contendo um relato detalhado da história da Winifred Holman. Naquele e-mail que ela me enviou em 21 de março de 2022, a Lucretia me mandava uma dica preciosa: “Procure a Sociedade Histórica de Cambridge para pesquisar mais sobre a caça às bruxas”. E me sugeriu pegar um trem para uma cidadezinha alguns quilômetros dali. “Você já deve ter ouvido falar das Bruxas de Salém?” Ela me perguntou.
[Arquivo do filme Abracadabra]
Winy… Olha!
[Arquivo do filme Abracadabra]
Irmãs, preparem-se. É a força vital dela. A porção funciona. Pegue em minhas nãos…
[Natalia Viana]
Claro que sim. Todo mundo já ouviu falar das Bruxas de Salém, mesmo sem saber direito onde fica Salém. No filme Abracadabra, que tem a Jessica Parker e a Bette Midler, a cidade aparece como um cenário onde moram bruxas reais que matam crianças para obterem vida eterna. O ano no filme é 1683 e a Bette Midler se chama Winifred.
[Natalia Viana]
Como em todo filme da Disney, confusões, danças, batalhas de feitiços e mulheres voando, com vassouras. E no fim, os mocinhos acabam salvos e as malvadas bruxas mortas.
[Natalia Viana]
Mas eu não sabia que em Salém houve uma caça às bruxas real registrada em documentos oficiais. Foi a história de Winifred que me levou a uma busca que hoje já dura anos. Eu queria conhecer essas mulheres que foram mortas como bruxas, queria conhecer suas histórias e entender qual era esse mundo que as julgava e condenava. Onde foram fundadas as bases da nossa orgulhosa civilização ocidental. Um mundo onde o Estado enforcava mulheres a céu aberto.
[Natalia Viana]
Eu sou a Natalia Viana e este é o podcast Caça às Bruxas. Episódio 1: Um estranho que chega.
[Sean O’Brien]
No final das contas, só existem duas histórias no planeta, certo? As únicas duas histórias que existem são: alguém sai em uma jornada ou um estranho chega à cidade. Toda a história começa de um desses dois jeitos. E em 1688, em Salem Village, a pequena e isolada parte de Salem Town, um estranho chega à cidade. E o nome dele é Samuel Parris.
[Natalia Viana]
Esse que você está ouvindo é o Sean O’Brien, um guia que me apresentou a verdadeira história de Salém e que vai nos acompanhar na nossa jornada. E para deixar tudo ainda mais assustador, usamos inteligência artificial para que o Sean pudesse falar em português. Não se preocupa, que ele adorou isso.
[Natalia Viana]
Na história que eu vou contar, um estranho chega numa cidadezinha do interior da colônia inglesa no ano de 1688. E eu saio junto com você em uma jornada para entender tudo o que aconteceu depois.
[Natalia Viana]
Estamos aqui na Derby, praça Derby, onde eles têm, na verdade, uma recriação de como era o City Hall, que era o lugar de encontro da comunidade da cidade de Salem, do município de Salem. E, de fato, aqui as construções são todas reconstruídas para parecer como elas eram naquela época. Não é que são as originais, mas elas são feitas. E a gente vai ter, daqui a pouco a gente vai começar o tour do Sean, nosso grande guia. Tem um outro tour aqui que está saindo da escada. Vamos chegar lá no lugar. Tem uma escadaria aí para uma porta grande de madeira, que é esse prédio, esse Town Hall, né? Com uma… Um arco em cima da porta, uma coisa assim, umas lâmpadas daquelas antigas de iluminação. Aquela época tudo vela, né gente? Não podemos esquecer. Então, aquelas lamparinas. Recria aquelas lamparinas.
[Arquivo do filme Abracadabra]
Mas é tudo com uma carinha para parecer antigo.
[Giulia Afiune]
Para parecer… Olha lá, olha lá o Sean, vamos lá falar com ele.
[Natalia Viana]
Hi, hello, Sean! Hello good to see you again.
[Sean O’Brien]
It’s been so long.
[Giulia Afiune]
Yeah, good to see you again.
[Sean O’Brien]
I will see you 415! The 415!
