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Entrevista

Com democracia sob ameaça, jornalismo precisa mudar, diz pesquisador americano

"Líderes políticos, inclusive no Brasil, participam da economia da atenção", diz Joshua Scacco, da Universidade do Texas

Entrevista
20 de setembro de 2022
15:00
Este artigo tem mais de 1 ano

“Só porque alguém é governador ou presidente não significa que seu discurso deva ter uma plataforma”, diz o professor Joshua M. Scacco, da Universidade do Texas, que estuda como novas tecnologias influenciam a mídia, o governo e as instituições nas democracias. “Alguns líderes políticos populistas estão usando as regras do jornalismo, o treinamento dos jornalistas, contra eles mesmos”, complementa. 

Na avaliação do pesquisador, esse pensamento se aplica tanto para os EUA, como para o Brasil: por lá, ele avalia que a invasão ao Capitólio deixou feridas no país que ainda não foram sanadas e podem colocar em xeque a democracia no país. 

Aqui, ele aponta que a repercussão sem críticas de falas antidemocráticas podem mais ajudar a criar uma situação de caos do que evitá-las. “Uma das coisas que os jornalistas deveriam estar fazendo neste momento é desescalar essas situações, porque os líderes políticos estão contando com essa escalada para conseguir jogar a imprensa contra as pessoas”, sugere. O pesquisador explica que, nos EUA, “uma das coisas que queremos estabelecer é a diferença entre o ‘direito de fala’ e o ‘direito de alcance’ – essa diferença faz sentido, segundo ele, na política de “desplataformização” de agentes que usam as plataformas para espalhar Fake News. 

Nesta entrevista para a Agência Pública, ele fala também sobre veículos jornalísticos que se alinham a políticos antidemocráticos e acabam se tornando parte do ambiente desinformativo. “Uma das razões pelas quais esse tipo de discurso chegou até a Casa Branca e a Donald Trump foi porque a Fox News o trazia de espaços de direita e de extrema-direita onde havia má-informação e desinformação”, diz. 

Joshua Scacco é professor da Universidade do Texas. Joshua é um homem branco com cabelos e olhos escuros, ele veste um terno cinza, gravata preta e camisa azul.
Joshua Scacco, professor da Universidade do Texas

Desde o ataque ao Capitólio nos EUA, nós brasileiros temos nos perguntado se um evento similar pode ocorrer no Brasil, durante ou após as eleições deste ano. O senhor acredita que isso é possível e, se for, o que o jornalismo e as instituições podem fazer para evitar?

O Brasil e os Estados Unidos têm estruturas democráticas muito diferentes em termos de como ocorre o voto, em termos de instituições democráticas em geral, assim como [têm] cidadãos muito diferentes. É preciso ter cuidado com as comparações e pensar particularmente sobre como a cobertura jornalística em si pode estar promovendo esse tipo de possibilidade que ainda não aconteceu.

No momento, os jornalistas deveriam estar lidando com o que já se sabe, não com as incógnitas. E a razão para isso é que líderes políticos ao redor do mundo, inclusive nos Estados Unidos e no Brasil, participam da economia da atenção.

Algumas das coisas que os políticos dizem, incluindo falas antidemocráticas — desde ameaças contra jornalistas e indivíduos até provocações às estruturas da democracia — são feitas porque eles sabem que isso atrai atenção. Por isso, uma das coisas que os jornalistas deveriam estar pensando e fazendo neste momento é desescalar essas situações, porque os líderes políticos estão contando com essa escalada para conseguir jogar a imprensa contra as pessoas.

As redações e os jornalistas deveriam estar se preparando agora para pensar em como eles vão cobrir as eleições de modo que o foco seja a democracia e não necessariamente apenas os candidatos e as coisas que eles dizem. 

Ataque ao capitólio dos Estados Unidos no dia 6 de janeiro de 2021.
Para Scacco, jornalistas deveriam aprender a “desescalar” situações perigosas

Evitar o jornalismo declaratório é um ponto válido. No entanto, é inegável que existam ameaças à democracia ou mais claramente ao sistema eleitoral. Como fazer reportagens sobre isso? Como foi a cobertura nos EUA e qual sua avaliação sobre erros e acertos?

Eu acho, em primeiro lugar, que a cobertura da mídia nos Estados Unidos não é culpada pelo que aconteceu em 6 de janeiro de 2021 [a invasão do Capitólio]. Donald Trump é o culpado pelo que aconteceu. É importante [dizer isso] porque, no final das contas, o presidente que está no comando tem que assumir a responsabilidade.

