Na última quarta-feira (15/6), a Secretaria de Direitos Humanos publicou no Diário Oficial da União a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA), condenando o Brasil pelo desaparecimento de 62 pessoas no Araguaia, e exigindo que o Estado brasileiro investigue penalmente os fatos por meio da justiça ordinária.
Segundo a decisão, “as disposições da Lei de Anistia que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana e carecem de efeitos jurídicos”.
Mas, aqui no Brasil, a busca pelos corpos tem avançado nos últimos anos graças à decisão de uma juíza, Solange Salgado, titular da 1a Vara da Justiça Federal. Foi ela quem promulgou a sentença do processo em 2003, e é quem comanda a tomada de depoimentos reveladores dos camponeses da região.
É um trabalho persistente, sob o constante peso das ameaças que ainda rondam as testemunhas desse episódio histórico – como mostra o documento ao lado.
Até hoje, doze ossadas foram recolhidas, embora se saiba que ali desapareceram ao menos 62 guerrilheiros. Das 12 ossadas, apenas duas foram identificadas: a de Maria Lúcia Petit da Silva, morta aos 22 anos e sepultada pela família em Bauru (SP) em junho de 1996; e a de Bérgson Gurjão Farias, sepultado em Fortaleza (CE) em 2009, 37 anos após ser assassinado.
Leia a seguir a entrevista da juíza às repórteres da Pública:
O Brasil não passou por aqueles três pilares da chamada justiça de transição das ditaduras para a democracia: memória, verdade e justiça. O passo seguinte ao cumprimento da sentença, com a entrega dos corpos às famílias, seria entrar com processos penais?
A recente decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos deixa isso bem claro. E eu creio que o Brasil tem que dar cumprimento. E lá não há direito positivo interno, nem interpretação jurisprudencial que vede o governo de responsabilizar os seus agentes que cometeram atrocidades no passado. Traduzindo: nem Lei de Anistia, nem decisão do Supremo pode ser um empecilho para se localizar os restos mortais, nem precisamos de localização de restos mortais para iniciar a responsabilização dos agentes do Estado que cometeram excessos naquela época.
Quando assumiu o processo, achou que ia chegar a esse ponto?
Não, de forma alguma. Esse processo é um avanço para a democracia. Em 2003 foi a sentença, eu vim para essa vara nessa época, mas ele (o processo) já estava no tribunal, porque havia tido uma sentença anterior. Depois, quando o processo desceu, a sentença tinha sido anulada. Aí que surgiu essa minha sentença.
Qual era a primeira sentença?
Foi no sentido da impossibilidade jurídica do pedido por que, na realidade, o nosso ordenamento jurídico positivo não prevê expressamente direito de localização de corpos. Mas isso nem precisava, na minha visão, estar escrito. Isso é direito natural, todo familiar tem direito de receber o corpo e enterrá-lo. Nossa sentença foi toda nessa linha, do direito natural. Superada essa parte do pedido ser juridicamente possível, nós reconhecemos esse direito.
A senhora falou da importância dessa sentença para o aprofundamento da democracia. Pode falar um pouco mais sobre isso?
Um fato que às vezes passa despercebido é que aquele terrorismo de Estado exercido na época da ditadura militar pelo próprio Estado – o que é uma incongruência máxima –, persiste até hoje. Houve a mudança, acabou o governo militar, nós estamos num governo democrático, mas o desaparecimento forçado de pessoas é um crime continuado. Enquanto esses corpos não aparecerem, esse crime está sendo cometido. Não temos como avançar no processo democrático enquanto o Estado ainda estiver cometendo terrorismo. O cumprimento da sentença é primordial para se avançar no processo democrático em que o Brasil está engatinhando. Não temos como passar à frente sem encerrar esse passado triste, doloroso. E não estamos enfrentando esse passado ainda da forma como deveríamos.
No processo constam várias oitivas de policiais militares que não costumam ser relacionados às mortes dos guerrilheiros. Por quê?
Esses militares – que hoje estão em sua maioria em Goiás – estiveram em atuação na época da guerrilha e fazem parte de uma relação que foi requistada por nós ao Ministério da Defesa. O que queremos saber desses militares é justamente a localização de corpos. Sabemos que tem essa história que os corpos foram mutilados; queremos saber se parte dos corpos foi enterrada separadamente, se eles têm conhecimento… Mas o foco é sempre esse, de localização de corpos ou parte de corpos.
Ex-soldados, ex-mateiros da região foram ouvidos?
