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FBI e outras agências americanas treinaram 837 policiais das 12 cidades-sede em cursos diversos, que também incluem investigação digital e relacionamento com a mídia

Reportagem
11 de junho de 2014
16:13
Este artigo tem mais de 10 ano
Demonstração à Imprensa do Curso do FBI. (Foto: Matias Maxx/Revista Vice)
Demonstração à Imprensa do Curso do FBI. (Foto: Matias Maxx/Revista Vice)

Um mês antes do jogo de abertura entre Brasil e Croácia no Itaquerão, a Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro anunciou com alarde que agentes do FBI estavam treinando a tropa de choque para conter protestos durante a Copa do Mundo. O gran finale do curso de “Controle de Distúrbios Civis”, ministrado para 27 policiais do choque e 13 policiais da CORE (unidade especial da polícia civil), guardas municipais e bombeiros foi uma demonstração à imprensa: um soldado representando um manifestante xingava uma pequena guarnição munida de escudos do choque, atirava a camiseta e o tênis sobre os homens, momento em que eles avançavam, cercavam e imobilizavam o “manifestante”. A simulação terminou com uma bomba de gás atirada no chão.

O curso de 40 horas/aula, fruto de um convênio do governo do Rio com a embaixada dos EUA, tinha como temas gestão e controle de multidões, distúrbios civis, planejamento operacional, uso da força, relação com a mídia, uso da inteligência e de informações para auxiliar na identificação de possíveis atos e atores de vandalismo. “Em cima da Copa do Mundo, nós não vamos mudar o ‘modus operandi’”, disse o comandante do da Polícia Militar do Rio, André Luiz Araújo Vidal, no último dia do curso, 15 de maio. “O treinamento foi, sim, para um aprimoramento. Um bom profissional se faz em detalhes”.

Com menor alarde, o mesmo curso foi oferecido à tropa de choque de São Paulo pouco depois, entre os dias 19 e 23 de maio, na sede do 3º Batalhão. Participaram 25 policiais militares e 25 policiais civis, numa parceria da Secretaria da Segurança Pública de São Paulo com a embaixada americana.

O que passou quase despercebido foi que antes de ministrar esses cursos em Rio e São Paulo, essa mesma equipe do FBI de Chicago e Los Angeles circulou por Fortaleza e Brasília treinando profissionais na Academia Estadual de Segurança Pública do Estado do Ceará – onde treinaram PMs do Ceará, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Bahia e Minas Gerais –e na Academia da Polícia Civil do Distrito Federal, de acordo com uma lista obtida pela Pública através de um Pedido de Acesso à Informação.

A lista enviada pela Sesge (Secretaria Extraordinária de Segurança para Grandes Eventos) detalha o treinamento de 799 policiais brasileiros aqui e no exterior, em especial no Centro de Treinamento Regional em Lima, no Peru, e na Academia Internacional para Cumprimento da Lei (ILEA, da sigla em inglês), em El Salvador – ambos os centros são financiados pelo Departamento de Estado Americano. Outros 38 oficiais foram treinados em maio, totalizando 837. Todos os custos, incluindo viagens internacionais, são bancados pelos EUA.

Dessa lista não constam os cursos realizados em parceria direta entre a embaixada americana e as secretarias de segurança estaduais – como aqueles realizados pelo FBI em São Paulo e no Rio de Janeiro.

Os contemplados no documento são aqueles feitos em convênio da própria Sesge com a embaixada, dentro de um extenso programa de treinamento financiado pelo governo dos EUA para a Copa do Mundo e Olimpíadas.

Curso do FBI em Fortaleza (Foto: divulgação)
Curso do FBI em Fortaleza (Foto: divulgação)

Desde 2012, o governo americano vem investido em treinamento policial para os megaeventos no Brasil – a um custo de US$ 2,2 milhões, segundo o jornal Folha de S Paulo. Um desses cursos, segundo revelou o jornal, foi realizado num centro de treinamento da Academi, novo nome da empresa militar privada Blackwater.