[Natalia Viana]
Esse é o vozeirão do Sean, ele está chamando as pessoas para se juntarem ao tour, né? Ele disse que o tour, né? O número de pessoas que vão participar é pequeno. Vou explicar um pouquinho como é que é o Sean. Ele é um cara alto. Ele é daqueles típicos americanos, irlandeses, né? Ele é ruivo, bem branco, enfim, meio avermelhado até. E ele sempre se veste mais ou menos de época, né? Com uma boininha, uma roupa assim mais… Ele parece aqueles homens dos anos 30, na verdade, né? Ele parece uma pessoa meio anacrônica nesse lugar.
[Natalia Viana]
Eu estou em Salém, uma cidadezinha de 45 mil habitantes a 27 km ao norte de Cambridge, junto com a jornalista Giulia Afiune. A Giulia veio comigo para Salém para conhecer o maior Halloween do Hemisfério Norte, a maior festa de dia das bruxas. E você já deve ter reparado, mas na gravação eu estou rouca por causa do frio que faz por ali naquela época.
[Natalia Viana]
Essa deve ser minha quarta ou quinta visita à cidade. Passei muitos dias aqui durante meu período nos Estados Unidos. O Sean, além de ser guia, é formado em História e se tornou assim uma estrela guia para o começo da minha pesquisa. Além disso, nós temos outra coisa em comum. A mãe do Sean também é jornalista.
[Sean O’Brien]
Minha mãe tem 1,75m de altura, é ruiva e uma mulher muito, muito orgulhosamente franca, que não guarda suas opiniões. Então, acho que… Desculpe, mãe, se você ouvir4 isso. Mas acho que 100% ela teria sido considerada uma bruxa naquela época. E digo isso com todo o amor e respeito que posso reunir no meu coração. Minha mãe é uma mulher fantástica, que já se meteu em problemas nos anos 60 por não ser comportada como achavam que ela deveria ser, sabe?
[Natalia Viana]
Estamos em 31 de outubro de 2023. Peço a você que guarde a marcação dos tempos como se fossem pedras preciosas, porque nessa nossa jornada nós vamos viajar por séculos diferentes indo e vindo em busca de entender o nosso passado e o nosso presente. Não podemos nos perder.
[Natalia Viana]
Saindo da Praça Central de Salém, no ano de 2023, guiadas por Sean e com um grupo de turistas, caminhamos pelas ruas de paralelepípedo da cidade e vamos adentrando o ano de 1688, ali onde começa a origem da Caça às Bruxas de Salém. E ela começa com a chegada de um estranho, o pastor Samuel Parris e a sua família a Salém. Aqui, o Sean se refere a ele como ministro, que é uma das maneiras de chamar os pastores na religião puritana.
[Sean O’Brien]
Ele chegou para se tornar o novo ministro de Salem Village. Samuel Parris é um personagem interessante. Nasceu em Londres, mas cresceu aqui em Massachusetts. Estudou em Harvard por alguns anos, mas abandonou o curso antes de se formar e se mudou para o Caribe, na ilha de Barbados. Lá, ele administrou a plantação de açúcar da família por vários anos. Mas, eventualmente, um furacão devastou a economia da ilha. Ele teve que vender a plantação e a maioria dos seus escravizados, retornando então para Nova Inglaterra.
[Sean O’Brien]
Em 1687, o homem estava desesperado por um emprego e é claro que ele ouviu que Salem Village de repente precisava de um novo ministro. Na verdade, mais do que isso. Ele soube que eles já haviam passado por cerca de três ministros nos últimos sete anos. É uma taxa de rotatividade bem alta. Ele pensa: “Bom, se estão tendo tanta dificuldade para encontrar um bom ministro, por que não eu?” Talvez ele conseguisse o emprego. E ele se candidata e consegue. Provavelmente para sua surpresa tanto quanto para a de todos os outros. Agora, ele é qualificado para ser ministro porque estudou em Harvard. E naquela época, Harvard basicamente oferecia apenas dois cursos, teologia e direito. A faculdade de medicina ainda não existia. Mas o fato é que ele se instala com a família e se torna o novo ministro da Vila de Salem.
[Natalia Viana]
Quero dar um close em quem era essa família do pastor Samuel Parris. Em 1688 moravam com ele na casa dedicada ao pastor, a sua esposa Elizabeth Eldridge e os seus filhos Thomas, a caçula Susannah e a garota Elizabeth Parris de 9 anos. Morava também uma sobrinha Abigail Williams de 11 anos, companhia inseparável de Betty Parris. Guarda esses nomes.