Em segundo lugar, os meios de comunicação não entenderam a realidade de Donald Trump durante toda a sua presidência. Isso é muito claro. A forma como o cobriram espalhou suas mensagens antidemocráticas ainda mais do que teria acontecido apenas no Twitter. Os jornalistas estavam jogando com a economia da atenção, porque sabiam que cobrir Donald Trump potencialmente atrairia os espectadores.

O que precisamos pensar é: como os jornalistas podem reorientar o foco da atenção nesses momentos específicos em que temos líderes que querem basicamente incendiar a democracia?

Os jornalistas são alguns dos principais defensores da democracia nessa situação, sendo capazes de alertar as pessoas mas também de educá-las sobre como a democracia funciona. 

Não se trata apenas de dizer às pessoas que a transferência pacífica do poder é a marca registrada da democracia. Nós ouvimos isso o tempo todo. Ouvimos em todo discurso de posse — nos Estados Unidos, a cada quatro anos: a transferência pacífica de poder é a marca registrada da democracia. No entanto, se você perguntar à maioria das pessoas, elas não saberiam dizer o que isso significa.

Por isso, os jornalistas têm um papel a cumprir nesse sentido, explicando aos indivíduos por que a transferência pacífica do poder é importante, como ela mantém as pessoas seguras. Em 6 de janeiro nos Estados Unidos, pessoas morreram no Capitólio. A transferência pacífica do poder também garante que a vontade dos eleitores seja ouvida e executada no novo governo. Então esse enquadramento dos fatos, das notícias, é muito diferente do que [apenas noticiar que] “o candidato X diz que não aceitará o resultado da eleição”.

Mais de dois anos após o ataque, como é a percepção da população sobre o evento. Há algum consenso?

O que a gente vê é que, pelo menos com relação às pesquisas de opinião pública, a reação se tornou altamente polarizada, com o evento sendo justificado e/ou minimizado por grande parte dos republicanos. Entre os democratas e cada vez mais entre os independentes também, depois do fato, depois das audiências [sobre a invasão do Capitólio no Congresso] dizendo que foi um incidente preocupante.

A linguagem que foi usada e que os pesquisadores têm usado para classificar o evento é que foi uma tentativa de golpe — e os Estados Unidos nunca estiveram em posição de [ter que] usar esse tipo de linguagem antes. E eu acho que os líderes políticos hesitam em fazer isso, porque muitos acham que isso não poderia acontecer nos Estados Unidos. E o que vimos é que pode.

Esse tipo de ação precisa ter consequências. É isso que os líderes do Congresso e o Departamento de Justiça estão analisando. E eles determinarão se indivíduos específicos devem ou não ser responsabilizados.

Ataque ao capitólio dos Estados Unidos no dia 6 de janeiro de 2021.
Pesquisador afirma que invasão ao Capitólio deixou feridas no país

Uma das saídas para o jornalismo cobrir líderes políticos que espalham desinformação é a checagem de fatos. Você considera que a checagem tem cumprido seu papel? 

Eu acho que o fact-checking, quando bem feito, é muito eficaz. O desafio é que os jornalistas escrevem matérias de maneiras específicas que, às vezes, dão destaque primeiro para a má-informação e a desinformação.

O que os jornalistas precisam pensar é em como dar destaque às informações corretas primeiro, que então neutraliza as informações incorretas [mencionadas] em outra parte da notícia. A maioria das pessoas que estão lendo ou assistindo às notícias só vão chegar às primeiras linhas, às manchetes, aos primeiros parágrafos ou primeiros minutos das notícias. 

O tempo de atenção é variável, e há muitas opções de mídia por aí. Então os jornalistas precisam ser estratégicos e pensar em como eles podem publicizar as informações corretas no momento adequado para potencialmente neutralizar as informações falsas que estão por aí.

Isso não significa necessariamente que jornalistas não podem citar diretamente líderes políticos. Significa que eles [também] devem considerar outros fatores quando julgam que é necessário citar esse líder. Só porque alguém é governador ou presidente não significa que seu discurso deva ter uma plataforma em um determinado meio de comunicação. 

Também existem mecanismos de equilíbrio aos quais os jornalistas precisam se atentar, como o fato de a alegação ser ou não apoiada por evidências empíricas; se há de fato ou não evidências para a alegação. 

Os jornalistas têm uma função de guardiães da democracia por uma razão. Os jornalistas não são estenógrafos de políticos. 

