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Em conversa com embaixador dos EUA, ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional demonstrou preocupação com produção de coca na Bolívia

Reportagem
1 de julho de 2011
22:23
Este artigo tem mais de 13 ano

A experiência da ditadura militar no Brasil levou a sociedade, nos seus primeiros anos de regime democrático, a dar, às vezes, um alto valor à liberdade e aos direitos dos prisioneiros, às custas da missão principal das prisões: proteger a sociedade dos criminosos. Segundo um telegrama confidencial da embaixada dos Estados Unidos em Brasília vazado pelo WikiLeaks, essa é a opinião do general Jorge Armando Félix, ex-ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República.

Em encontro realizado em 14 de maio de 2007 entre Félix e Paulo Uchoa, então diretor da Secretaria Nacional Antidrogas (Senad), do lado brasileiro, e o ex-embaixador estadunidense Clifford Sobel e a então secretária-assistente do INL (sigla para Escritório Internacional de Drogas e Combate ao Crime, em tradução livre) Anne Patterson, do lado estadunidense, diversos temas foram tratados, entre eles, o crime organizado no Brasil e as estratégias de combate, as preocupações com o suposto crescimento do tráfico de cocaína da Bolívia para o território brasileiro e o suposto relacionamento entre o governo venezuelano e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc).

Sobre a questão dos presídios, o general Félix opinou, segundo o telegrama de 4 de junho de 2007, que “garantias constitucionais e legais, que permitem condições prisionais por meio das quais líderes de gangues podem abertamente recrutar quadros, intimidar guardas e oficiais e comandar operações criminosas fora dos muros da prisão, devem ser reavaliadas e modificadas”.

Ainda de acordo com o documento vazado pelo WikiLeaks, o general Félix abriu o encontro expressando seu interesse em continuar e expandir a cooperação em inteligência com os Estados Unidos, que ele caracterizou como “já excelente”.

Bolívia

Em seguida, ele teria explicado as transformações do panorama do tráfico de drogas em território brasileiro. O general teria afirmado que antes, por muitos anos, o Brasil se considerava um “corredor” de drogas que viajavam a outros países. No entanto, a crescente violência causada pelos narcóticos nas cidades brasileiras teriam destruído tal perspectiva: o país havia se transformado também em destino das substâncias ilícitas. O telegrama segue: “Nesse contexto, o Brasil está observando o desenrolar dos acontecimentos na Bolívia com crescente preocupação. ‘Claramente, nós somos o alvo’ para os narcóticos de baixa graduação baseados na coca e produzidos na Bolívia, que estão inundando as cidades brasileiras, com consequências sociais ‘devastadoras’, disse ele [Félix]”.

Segundo o ex-ministro do GSI, o governo brasileiro teria tentado, por meio de vários “canais indiretos”, abordar suas preocupações com a crescente produção de coca – diretamente, teria sugerido alternativas, como a substituição dos cultivos de coca por outra cultura. De acordo com o telegrama, Félix afirmou que os bolivianos sempre encerravam a discussão com o argumento do “cultivo tradicional”.

O general Paulo Roberto Uchoa, então diretor do Senad, acrescentou que, durante o encontro da Cicade (Comissão Interamericana de controle sobre o Abuso de Drogas, em tradução livre) da Organização dos Estados Americanos (OEA), presidido por ele e realizado no começo de maio de 2007 em Washington, nos EUA, “a Bolívia permanecia intransigentemente comprometida com essa posição e parecia evitar propostas alternativas, apesar dos apelos e reclamações furiosas de quase todos os países representados no encontro”.

“Profunda preocupação”

Em seguida, foi a vez dos diplomatas estadunidenses presentes no encontro demonstrarem “profunda preocupação” com o aumento da produção de coca na Bolívia em 2006. Anne Patterson, então secretária-assistente do INL, apontou que estatísticas apoiavam a percepção de que as drogas produzidas no país vizinho estavam entrando no Brasil. “Por isso, a Bolívia oferece uma ameaça à maioria de seus vizinhos limítrofes, mas os EUA também estão profundamente preocupados que os cartéis mexicanos e colombianos possam mudar para a Bolívia, na medida em que eles poderiam fugir da pressão em seus países e buscar o ambiente mais convidativo na Bolívia”, afirmou Patterson, de acordo com o telegrama vazado.

