Hoje, 116 terras indígenas estão em fase de identificação; 34 foram identificadas; 72, declaradas e 478, homologadas, segundo dados do Instituto Socioambiental (ISA). Entre demarcadas e em fase de identificação, essas áreas representam atualmente 13% do território nacional (quatro vezes o tamanho da Itália). É nesse grande pedaço de chão que vivem mais de 800 mil índios, de 246 etnias, que falam centenas de línguas.
Como as constantes manifestações dos índios não deixam esquecer, o prazo de cinco anos estipulado pela Constituição de 1988 para a demarcação de todas as terras do país não foi cumprido, e um dos principais entraves para a regularização é o fato de a terra ser uma fonte de poder econômico, político e social. É nesse contexto que atua a Fundação Nacional do Índio (Funai), o órgão federal criado em 1967 para coordenar a política indigenista do Estado brasileiro.
De todas as etapas até a demarcação definitiva das terras indígenas, a delimitação e a identificação são as fases sob maior responsabilidade do órgão indigenista. Ao entrevistar ex-presidentes, movimentos sociais e os próprios índios, a Pública chegou a um diagnóstico similar: restrições orçamentárias e de pessoal na Funai, além de pressões políticas, asfixiam o direito constitucional à terra, a principal reivindicação desses povos.
Diogo Oliveira é indigenista. Na Funai, é o coordenador de antropologia substituto da Coordenação Geral de Identificação e Delimitação (CGID), área responsável por coordenar todo o trabalho de identificação e delimitação das terras indígenas do país; o que inclui encaixar a demanda em um apertado planejamento, montar os grupos de trabalho, orientar antropólogos que vão a campo fazer os estudos e cumprir diligências determinadas pelo Ministério da Justiça quando as terras vão ser declaradas.
“Hoje, a nossa equipe técnica dispõe de… um, dois, três…” A contagem de Oliveira vai até o número 12. “Você imagina: hoje nós devemos ter 600 reivindicações pela delimitação de terras, 120 processos de delimitação de terra em curso, mais algumas terras que estão em contestação administrativa, outras que são contestações do próprio Ministério da Justiça. E não temos gente nem recursos para contratar profissionais de fora.”
Para ele, o cenário da CGID é um microcosmo do que vive o órgão como um todo. “A situação é gravíssima”, sentencia. Entre a perda constante de quadros técnicos sem reposição, Oliveira conta que “o recurso menor do que o necessário” impede que a Funai cumpra sua função constitucional.
Pouca gente, pouca grana
Desde a reestruturação da Funai realizada na gestão Márcio Meira (2007-2012), definiu-se a necessidade de contratação de mais de 3 mil servidores. De lá para cá, no entanto, só ocorreram dois concursos públicos. No primeiro, realizado há seis anos, pouco mais de 400 servidores foram incorporados. E um novo concurso no decorrer deste ano prevê mais 220 vagas.
Um levantamento do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), no entanto, revela que a Funai conta atualmente com 2.142 funcionários efetivos, quando o número total de cargos autorizados pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão é de 5.965. A situação mostra que o órgão desempenha suas atividades com somente 36% de sua capacidade. Em recente carta divulgada pelos servidores, eles alertam para o agravamento do quadro se um terço dos funcionários se aposentar em 2017, o que deixaria a Funai com cerca de 24% de servidores em relação aos cargos autorizados pelo Planejamento.
Se o quadro de pessoal é diminuto, o orçamento também não inspira grande esperança no avanço da pauta indigenista. Levantamento da Pública mostra que desde 2011 o orçamento vem sofrendo seguidos cortes. Em 2016, o estrago foi maior: 23% de redução em relação ao orçamento total autorizado de R$ 653 milhões pelo Congresso Nacional em 2015, o que equivale a R$ 150 milhões a menos em caixa. Também a participação da Funai no orçamento total da União caiu significativamente nos últimos cinco anos, chegando ao menor valor desde 2006.
A tesoura se concentrou principalmente nas chamadas atividades finalísticas do órgão, ou seja, nas políticas públicas destinadas aos povos indígenas. “Quando você pega o mapa de terras indígenas e compara com o número de funcionários, é inacreditável”, afirma Mércio Gomes, presidente da Funai entre 2003 e 2007. “É um mundo imenso com um orçamento pífio”, critica. Ele calcula ser necessário duplicar o orçamento e triplicar o número de funcionários. “O orçamento da Funai revela na prática que há uma inconsistência entre o discurso de respeito à proteção dos povos indígenas e a prática que é viabilizada pela política pública”, corrobora Alessandra Cardoso, do Inesc.
