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Reportagem

Apagando o rastro

Ex-soldados relatam as “Operações Limpeza” a fim de esconder os corpos dos guerrilheiros assassinados durante a repressão à Guerrilha do Araguaia

Reportagem
20 de junho de 2011
13:45
Este artigo tem mais de 12 ano

Numa noite de 1976, Valdim chegou à base militar de Bacaba dirigindo a picape rural. Ele não desceu do carro, mas viu quando colocaram na carroceria um saco verde de lona grossa do Exército. A ordem era não perguntar nada. Mas o odor que vinha do saco o incomodou durante todo o trajeto até a Casa Azul, como era conhecida a sede do Departamento Nacional de Estradas de Rodagem, o DNER. “Foi horrível, era um fedor enorme, me deu até vontade de jogar fora”. A base militar de Bacaba localizava-se no município de São Domingos do Araguaia, e o DNER, em Marabá, ambos no Pará. Eram locais de prisão, repressão e tortura à Guerrilha do Araguaia (1972-1975).

ARAGUAIA: o massacre que as Forças Armadas querem apagar

A mesma viagem de transporte dos sacos verdes de lona foi repetida outras duas vezes por Valdim Pereira de Souza, que trabalhava como motorista do Exército. Em nenhuma delas ele carregou os sacos, e em cada viagem seu acompanhante era diferente. Quando chegava à Casa Azul, a sede do DNER, famosa como local de torturas e execuções, os sacos de lona eram retirados por funcionários – era preciso duas pessoas para carregá-los.

Um dia, o funcionário do DNER, de apelido “Pé na Cova”, contou-lhe que dentro dos sacos havia ossos humanos e que ele os teria levado de barco até a região conhecida como “inflamável”, a parte mais funda do rio Tocantins, perto de Marabá.

O ex-militar conta, também, que o tenente-coronel da reserva Sebastião Rodrigues de Moura, o major Curió, apontado como um dos comandantes das operações no Araguaia, de quem foi motorista de 1976 a 1983, participou do transporte de um dos sacos. Na ocasião, teria dito: “Você não viu nada, fique cego e fique mudo”.

Em 1976, quando Valdim carregou sacos, a guerrilha já havia sido vencida – as tropas militares se retiraram oficialmente em janeiro de 1975. A movimentação de ossos fazia parte de uma das operações limpeza, que consistiam na retirada de restos mortais dos abatidos para dificultar uma eventual busca pelos corpos. Anos depois o Exército ainda negava a existência da guerrilha – que mobilizou 6 mil militares – e depois procurou soterrar vestígios de execuções, mortes sob tortura, decapitações e assassinatos em operações clandestinas.

Essas operações sucessivas de “pente fino” foram realizadas de forma clandestina, por oficiais à paisana. Valdim lembra que demorou a saber que aquele “doutor Luchini” de cabelos compridos e barbudo era o major Curió. Ele conta que andava com outros “doutores”, sem saber quem era civil ou militar. Um deles, o “doutor Carlos”, ele diz ter reconhecido depois, em 1985, quando o viu na televisão ao se tornar chefe da Polícia Federal. “Era o Romeu Tuma, que chamávamos de cara de cavalo. “Ele estava sempre por lá”, garante.

Valdim relatou os fatos ocorrido há 35 anos, apenas em maio de 2010, ao Grupo de Trabalho Tocantins (GTT) – agora, Grupo de Trabalho do Araguaia (GTA). Como ele, outros ex-militares e ex-mateiros que participaram da Operação Limpeza são ouvidos pelo GTA com objetivo de localizar o derradeiro paradeiro dos corpos em determinação à sentença da juíza Solange Salgado, da 1ª Vara Federal.