Sim, até mesmo quando estive lá na região. Eles também são ouvidos pelo GTT.
Parece que esses depoimentos foram muito importantes para as novas fases da investigação. Eles foram registrados?
Não, nós temos só o registro do nome das pessoas que ouvimos. Foi uma garantia que o Poder Judiciário deu a essas pessoas. Elas ainda estão muito apavoradas, se sentindo muito acuadas. Para tranquilizá-los, eu falava que estava ali ouvindo, sem gravação. Apenas registrava o nome para termos a lista de todos que eu ouvi naqueles dois dias lá. Agora, quem deu a informação a, b ou c só eu e a pessoa que estava comigo lá sabemos.
“E isso trouxe novidades? O método modificou a situação?
Sim, trouxe muitas novidades em termos de localização de corpos. Nós entrevistamos muitas pessoas e passamos noite adentro ouvindo-as. A conversa é muito extensa, cada um sabe de uma parte mais dolorida, mas a gente procurava voltar ao nosso foco, que é a localização de corpos. E conseguimos, assim, afunilar o assunto para esse ponto. Conseguimos avançar em termos de localização de corpos.
E essas ações já foram colocadas em prática?
Estão sendo, isso tudo é parte de uma averiguação. Quando nós nos deslocamos de Brasília para lá, já tínhamos informações. Todos esses dados são considerados, mas têm que ser checados. Se temos uma repetição num determinado ponto, priorizamos averiguar aquele ponto. E é assim que estamos atuando. Tivemos uma resposta positiva com a nossa ida à região porque as informações que tivemos de lá coincidiram com as que já tínhamos daqui, dadas também por militares que estiveram no local à época. Como a história foi muito triste, quando ela foi encerrada foi feito um pacto de silêncio; alguns militares falam dele (do pacto). Eles vêm, dão uma informação sem assinar, não é reduzido a termo, mas eles sempre falam dessa lei do silêncio, que foi um pacto à época.
Um pacto que não tem fim?
Um pacto que perdura enquanto tiver um vivo daquela época. Esse foi o termo final do pacto. E os relatos, as informações com mateiros, nós focamos na pós-operação limpeza. Nossa ida para lá foi com esse objetivo.
A senhora conseguiu determinar o período em que ocorreu essa operação limpeza?
Há alguns relatos mais ou menos desse período de 1973 até 1975, porque foram várias operações, passava-se o pente fino, constatava “esse ainda não pegamos”, o que foi se repetindo. E aí, nesse pente fino, usavam mais mateiros. A primeira operação limpeza em si, a oficial, entre aspas, foram os militares que fizeram, vestidos à paisana. Segundo o pessoal da região, eles diziam que eram familiares que estavam recuperando os corpos, porque os da região estavam presenciando a retirada de corpos. Então, eles [os militares] concentraram os restos mortais em determinado ponto. E o transporte deles para outro local, aonde estamos tentando chegar, teria sido feito por oficiais.
Eles estariam todos no mesmo local?
Em alguns pontos próximos, mas todos em um local amplo. Vamos dizer que eles aprimoraram, acharam um local para melhor guardá-los. E o próprio pessoal da região, se for perguntado diretamente, sabe dizer que quando eles saíram – porque foi a Aeronáutica que fez esse transporte, de helicóptero. Espalharam para que ninguém fosse ali porque tinha cobra, bichos, e quem fosse iria morrer. Então, ninguém se prontifica a ir por causa dessas ameaças também.
Mas os mateiros não participaram dessa operação limpeza?
Na do pente fino, eles usaram mais mateiros. Na primeira operação eles foram mais com os militares à paisana e dando a informação que eram familiares retirando corpos. Esse é o relato oficial dos mateiros. Eles ainda têm muito firme dentro deles as ameaças que eram feitas com muita veemência e arrogância para não falarem nada. Eles tremem até hoje de pensar nas ameaças.
Os ex-soldados estão se dizendo ameaçados…Talvez não seja só uma ideia do passado?
Infelizmente, não é só ideia do passado porque até hoje nós estamos tendo relatos de pessoas que estão sofrendo ameaças na região. Por conta disso, há um inquérito policial na Justiça Federal para apurar as ameaças que mateiros estão sofrendo na região com o trabalho que o GTT faz. As pessoas que falam são visitadas, perguntadas se esqueceram da promessa que fizeram para não abrir mais nada… E essas pessoas depois não falam mais nada.
Por Marina Amaral e Tatiana Merlino, de Brasília (DF)
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