Em entrevista exclusiva à Pública, o último presidente da Funai, João Pedro Gonçalves, exonerado no início de junho, apontou a questão orçamentária como um grande entrave. “Para fazermos uma agenda digna, precisamos ter mais técnicos, fazer uma reestruturação, ter outro orçamento”, afirmou.
Índios e funcionários em risco
Esse cenário desabonador atinge a atuação do órgão nas pontas, ou seja, nas atuais 37 Coordenações Regionais (CRs) e nas 297 Coordenações Técnicas Locais (CTLs), unidades descentralizadas próximas aos indígenas.
Gustavo Vieira, servidor do órgão e membro do Movimento de Apoio aos Povos Indígenas (Mapi), explica que em muitas CTLs não existem funcionários e, quando há, não passam de três, em média. As CRs, ainda segundo ele, passam pelas mesmas dificuldades, o que coloca em risco os funcionários. “Muita gente está aqui na sede, em Brasília, porque estava sendo ameaçada nas CTLs e nas CRs. Teve um caso específico de um camarada que trabalhava no Paraná em que um membro do Ministério Público presenciou uma reunião em que prefeitos e outras autoridades presentes faziam uma vaquinha para matá-lo. Outro colega teve o carro apedrejado na Bahia. E a gente não tem nem um mecanismo para institucionalizar isso, e acaba tendo que fazer essa solução caseira de transferir o funcionário”, diz.
Por outro lado, a situação coloca em risco também os povos indígenas. “São caçadores, madeireiros, todo mundo entra nas nossas terras… Você vai ver como as coisas estão na CTLs e só está a pessoa, não tem equipamento de trabalho, e o responsável pela unidade não tem nem gasolina para o transporte. Como ele vai fazer a vigilância? Ele vai sofrer emboscada, não tem como”, argumenta Rosimeire Maria Teles, do povo Arapaso, do Amazonas.
Segundo ela, os funcionários não têm telefones funcionando para fazer denúncias à sede do órgão. “A gente percebe muito a fragilidade da Funai”, diz. “Participando do movimento indígena, eu vi também como essa fragilidade dificulta para a gente conseguir articular as políticas com a Funai. O papel da CTL é organizar as demandas com a gente, tentar fazer esse trabalho, mas eles não têm como dar suporte nessas condições”, conclui. “Lá na terra indígena São Marcos [MT], a gente está sofrendo essa invasão gradativa e estratégica do pecuarista. Todo ano eles vão pegando uma extensãozinha de terra, vão tirando os marcos e vão entrando. Quando a gente se depara com isso, a gente pede a fiscalização, mas não vem”, alerta Crisanto Xavante, do povo Xavante, do Mato Grosso.
Gilcélio Jiahui, membro da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), também critica: “A Funai tem sido desestruturada lentamente pelos órgãos do governo em nível local e nacional”, diz. Para ele, a Funai tenta fazer as demarcações, a fiscalização, “mas o governo não vem dando condições”.
“A demora nas demarcações é política”
Foram nove terras delimitadas pela Funai, 12 declaradas pelo Ministério da Justiça e quatro homologadas pela presidente afastada, Dilma Rousseff, entre janeiro e abril deste ano. Mesmo assim, a petista deixou o posto como a presidente com o menor número de demarcações desde a redemocratização do país.
Os entrevistados concordam que a situação inusual das recentes demarcações feitas pelo governo afastado denota a influência política que atinge em cheio a Funai. Segundo eles, os processos de demarcação só andaram quando ficou claro que o governo estava isolado politicamente, com o destino selado e livre das pressões do Congresso. “Mais do que orçamento, essa demora nas demarcações tem a ver com falta de decisão política. Esses últimos processos acelerados às vésperas do impeachment não surgiram do nada. Eles estavam na gaveta há anos”, opina Márcio Santilli, sócio-fundador do ISA.