[Natalia Viana]
Além da família, moravam na casa um casal de escravizados. Tituba, uma indígena Arawak da região que hoje seria Venezuela ou Suriname e o seu marido conhecido apenas como John Indian. Preste atenção nela. A Tituba vai ser importante na nossa história.
[Natalia Viana]
Por agora, imagine essa indígena então com uns 25 ou 27 anos trabalhando como serva doméstica na casa dos Parris. Não existe eletricidade. Toda casa é regida pelo temor a Deus. Uma casa muito religiosa e ela limpa tudo e prepara comida. O que significava naquela época matar os animais, depenar, tirar os ossos, fazer a farinha, coar o leite, fazer a manteiga, o queijo e servir a família 24 horas por dia.
[Natalia Viana]
Tituba não vê a própria família desde a infância porque, segundo os historiadores, o mais provável é que ela tenha sido sequestrada da sua terra por escravizadores espanhóis e comprada pela família de Samuel Parris em Barbados, onde ele cuidava da fazenda do seu pai até que faliu e decidiu voltar para Boston. De volta à Boston, ele soube da vaga para pastor na Vila de Salem e foi contratado. Mas quando Samuel Parris chegou ao vilarejo, as famílias estavam em guerra.
[Natalia Viana]
Em resumo: um dos grupos era ligado aos Porters, donos de vastas terras no leste da cidade, mais próximas ao porto de Boston e mais liberais. Já os Putnams, mais conservadores, moravam ao oeste, mais para dentro do continente. Não gostavam nada das ideias liberais e queriam manter-se fiéis aos ideais que os fizeram atravessar o Atlântico. Construir, na cidade sobre a montanha, uma comunidade de virtudes e sem nenhum mal.
[Natalia Viana]
Os puritanos que vieram para a colônia estavam fugindo de uma revolta na Inglaterra que impôs uma reforma na igreja e que levou ao anglicismo, mais liberal e ligado à família real até hoje. Então, eles chegaram na América desconfiando da igreja e querendo construir comunidades extremamente religiosas, mas menos hierarquizadas e controladas pelo poder da igreja, onde a relação com Deus podia ser professada dentro de um centro comunitário e não de uma igreja suntuosa. Os puritanos seguiam fielmente regras de comportamento, como jamais trabalhar aos domingos, ouvir os sermões do pastor e, em especial, o papel do homem como chefe da casa e da mulher, sempre temente, primeiro a ele e depois a Deus, acima de todos.
[Natalia Viana]
A chegada do pastor Samuel Parris vinha com o apoio deste grupo mais religioso e trazia a ideia de que, finalmente, depois de meses sem um pastor, a comunidade poderia voltar a espiar de si todo o mal e todo o pecado.
[Sean O’Brien]
O lugar onde estamos agora era chamado de Salem Town em 1692 e naquela época tinha uma população de aproximadamente 2 mil pessoas. A 8 km de distância, escondida no meio da floresta, completamente isolada, viviam as 500 pessoas que formavam Salem Village. E eles gostavam desse isolamento. Os moradores de Salem Village não se davam muito bem com seus vizinhos. Para ser honesto, eles nem mesmo se davam bem entre si. Salem Village era um lugar extremamente contencioso e cheio de conflitos. Mas é exatamente ali que nossa história vai começar.
[Natalia Viana]
Três anos depois, em 1691, a relação dele com seus fiéis não era das melhores. Havia dois grupos opostos na vila. Um mais conservador e temente a Deus, outro mais liberal. Ele era ligado ao mais conservador e religioso. Samuel também não tinha uma personalidade tranquila. Adorava uma confusão. Já tinha brigado sobre o valor de seu salário, sobre a propriedade da casa em que morava.
[Natalia Viana]
Então, no começo do inverno de 1691, um dos mais frios desde a fundação da colônia, cortaram seu suprimento de lenha que era o que mantinha as casas aquecidas naquele tempo. Mas ninguém imaginava que a raiz de todo mal começaria exatamente na casa do pastor Samuel Parris. Betty Parris, a filha de Samuel, então com nove anos, foi a primeira a adoecer. Em novembro ou dezembro de 1691.
[Natalia Viana]
De repente, a menina ficou doente. Mas de uma doença que ninguém conhecia. Do nada ela começava a se contorcer. Caia no chão e reclamava de dores por todo o corpo. Como se alguém a estivesse espetando com uma tesoura ou com uma faca, um objeto invisível. Ou com mil agulhas que ninguém conseguia ver.