Um aspecto importante da difusão de mensagens antidemocráticas são as redes sociais. Qual é sua visão sobre o banimento de conteúdos nas redes?

Uma das coisas que queremos estabelecer é a diferença entre o “direito de fala” e o “direito de alcance”. Nos Estados Unidos, a liberdade de expressão é protegida pela Primeira Emenda à Constituição. No entanto, nas redes sociais, os indivíduos não têm [esse mesmo] direito à liberdade de expressão. São empresas privadas que desenvolveram essas plataformas, e elas podem decidir como administrá-las como bem entenderem.

Dito isso, também precisamos pensar sobre essa questão: só porque alguém pode parar em uma esquina e ficar dizendo o que quiser ou quase tudo que quiser, isso não significa que [essa fala] precise ser transmitida ou receber uma plataforma mais ampla.

A pessoa exerceu sua liberdade de expressão, mas a decisão sobre se e como esse discurso alcançará as pessoas é uma questão completamente diferente. Então, quando pensamos em algo como “desplataformização” funciona, sim. [Essa prática] tem o efeito de tirar o alcance que uma pessoa em particular já teve anteriormente. Ela pode causar um atrito a mais em termos da disseminação de desinformação.

Por outro lado, há um crescimento de plataformas que se posicionam como lugares de liberdade irrestrita de fala, contrárias a qualquer moderação de conteúdo, mesmo de discursos de ódio. Algumas delas, como o Gettr, são inclusive favoráveis ao presidente Trump e a Bolsonaro. Como você avalia isso?

Se você puder conter esses conteúdos nocivos nesses espaços, isso já é uma vitória neste momento em particular. Seria perigoso para o governo intervir e possivelmente tentar derrubar esses espaços.

Dito isso, também tem a questão, por exemplo, de os jornalistas decidirem ou não cobrir o que está acontecendo nesses lugares e como cobri-los. Muitas vezes, é essa cobertura que leva [esses conteúdos] para fora desses espaços. Se esses espaços estão atraindo pessoas, [ainda] é um número relativamente pequeno — o que eu acho importante.

No entanto, isso também pode ter implicações. Se olharmos para o 6 de janeiro, não precisou de muita gente para se envolver nessas ações. Mas uma sociedade livre, com informações livres e públicas, sempre terá esse equilíbrio entre onde paramos e traçamos o limite para [garantir] a segurança e proteção de outras pessoas. E isso não é necessariamente um limite que eu esteja qualificado para definir.

Caminhão de imprensa da Fox News.
Jornais que se alinham a políticos antidemocráticos como a Fox News acabam se tornando parte do ambiente desinformativo

Falamos muito sobre discurso de ódio em plataformas na internet, mas há também uma responsabilidade de veículos tradicionais que por diversas razões se alinham a políticos e reproduzem discursos extremistas. Reportagens recentes têm mostrado o papel da Fox News em difundir mensagens extremistas. Como você avalia isso?

Há pesquisas excelentes sobre isso: que uma das razões pelas quais esse tipo de discurso chegou até a Casa Branca e a Donald Trump foi porque a Fox News o trazia de espaços de direita e de extrema-direita onde havia má-informação e desinformação. Portanto, a Fox News era totalmente parte do fluxo de desinformação que entrava na Casa Branca, e fazia igualmente parte do fluxo de desinformação que saía da Casa Branca. 

Por outro lado, havia jornalistas na Fox News, por exemplo, Chris Wallace, que às vezes se opunha às afirmações de Donald Trump sobre a imprensa ser inimiga do povo. E isso é extremamente importante porque, para combater esse tipo de propaganda e de bolhas de desinformação, você tem que ter fontes de dentro do partido político que está produzindo essa desinformação, de dentro do contexto de onde a desinformação vem, para poder tentar abrir buracos nesse tipo de argumento conspiratório. E esse foi o papel que vimos Chris Wallace fazendo.

Desde então, Chris Wallace já deixou a Fox News. Até alguns mecanismos internos da Fox News para tentar garantir conteúdos corretos foram minimizados desde a eleição. 

O desafio é maior nos programas de opinião da Fox News e o tipo de estratégia que eles têm usado para fazer basicamente com que seus espectadores continuem voltando para ter sempre mais. E isso não é uma prática isolada da Fox News. 

*Colaborou Bárbara D’Osualdo

Arquivo pessoal
Tyler Merbler/Flickr
Tyler Merbler/Flickr
Clemens v. Vogelsang/Wikimedia Commons

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