Depois da onda de protestos que teve inicio em junho do ano passado, a embaixada tomou a iniciativa de oferecer o curso de “Contenção de Distúrbios” do FBI, com o objetivo de treinar policiais militares das forças especiais que ocupam cargos de comando para que eles se tornem multiplicadores, treinando seus parceiros em cada estado.

Segundo o delegado Andrei Augusto Passos Rodrigues, que comanda a Secretaria Extraordinária de Segurança para Grandes Eventos (Sesge), órgão vinculado ao Ministério da Justiça, o programa prosseguiu sem alteração mesmo depois da tensão diplomática gerada pelas revelações de espionagem americana contra a presidente Dilma Rousseff.

“Existe o que a gente chama de um ‘acordo macro’, um guarda chuva onde os cursos são ofertados, a gente faz a análise do interesse para Secretaria e para o evento, e se é [de interesse] a gente faz a indicação dos profissionais”, disse à Pública. “Nós não pedimos, não propusemos, não indicamos nenhum curso especifico. A organização, a dinâmica, os instrutores, o custeio, o local, é tudo a cargo do governo norteamericano”.

Segundo ele, embora outras forças policiais tenham trocado experiências com os brasileiros, como o Reino Unido e a Alemanha, “o nosso grande parceiro na área de capacitação é a embaixada norte-americana”. E esclarece: “o que teve maior volume de ações, sem dúvida, foi os Estados Unidos”.

Relacionamento com a mídia

Um dos cursos mais curiosos é o de “relações com a mídia”, que teve duas edições na Academia da Polícia Civil do Distrito Federal entre os dias 10 e 14 de março e 17 e 21 de março. Segundo release da SESGE, o objetivo do seminário era desenvolver “ações para se criar uma relação de parceria com a imprensa e, principalmente, construir um sentimento de confiança junto à sociedade”. Uma jornalista da CNN e uma ex-chefe da polícia americana em Washington estavam entre os palestrantes encarregados de mostrar “aos alunos como lidar com os dois lados da notícia”.

Os alunos eram em sua maioria assessores de imprensa das PMs estaduais – que são sempre policiais militares – mas também assessores do Ministério da Justiça, de secretarias estaduais de Segurança e da Polícia Rodoviária Federal. Quanto ao conteúdo, a assessoria de imprensa da Sesge explicou por email: “O workshop consistiu em um processo interativo onde as instituições de segurança pública conheceram todos os desafios e idiossincrasias das relações com a mídia em seus respectivos estados”.

Uma semana depois do último curso, o Ministério da Justiça promoveu o seminário “Cobertura Jornalística em Ações de Segurança Pública”, para o qual convidou 43 jornalistas de todo o país para se hospedarem na Base da Força de Segurança Nacional, no Gama (DF). O repórter da Pública esteve no programa, voltado principalmente para o trabalho da Força nos protestos, que durou 32 horas e terminou com um exercício de “vivência” de um confronto, em que os jornalistas se colocaram na pele dos policiais, utilizando acessórios de Batalhão de Choque, enquanto os policiais faziam o papel de manifestantes, atacando a tropa. (leia aqui o relato)

Jornalistas se vestem de policiais em curso realizado pelo MJ (Foto: Ministério da Justiça)
Jornalistas se vestem de policiais em curso realizado pelo MJ (Foto: Ministério da Justiça)

Investigação digital de celulares

Outro tema recorrente nos cursos oferecidos pela embaixada americana é o da investigação digital, em especial da “investigação forense digital”, técnica de extração, decodificação e análise de dados armazenados em um dispositivo digital.  Entre os dias 11 e 15 de novembro de 2013, os americanos capacitaram 9 oficiais no curso “Consulta Cellebrite”, em Brasília, sobre o uso da ferramenta Cellebrite UFED em investigações forenses de telefones móveis.