[Natalia Viana]
Eu não estou inventando nada disso. Isso tudo está registrado em inúmeros documentos históricos. Como jornalista, eu não tenho como atravessar os séculos. Tudo que posso saber dessa história está nos documentos que ainda restam daquele período. Eles são um pouco áridos, como esse trecho: “31 de maio de 1692. O depoimento da testemunha Abigail Williams declara que em diversas ocasiões no mês passado, particularmente nos dias 15, 16, 19, 20, 21, 23 e 31 daquele mês e nos dias subsequentes em vários momentos, assim como no presente mês, a referida Abigail tem sido extremamente atormentada por uma aparição na Vila de Salem. Por meio dessa aparição, ela tem sido puxada violentamente, frequentemente beliscada, quase estrangulada e, por vezes, tentada a se jogar no fogo”.
[Natalia Viana]
Cheguei a esse documento, assim como a dezena de outros, depois da dica da Lucretia Slaughter. Meu percurso foi bem jornalístico. Escrevi para a Sociedade Histórica e Genealógica de Nova Inglaterra. Não tive resposta. Depois encontrei um contato no Peabody Essex Museum, o museu da região que compreende Salém. E dali eu cheguei à Biblioteca Phillips. Era ali que estavam guardados os preciosos documentos sobre a caça às Bruxas de Salém.
[Natalia Viana]
Era uma biblioteca perdida no meio do nada, mais de 20 km para o norte, no fim de uma estradinha tortuosa que sai de uma daquelas autoestradas enormes que cruzam os Estados Unidos. Nem tinha transporte público até lá e eu tive que conseguir uma carona com um estranho que me deixou na próxima estação de trem. Mas eu estava fascinada e emocionada quando consegui manusear os documentos, cheios de letras pequenininhas escritas à mão na caneta-tinteiro, de maneira a economizar papel que era algo raro em 1692.
[Natalia Viana]
As fotos destes documentos e outros registros históricos você pode encontrar na página deste podcast, no site da Agência Pública.
[Natalia Viana]
A bibliotecária me entregou ao longo de uma tarde toda dezenas de documentos escritos por escribas, juízes, conselheiros e governadores, todos homens de respeito e poder sobre o período em que o mal se apossou de Salém. Neles eu consegui ouvir os ecos da voz de Abigail Williams, a segunda a ficar doente. Antes dela, sua prima, Betty Parris, tinha ficado com essa estranha aflição. Eu tive pena delas. Sabe-se muito pouco sobre o passado de Abigail, mas ela era órfã. Seus pais podem ter sido vítimas das batalhas pelo norte dos Estados Unidos contra os franceses. Ela teria chegado à casa do tio com muitos traumas, muito medo do que viu e do que viveu. Isso só aguça minha vontade de repórter. Me imagino tentando entrevistá-la alguns anos depois de toda essa história que poderia marcar o resto da sua vida.
[Natalia Viana]
Abigail Williams, muito obrigada por ter topado falar comigo. Você, quando começaram as aflições, eu estou chamando assim, você vivia com seu tio, né? O Samuel Parris.
[Abigail Williams]
Sim.
[Natalia Viana]
Você gostava de viver com eles? Era uma vida feliz?
[Abigail Williams]
Olha, eu tinha vindo de uma situação muito ruim. Não sei se você sabe.
[Natalia Viana]
Me conta.
[Abigail Williams]
Eu morava com os meus pais num assentamento mais pro norte. Havia vários assentamentos assim, onde moravam apenas algumas dezenas de famílias. A gente era feliz, mas havia muitos ataques vindos do norte. De nativos, de índios, de franceses. E mataram meus pais. Eu fiquei órfã.
[Natalia Viana]
Sinto muito, Abigail.
[Abigail Williams]
Então, eu vim pra Salém, foi bom. Meu tio era bastante rígido, mas eu fiz amizade com as minhas primas, com as vizinhas.
[Natalia Viana]
Você tinha 11 anos, mais ou menos, e a Betty Parris tinha 9.
[Abigail Williams]
Isso. E eu também fiz amizade com outras meninas. A Ann Putnam, que tinha 12 anos. A Elisabeth Hubbard, que já tinha 17.
[Natalia Viana]
E o que vocês faziam juntas?
[Abigail Williams]
A gente brincava. Mas a gente fez coisas das quais eu me arrependo.