Tanto Patterson quando o então embaixador estadunidense Clifford Sobel destacaram “a importância de o governo brasileiro ser contundente em relação a tais preocupações, visto que a influência dos EUA sobre a Bolívia é limitada”. Sobel teria apontado a influência que os pontos de vista brasileiros possuem sobre o país governado por Evo Morales.

Segundo o documento, o ex-embaixador Sobel teria afirmado também que uma possível colaboração entre as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e a Venezuela e o crescimento do trânsito de drogas pelo território venezuelano – que, segundo Patterson, em 90% dos casos tinham como destino os EUA – “devem ser motivo de preocupação para todos os países da região, juntamente com o crescimento da produção de coca na Bolívia”.

Crime organizado

Sobre as atividades criminosas em território brasileiro, Anne Patterson, segundo a correspondência vazada, indicou o interesse dos EUA em cooperar com o Brasil no combate aos grupos de crime organizado que “aterrorizam” as cidades brasileiras, “principalmente Rio e São Paulo”. Félix teria afirmado que a solicitação (no começo de 2007) do governador do Rio Sérgio Cabral (PMDB) de ajuda federal – incluindo o uso do exército brasileiro – para combater a crescente violência na cidade ofereceria “uma oportunidade para tentar construir um modelo para intervenção federal em cenários de crime intenso que, se bem-sucedido, pode ter uma aplicação mais ampla”. Segundo o general, o GSI, a Senasp, a Polícia Federal e o Ministério da Defesa brasileiro estavam “envolvidos num esforço para desenvolver esse modelo”.

Questionado por Partterson sobre o uso do exército brasileiro em missões de combate ao crime, o general Félix explicou que havia questões legais e constitucionais que o impediam. No entanto, para ele, a instituição poderia realizar “missões de ordem pública”. “A atual aproximação entre os governos federal e estadual do Rio provavelmente fará com que as tropas do exército assumam a ‘visibilidade’ e as missões rotineiras de ordem pública da polícia estadual, liberando a polícia para empregar mais equipe e recursos para ‘perseguir bandidos'”, explicou Félix, sempre de acordo com o telegrama vazado.

Apoio do México?

Patterson comparou a crise de criminalidade do Brasil com a experiência do México e lembrou as medidas que o governo daquele país estava tomando para aumentar a efetividade da polícia e frear a violência intensa, especialmente nas áreas de fronteira. Segundo ela, os EUA estavam trabalhando em conjunto com as autoridades nacionais mexicanas na aplicação de inovadoras iniciativas de combate ao crime. Em seguida, Patterson e Sobel “perguntaram a Félix se o Brasil se interessaria em estudar as políticas mexicanas, e ofereceram facilitar tal projeto”.

De acordo com o telegrama, “Félix respondeu muito positivamente” à proposta e disse que reuniria um grupo apropriado de especialistas para se preparar para discutir o assunto com os governos dos EUA e do México. Ainda segundo o documento vazado, a embaixada soube depois que o escritório de Félix já havia contatado a embaixada mexicana para dar seguimento a tal proposta bilateralmente.

Nos últimos cinco anos, no entanto, apesar da assistência dos EUA, a violência no México cresceu vertiginosamente, especialmente na fronteira norte do país. Segundo um estudo da entidade México Evalúa, de agosto do ano passado, as taxas de homicío em algumas cidades havia aumentado 6,3 vezes em comparação com 2006.

Os documentos são parte de 2.500 relatórios diplomáticos referentes ao Brasil ainda inéditos, que foram analisados por 15 jornalistas independentes e estão sendo publicados nesta semana pela agência Pública. LEIA MAIS

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