RESTOS DA GUERRILHA

As informações de Valdim, sobre o transporte de ossos em 1976, também se encaixam com depoimentos colhidos pela juíza Solange Salgado (veja entrevista), sobre uma das primeiras Operações Limpeza, em que militares disfarçados de familiares desenterraram ossadas na região. Mas ele também fala de uma Operação Limpeza, voltada para os vivos – os “restos da guerrilha, aquele pessoal que falava muito e ajudava os guerrilheiros”. “Muitos morreram misteriosamente”, diz. Não é o único. O ex-soldado Manoel Messias Guido Ribeiro, diz ter atuado em uma dessas operações, em 1975. Segundo ele, uma das estratégias do Exército para as capturas era promover festas “para juntar o povão. Muita gente ia e era identificada”.

Também há registros de operações “limpeza” em data muito posterior ao período da guerrilha. A pesquisadora Myrian Luiz Alves ouviu depoimentos de um ex-guia de que militares disfarçados retiraram restos mortais na segunda metade dos anos 1990. O livro “Habeas Corpus – Que se apresente o corpo”, da Secretaria dos Direitos Humanos, cita um relatório realizado pelo ex-ministro da Defesa, José Viegas Filho, que faz referência a “haver ocorrido, entre 1988 e 1993, a denominada ‘Operação Limpeza’. […] Segundo depoimentos, as ossadas, após terem sido retiradas de suas covas, foram submetidas a ácidos e queimadas. Os fragmentos restantes teriam sido enterrados em local incerto ou jogados nos rios da região […]”.

O livro conclui: “a multiplicidade de datas deixa transparecer que pode ter havido mais de uma ‘Operação Limpeza’”.

INDENIZAÇÕES

Os ex-soldados Valdim e Guido estão entre os que reivindicam, na Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, indenizações pelas torturas, prisões e prejuízos que teriam sofrido na época da guerrilha. Ambos relatam que passaram por treinamentos duros, sob a alegação que teriam que estar preparados para enfrentar os guerrilheiros. “O que era para aplicar nos guerrilheiros aplicavam primeiro em nós. Me lembro de coisas como ser jogado em um buraco pequeno junto com outros soldados despidos, e aí passavam uma palha com fogo queimando por cima. Faziam a gente beber lama, sangue. Bebi muito sangue de porco, de galinha. E se chorasse, era porque era mariquinha”, recorda Guido, que serviu na base de Xambioá. Os soldados também eram jogados em formigueiros para aprender a não sentir dor e colocados na “cruz”. “Amarravam os braços e pernas e ficávamos crucificados, pendurados, feito Jesus”, conta Valdim. Na região de Marabá, os moradores e ex-soldados comentam a história do soldado Messias, que após os treinamentos ficou louco e passou a matar animais para beber seu sangue.

Os ex-soldados também alegam sofrer ameaças, relatadas em audiência na Secretaria dos Direitos Humanos, em Brasília, em maio passado. “Meus filhos já se formaram, estão empregados. Agora eu posso falar, se me matarem não vou deixar ninguém passando fome. Há um lado da sociedade que quer descobrir tudo, e o outro quer encobrir tudo. E nós estamos no meio desses caras”, diz Valdim. Ele acredita que dentro do Exército “ninguém quer falar nada, até porque eles não vão admitir que o quartel foi um lugar de tortura”.

Até sobre o tipo de tortura usado nos quartéis pairam dúvidas. Uma das suspeitas é que alguns dos guerrilheiros tenham recebido injeções letais. O livro “Habeas Corpus” cita uma das expedições do GTT na qual esteve presente o ex-sargento João Santa Cruz Sacramento, participante da repressão à guerrilha, que informou estar certo de que duas militantes, Chica (Suely Nakasawa) e Tuca (Luiza Garlippe) foram mortas com injeção e sepultadas ao lado do campo de pouso da base militar de Bacaba.

Outro possível indício do uso da injeção seria o fato de que, durante a Operação Limpeza, a cova de Chica teria sido aberta e seu corpo encontrado intato, sem nenhum sinal de decomposição, apenas marcas de bala, de acordo com depoimento do coronel-aviador Pedro Corrêa Cabral, citado no relatório da pesquisadora Myriam Luiz Alves, que consta do processo do Araguaia examinado pela Pública.

Por Tatiana Merlino, de Marabá (PA) e Brasília (DF)

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