UFED (Foto: Divulgação)
UFED (Foto: Divulgação)

A Cellebrite é uma empresa israelense conhecida por sua tecnologia de extração de dados de celulares, uma das mais avançadas do mundo – segundo a própria empresa seu dispositivo UFED é usado por policiais, militares e serviços de inteligência em mais de 60 países. Capaz de extrair até mesmo dados apagados ou ocultos em equipamentos iPhone 5, Blacknerry, e nos sistemas operacionais iOS-6 e Android 4.1, o dispositivo também permite que se extraia os locais onde o seu proprietário esteve a partir das antenas utilizadas por ele.

A empresa tem expandido suas operações no Brasil e recentemente abriu um escritório em São Paulo, que representa toda a América Latina.

Para Joana Varon, pesquisadora do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV do Rio e editora do Boletim Antivigilância, o treinamento oferecido aos oficiais brasileiros é motivo de preocupação. “A tecnologia da Cellebrite permite o acesso a celulares ignorando qualquer tipo de bloqueio prévio, por senha ou PIN, independente do sistema operacional do telefone e do modelo do aparelho.Também é possível coletar dados dos aplicativos instalados no celular, principalmente de aplicativos que guardam registros de nossas comunicações, como Facebook, Facebook Messenger, Google+, Skype, Twitter, Viber, Yahoo Messenger, Whatsapp, ou mesmo de nossos arquivos de trabalho, como o Dropbox e o Evernote”.

O problema, segundo Joana, é que embora a legislação brasileira estabeleça a necessidade de ordem judicial, “um agente treinado só precisa ter acesso ao telefone do cidadão por alguns minutos para conseguir todos os dados que precisa, ou que não precisa, até mesmo sem que o dono do telefone se dê conta”.

“Com poderes assim, aumenta-se a tentação e fica mais latente um eventual conflito de interesses entre respeitar um direito fundamental e fazer o que é possível pela facilidade tecnológica, ainda mais sob a proteção do dogma da segurança”, diz.

Ela lembra ainda que não existe no Brasil uma lei de segurança de dados, o que garantiria normas para a coleta e manutenção de dados dos cidadãos.  “A ausência de uma lei de Proteção de Dados Pessoais no Brasil deixa o contexto ainda pior, pois a forma de proteção dos diferentes tipos de dados pessoais fica indefinida”.

Outros cursos de investigação digital irão acontecer ainda este ano, sem data definida: um novo curso de “Consulta forense em dispositivo móvel” e uma segunda edição do “Seminário Executivo de segurança de investigações digitais”, também financiado pelos Estados Unidos, que em 2013 foi realizado em Brasília entre 11 e 13 de novembro. Também haverá um curso de “identificação e retenção de evidência digital”.

“Notícias sobre uma série de treinamentos de agentes nacionais nesses equipamentos estrangeiros deixam evidente esse processo de ampliação das práticas de inteligência voltadas para monitoramento do contexto nacional, não deixam dúvidas de que o estabelecimento de sistema de vigilância será um dos nossos legados da Copa do Mundo”, avalia Joana.

Proteção de VIPs

Outro curso digno de nota foi o “Projeto Centurion”, que aconteceu em Brasília entre 4 e 7 de junho de 2013, e capacitou operadores para o uso da ferramenta CDI (Center Drugs Information), que “visa a troca segura de informações de inteligência com agências americanas e de outros 51 países que já utilizam a ferramenta”, segundo a assessoria de imprensam da Sesge. Participaram 29 policiais.

