Era sábado de manhã e o encontro havia sido marcado para dali a algumas horas. Com a certeza da entrevista, os detalhes antecipados em conversas informais pairavam no ar. As constantes mudanças de endereço. Amizades quase inexistentes na infância. Os “tiras” que a acompanhavam no caminho para a aula, e a sensação ruim diante da figura de um deles. Um telefonema anônimo pedindo para ela avisar ao “papaizinho” que sabiam da rotina dela.
G.* viveu a infância e a adolescência nos mesmos 19 anos de atuação profissional do seu pai, um delegado que trabalhou durante o período do regime militar brasileiro no Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo (DOPS), um dos órgãos repressores da ditadura.
O nervosismo e o medo de menina permanecem na mulher de meia idade que prefere cancelar o encontro para evitar um desconforto na família, mas dá indício das repercussões dessas histórias em si mesma. “Minha intenção na época [do trabalho de conclusão de curso da faculdade de artes] era fazer uma performance no ex-DOPS. Tinha em mente fazer uma representação da liberdade em uma das celas, em argila em tamanho natural, com alguém filmando em tempo real. Depois começar a interrogá-la, e golpeá-la, de forma que ao final da atuação a estátua se transformasse num amontoado de argila inerte novamente”, revela, sobre o curso que fez já depois dos 40 anos.
A atitude de G.* prenunciou o receio de outros filhos de agentes da repressão em falar abertamente de suas memórias. Outras duas famílias – a de Rubens Tucunduva, que também foi delegado do DOPS, e a de Erasmo Dias, secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo – não se alongam nas respostas. Cristina Cardozo de Mello Tucunduva, 47 anos, a filha caçula de Rubens Tucunduva, diz que era “muito pequena” para lembrar-se das impressões causadas pelo trabalho de seu pai. Mas conta que seus dois irmãos mais velhos também eram escoltados para a escola e, em certas ocasiões, chegaram a não participar do recreio por segurança. A caçula usa o termo “traumático” para justificar a negativa dos irmãos em conceder entrevista. O homem que ao lado do delegado Sérgio Paranhos Fleury comandou o cerco ao líder da guerrilha armada Carlos Marighella, era para ela simplesmente um pai herói.
Através de gerações
Márcia Dias, filha de Erasmo Dias, conhecido por liderar o episódio da “invasão da PUC” em São Paulo, inicialmente se mostrou disposta a conversar. Nas entrevistas que Erasmo concedia, era comum citar uma filha que tinha tentado se matricular na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sem sucesso. Quando indagada se foi ela essa filha, Márcia se limitou a responder: “desisti da entrevista. Sou eu a filha que passou na PUC”.
A recepção de Márcia no dia da matrícula no curso de Direito não foi das melhores. “Não deixaram ela se matricular pelo fato de ser filha do cara que invadiu a PUC. Mas ela não esperava”, conta sua filha Renata Dias Pacheco, de 26 anos.
A jovem comenta a ingenuidade da mãe. “Foi uma coisa que a chocou, ela tinha 18 anos. Foi humilhada verbalmente. Recebeu uma retaliação por uma coisa que ela não fez”. E completa, “eu não quis nem prestar PUC”.
Renata, papiloscopista da Polícia Civil de São Paulo, fala de modo explícito sobre o regime militar e da carreira do avô. Para ela, o assunto na família ou com os amigos não é nenhum tabu. “Nunca tive medo. Sempre defendi a minha posição, defendi meu avô e o que ele fez. Eu acho que na época faria a mesma coisa. Não é à toa que eu segui essa carreira na Polícia Civil, que é uma coisa que tem a ver com o ramo dele”, diz com orgulho. “Como é engraçado que isso, através de gerações, influencie até eu, que sou neta”, acrescenta.
O quebra-cabeça
Marília Reis, neta de Paulo Bonchristiano, delegado aposentado do DOPS, gargalha com a possibilidade de seguir a profissão do avô. “De jeito nenhum! Isso nunca passou na minha cabeça ou de qualquer um dos meus irmãos”. Com 23 anos, a estudante de arquitetura da USP fala abertamente das questões referentes ao avô, por mais que seja um assunto difícil para a família. “Não sei se a gente consegue parar de digerir”.
Sua mãe nunca foi exposta diretamente a esse conflito. “Na minha percepção, nunca educaram minha mãe para ela saber o que estava acontecendo. Acho que a infância dela tem essa coisa meio vaga, esse clima, uma atmosfera meio violenta rondando, mas não era uma coisa declarada, uma coisa palpável”, opina.
A neta de Paulo Bonchristiano conta que ao estudar sobre a ditadura na escola, finalmente soube o que significava a sigla DOPS que acompanhava o título de delegado do avô. A primeira reação foi raiva. “Quem que é essa pessoa, o que ele já fez? Achava que ele só era um cara meio engraçado com umas historinhas de polícia”, conta.
Depois da raiva, tanto Marília, como seus irmãos e sua mãe, tentam montar o quebra-cabeça da figura afetiva de pai e avô, “tipão italiano, de abraçar, beijar, falar muito”, com a imagem de um delegado do DOPS. Hoje, mais adulta, ela não quer apontar o dedo para o avô e exigir explicações, apesar de ainda sondar o assunto com ele. Em conversas mais francas, as anedotas da infância começam a se tornar diálogos mais concretos.
“Já passou a fase de achar que ele era uma pessoa horrível, já passou a fase de achar que as pessoas exageravam. Chegou ao ponto em que ele é só um velhinho”, coloca. “Ele deve ter feito coisas que eu reprovaria, mas eu nunca vou saber. Ele vai morrer sem me falar. Tenho certeza disso.”
Fora do círculo familiar, as questões diminuem por Bonchristiano não ser um nome tão divulgado quanto o de outros colegas de trabalho do delegado. “No primeiro ano de faculdade teve uma greve grande na USP. Na mesma época veio uma reportagem sobre ele. Fiquei pensando se o pessoal na universidade soubesse que eu sou neta dele”. Mas e se soubessem? “Ia responder que sou. Mas sou outra pessoa”.
*Colaborou Daniele Alexandre.
Ilustração por Renan Marcondes.
Essa pauta foi uma das três vencedoras do 4º Prêmio Jovem Jornalista Fernando Pacheco Jordão, promovido pelo Instituto Vladimir Herzog.