Segundo Maria Augusta Assirati, que esteve à frente da Funai entre 2013 e 2014, a pressão política é uma constante no trabalho do órgão. Ela revelou, um mês após a sua saída, em janeiro de 2015, que a Funai “está sendo desvalorizada e sua autonomia, desconsiderada”. Ela contou que em sua gestão o governo Rousseff, ainda vivo politicamente e pautado pelas negociações e pressões do Congresso e da governabilidade, sujeitou todas as etapas do processo de demarcação à aprovação da Casa Civil e do Ministério da Justiça, ao qual a Funai é subordinada. “A gente chegou a ter um embargo de demarcações de terras indígenas determinado pelo governo em função de várias relações que se construíram, sobretudo, com o agronegócio. Foi muito explícito. Tivemos uma ministra da Casa Civil, a Gleisi Hoffmann, atacando a atuação da Funai publicamente”, avalia a ex-presidente.
Dilma será marcada na questão indígena não só pelas poucas demarcações, mas pela construção de Belo Monte, a usina hidrelétrica do Pará que foi inaugurada mesmo sem cumprir 11 condicionantes relacionadas aos povos indígenas. Segundo os ambientalistas, a hidrelétrica causará grande impacto aos povos da região do Xingu. “No governo Dilma, esse viés desenvolvimentista voltou à tona e pressionou a Funai para que voltasse a se alinhar com esses objetivos hegemônicos do governo”, diz Maria Augusta.
No entanto, na avaliação unânime das fontes, as pressões sobre o órgão não começaram no governo Rousseff. “A Funai sempre fica nessa posição complexa. Ao mesmo tempo em que ela tem que proteger o direito dos indígenas, ela também tem que fazer a mediação. Porque o Estado é complexo e muitas vezes tem ações contrárias aos direitos indígenas”, avalia Márcio Meira, o mais longevo presidente do órgão (2007-2012). Mesmo com pressões de lado a lado, Meira pondera a importância para que essas “pressões não se sobreponham à legislação”. Para o ex-presidente João Pedro Gonçalves, a atuação do órgão reflete em muito as posições do Ministério da Justiça. “A Funai, ligada ao Ministério da Justiça, vai estar sempre sob influência do titular do ministério, e isso pode e vai se refletir na agenda da Funai”, analisa.
Meira recorda que ex-presidentes do órgão já cederam de maneira mais escancarada a pautas anti-indígenas, caso de Romero Jucá (PMDB-RR), que presidiu o órgão no governo de José Sarney (PMDB-AP). “Era um presidente da Funai que facilitou a vida dos madeireiros, dos garimpeiros. Se você olhar o relatório da Comissão Nacional da Verdade, tem várias denúncias contra ele”, afirma.
Vieira, do Mapi, reitera a rotina de pressões. “Eu recebo a pressão dos deputados para a área de licenciamento, por exemplo. ‘Ah, vamos agilizar a licença tal’, ‘vamos fazer a audiência pública de tal obra’. Aí vêm obras com estudos de impacto muitas vezes mal-feitos, de mentira. A área pede para fazer os estudos de impacto ambiental de uma maneira correta e eles falam: ‘Não, deputado tal tá apoiando a obra, senador tal’”, revela.
30 braços, 3 mil processos de licenciamento
A área de licenciamento ambiental também sofre com a sobrecarga de trabalho dentro da Funai. “A gente tinha que cuidar, chutando baixo, de uns 3 mil processos ativos. Cada técnico ficava, no mínimo, com 60 processos ativos de licenciamento para cuidar de uma vez”, afirma Nuno Nunes, que atuou até o meio do ano passado como coordenador de Transporte e Mineração, na Coordenação Geral de Licenciamento Ambiental.
O ex-servidor conta que chegou a deixar o órgão indigenista por causa de problemas de saúde acarretados pela sobrecarga de trabalho. Nuno relembra que à época a Coordenação de Licenciamento contava com 15 servidores para cuidar das questões indígenas no licenciamento em todo o país. “A gente acabava tendo que escolher quais eram os processos que iam impactar mais os indígenas e focar nesses para o licenciamento. O resto a gente deixava passar. Aí, muitas vezes o licenciador estadual ou até o Ibama emite a licença, e os indígenas se ferram”, revela. Segundo ele, vários processos de lavra garimpeira, por exemplo, foram levados a cabo sem o componente indígena no licenciamento, o que impactava as comunidades.