Os policias brasileiros também receberam cursos de “proteção de VIPS”, em Lima, no Peru; de como montar uma operação de vigilância em equipe, esse fornecido porinstrutores do Departamento de Estado de Assistência ao Antiterrorismo dos Estados Unidos para 34 agentes da polícia militar, Federal e Rodoviária Federal na Academia da Polícia Civil em Brasília; controle de fronteiras, em Cuiabá, Mato Grosso; programa de segurança de pessoal e de instalações em El Salvador; prevenção contra ataques terroristas em  ônibus e metrô, e ainda “o papel de liderança da polícia no combate ao terrorismo”. Para este ano está previsto um curso avançado de “Direitos de Propriedade Intelectual” ministrado por americanos em El Salvador.

 

Veja abaixo a lista de cursos financiados pela embaixada americana.

 

Doutrina americana

 

As Academias Internacionais para o Cumprimento da Lei, ou ILEAs, na Sigla em inglês, foram lançadas pelo governo de Bill Clinton em 1995, como fomento à aliança estratégica do Departamento de Estado americano com forças policiais ao redor do mundo. Desde então, foram fundadas 5 academias do tipo na Hungria, Tailândia, Botsuana, Novo Mexico, nos EUA, e El Salvador, além de um Centro de Treinamento Regional no Peru – os policiais brasileiros são geralmente treinadess nesses dois últimos. Participam dessas academias agências americanas como a DEA, o FBI, o Serviço de Segurança Diplomático e o Departamento de Alfândega e Imigração.

 

O objetivo, segundo o site oficial do Departamento de Estado, é “ajudar a proteger cidadãos americanos negócios americanos” através do fortalecimento da cooperação internacional contra o crime. A ILEA tem como missão “apoiar a governança democrática através do Estado de Direito; reforçar o funcionamento de livres mercados através do aperfeiçoamento da legislação e aplicação da lei; e aumentar a estabilidade social, política e econômica ao combater o narcotráfico e o crime”.

 

A Academia de El Salvador foi fundada em 2005, sob o governo de George Bush, após longas negociações com governos regionais, que incluíram uma recusa da população da Costa Rica em permitir a instalação do equipamento no país. O Centro de Treinamento no Peru é um “apêndice” da ILEA de El Salvador, funcionando sob sua coordenação mas sem pessoal americano permanente. O budget de ambos em 2013 foi de US$ 4,2 milhões.

 

A participação crescente de policiais brasileiros nos treinamentos faz parte da estratégia do Departamento de Estado que data da guerra fria e que continua sendo uma prioridade dos Estados Unidos, conforme revelaram documentos vazados pelo WikiLeaks. Em um despacho de 2009, a então ministra Conselheira da Embaixada Lisa Kubiske – hoje embaixadora em Honduras –  dizia que – para além da Polícia Federal brasileira, “os maiores parceiros em segurança para os EUA” – “nós temos expandido nossas parcerias em aplicação da lei para incluir governos estaduais e municipais quando apropriado, particularmente nas cidades mencionadas (Belo Horizonte, São Paulo, Brasília e Rio de Janeiro)”.

 

A segurança dos megaeventos também aparece com um dos principais temas na pauta de reuniões diplomáticas bilaterais desde 2009 de acordo com os documentos vazados. Os EUA não só estavam preocupados com a segurança e a possibilidade de ataques terroristas  durante os megaeventos mas buscavam intensificar as colaborações em áreas críticas. “A preocupação, recentemente ampliada, com a infraestrutura brasileira depois do blecaute, aliada à necessidade de resolver desafios de infraestrutura na contagem regressiva para a Copa de 2014 e a olimpíada de 2016, apresentam uma oportunidade para os EUA se envolverem em desenvolvimento de infraestrutura e também na proteção de infraestrutura crítica e segurança cibernética”, escreveu a diplomara Cherie Jackson num despacho para Washington. “Além de preparar as oportunidades comerciais que os jogos vão oferecer às empresas americanas, o governo dos EUA deveria se aproveitar do interesse do Brasil no sucesso olímpico para progredir na cooperação bilateral em segurança e troca de informações”, esclarece outro documento,  intitulado “Olimpíadas do Rio – O Futuro é Hoje”.

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