[Natalia Viana]
Como assim?
[Abigail Williams]
Eu tenho medo que a gente tenha brincado com fogo.
[Natalia Viana]
O que vocês fizeram?
[Abigail Williams]
Pouco antes de tudo começar, eu tava com a Betty no nosso quintal e a gente decidiu fazer um jogo pra saber nosso futuro.
[Natalia Viana]
E como é que era esse jogo?
[Abigail Williams]
Era um jogo que era muito comum entre as mulheres. A gente queria saber se a gente ia casar, se a gente ia ser feliz. Então, a gente jogava a clara de um ovo dentro de um copo e a forma que aparecia dizia alguma coisa sobre nosso futuro.
[Natalia Viana]
Mas por que você diz que você se arrepende?
[Abigail Williams]
Porque a gente viu a forma de um caixão.
[Natalia Viana]
Foi depois disso que tudo começou?
[Abigail Williams]
Foi depois disso que tudo começou.
[Natalia Viana]
Pouco depois daquela brincadeira inocente os surtos começam. E na mente daquelas crianças fazia muito sentido que uma coisa tivesse levado a outra. Com o passar dos dias e das semanas os surtos ficam ainda mais agonizantes. A Abigail anda de quatro pela casa e late, não responde a perguntas em inglês, se recusa a falar a língua dos homens. Sua prima Betty segura a cabeça com as mãos grita como se tivesse com uma dor agoniante no corpo e desmorona no chão.
[Natalia Viana]
Já em novembro, o pastor Samuel Parris reclamava da situação em seus sermões, dando indiretas aos vizinhos com quem vivia brigando, dizendo que havia forças de Satã cercando a aldeia. Desesperado, ele decide chamar um médico amigo dele e de enorme confiança na vila, o doutor William Griggs, e ele examina as meninas.
[Natalia Viana]
Depois de um longo silêncio e de muitos testes, vem o diagnóstico. Samuel ouve atentamente. “Não há nenhum mau físico que as acomete”, diz Griggs. O problema que eles têm diante de si não tem causas físicas, mas só pode ser resultado de uma mão diabólica. The Evil Hand. O que só poderia ser uma coisa naquela colônia inglesa religiosa ao extremo em pleno século XVII: Bruxaria.
[Natalia Viana]
Por hoje é isso. Encerramos aqui o primeiro episódio da série Caça às Bruxas. Mas na semana que vem, eu e você vamos voltar para Salém. Te encontro no seu tocador favorito.
[Natalia Viana]
E se você não conhece a Pública, eu te convido para visitar o nosso site e conhecer nossas investigações premiadas: www.apublica.org
[Natalia Viana]
Caça às Bruxas é uma produção original da Agência Pública de Jornalismo Investigativo. Esse podcast foi dirigido por mim, Natalia Viana. Eu fiz a pesquisa histórica e a reportagem com colaboração de Giulia Afiune, que também captou os áudios em Salém. Eu também escrevi os roteiros dos episódios com colaboração da Sofia Amaral.
[Natalia Viana]
A Sofia Amaral também coordenou a produção da série com apoio da Stela Diogo e da Rafaela de Oliveira. Tanto a narração quanto as cenas de dramaturgia foram gravadas no estúdio da Agência Pública com trabalhos técnicos de Stela Diogo e Ricardo Terto. A Mika Lins fez a direção de narração e de dramaturgia. O desenho de som foi feito por Ricardo Terto, que também fez a edição e finalização dos episódios. A trilha sonora original é de Paulo Sartori com trilhas adicionais de Epidemic Sound. A identidade visual é do Matheus Pigozzi.
[Natalia Viana]
Nesse episódio tivemos Lucia Bronstein como Abigail Williams.
[Natalia Viana]
Registro aqui os nossos agradecimentos à Lucretia Slaughter, à Witch City Walking Tours, que liberou o tour com o Sean em Salém pra gente usar nesse podcast, ao Peabody Essex Museum, e à Phillips Library. Além do Noah Friedman-rudovsky, meu grande amigo que sempre me acolhe quando vou aos Estados Unidos, e aos aliados, graças a vocês esse podcast e outros podem acontecer.
[Natalia Viana]
Homenageamos também todas as mulheres que morreram como bruxas, e as suas filhas,  netas e descendentes. A sua memória não será esquecida.
 
			








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