O setor de licenciamento da Funai é exemplar na contradição dos interesses do Estado e da pauta indígena. As obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), por exemplo, foram as que mais demandaram esforço da equipe de Nunes. “Falta servidor, falta recurso para fazer vistoria e fazer o licenciamento adequadamente”, diz.
Para se ter uma ideia, o orçamento pago destinado ao licenciamento aumentou 250% nos últimos dez anos, ainda que esses recursos, segundo as fontes, sejam insuficientes para a demanda. Nunes compara a situação com a de outro órgão, o Ibama. “Para cada processo de licenciamento, o Ibama tem uma equipe. Na Funai, é uma pessoa só. Você chegava um dia e tinha que cuidar de mineralogia, depois tinha que virar a noite para estudar para um licenciamento de piscicultura”, relembra.
“A Funai não é para principiantes”
Após o término da entrevista, Mércio Gomes ligou para a redação da Pública para registrar uma frase tão enigmática quanto provocadora: “A Funai não é para principiantes”, disse convicto. Era uma continuação da sua última resposta, quando ele foi provocado a se posicionar sobre o futuro do órgão. “Se esse quadro permanecer, vamos ter anos de um declínio grande da Funai em termos de demarcação”, sentenciou.
Atualmente, cerca de 70% das terras indígenas brasileiras já foram demarcadas. Restam, segundo estimativas da Funai, 30% de territórios (204 TIs). Segundo Santilli, os territórios que restam serão os mais complicados por estarem fora da região amazônica, no Centro-Sul do país, “onde existe um quadro mais intenso de ocupação do território, o que faz com que os processos de demarcações se deparem com vários obstáculos, como a incidência de títulos de propriedade, implicando um aumento da pressão política e esbarrando em setores com maior capacidade de se articular no Judiciário”, diz.
Num contexto de reprimarização das exportações do país, que passou a depender ainda mais das commodities agrícolas e minerárias, a contradição com a pauta indígena se evidencia novamente. “Quando a gente anda para trás nesse plano da estrutura econômica, quando esses setores mais atrasados ganham força, a gente acaba sofrendo atrasos em outros âmbitos da sociedade e do Estado”, avalia Santilli.
Para as terras pendentes, há quem defenda que a Funai passe a ter outras opções de aquisição que não o processo de reconhecimento e demarcação. O argumento é do ex-ministro da Justiça do governo petista Eugênio Aragão, que defendeu a compra de terras pela Funai como uma maneira de enfrentar o mar revolto das demarcações restantes.
Justiça que atrasa demarcações
A demora nos processos de demarcação tem outro fator para além do político, segundo as fontes entrevistadas pela reportagem: a enxurrada de procedimentos judiciais. Tal cenário diz respeito ao marco temporal, tese jurídica que propõe uma interpretação da Constituição Federal, ao definir que só poderiam ser consideradas terras tradicionais aquelas que estivessem em posse dos indígenas em 5 de outubro de 1988.
O ex-presidente da Funai João Pedro Gonçalves explica: “Se criou um corte histórico desde o debate realizado no Supremo Tribunal Federal relacionado à demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. De Raposa saiu uma premissa que fortaleceu muito a Justiça, que foi o marco temporal”. Para ele, a situação “impôs uma lentidão maior nos procedimentos”.
Diogo Oliveira, do CGID, revela que “quase todo processo de delimitação” que se faz na Funai “tem alguma contestação judicial”. “Há casos em que a gente não pode assinar um papel, pois tem um mandado de segurança de alguma comarca impedindo. E isso acontece em cada ato administrativo. Sai a portaria constituindo um grupo de trabalho para estudar uma área, não dá 30, 40 dias, chega uma ação da federação agrícola, da prefeitura, de alguém do governo do estado contestando e não deixa nem começar os estudos”, critica.
Em 2014, foram anuladas demarcações de três terras indígenas após uma decisão da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF). Duas dessas terras estão no epicentro da violência contra os povos indígenas, o Mato Grosso do Sul: a TI Guyraroka, dos povos Guarani e Kaiowá, e a TI Limão Verde, do povo Terena. Também a TI Porquinhos, do povo Canela-Apãnjekra, do Maranhão, teve a demarcação anulada. O Supremo, porém, já adotou posições contrárias. Recentemente, o tribunal negou o seguimento de um mandado de segurança que pedia a revogação da demarcação da TI Morro dos Cavalos, em Santa Catarina, com base na tese do marco temporal.