Na quinta-feira 25 de agosto, no pequeno café na rua Santa Magdalena, distrito chique de Providência, Santiago do Chile, via-se pela tevê a batalha que acontecia não muito longe dali: um embate esfumaçado entre policiais uniformizados e meninos e meninas vestidos de preto, panos nos rostos e bonés. Aos clientes, o garçom dizia que não se tratava de um protesto de estudantes, mas de um pequeno grupo de baderneiros, os encapuzados. “Eles se aproveitam dos protestos, atacam a polícia e destroem tudo”, comentava. “Não apoio protestos que tragam violência”.
Os “culpados”, os tais encapuzados, surgiram nas manifestações chilenas nos últimos três meses, ao mesmo tempo em que as escolas secundárias e universidades públicas foram tomadas por estudantes que pedem educação gratuita, de qualidade, e o fim do lucro na educação.
Segundo a imprensa, eles apareceram de repente como os jovens ingleses que surpreenderam Londres invadindo lojas para roubar bens de consumo, protestando contra ninguém sabe direito o quê. Surgem do nada, como se nunca tivessem estado ali.
Mas naquele dia era fácil localizar os encapuzados.
O protesto estava agendado para acontecer diante do Palácio de La Moneda, o mesmo aonde, sob um bombardeio militar, Allende suicidou-se 38 anos antes.
Havia quatro marchas, vindas de diferentes partes da cidade, que se reuniriam na frente do Palácio. Os trabalhadores, conclamados pela CUT – Central Unitária de Trabalhadores – se juntavam aos estudantes demandando reformas trabalhistas. Segundo os jornais, as demandas eram tantas que já não se sabia o que os manifestantes queriam.
A avenida, no entanto, estava semi-vazia. Apenas ônibus e veículos blindados do choque, negros, andavam de um lado para outro carregando policiais uniformizados, com proteção dos pés à cabeça. Um cheiro forte ardia no ar. As marchas haviam sido interrompidas e dispersadas pelos policiais, numa operação costurada pelos quatro cantos do La Moneda.
A algumas quadras um único grupo continuava entoando palavras de ordem. Diferentemente do que dizia a imprensa, eram jovens, na sua maioria, e pediam o que sempre pediram: educação superior gratuita, algo inexistente no país desde a era Pinochet.
“Vai cair… vai cair… a educação de Pinochet”, entoava uma jovenzinha de não mais de 15 anos, debruçada sobre uma das grades de metal. “Estou no ensino médio e não sei o que vou fazer”, disse. “Ou se paga muito para uma universidade privada, ou ainda mais para uma boa universidade pública”. Outra estudante completava, apontando para a Universidad de Chile, pública: “Para estudar aí tem que pagar três salários mínimos. Ou mais, se você quiser fazer medicina ou odontologia. Aí são quatro”.
Ali, a uma quadra do palácio, ela não era a única que observava em silêncio a estranha dança que levavam os policiais do choque e os poucos manifestantes que conseguiam se reunir. Nas calçadas, uma verdadeira multidão olhava. Eram trabalhadores, senhores, turistas, meninas e rapazes. Brandindo seus celulares em silêncio, com a câmera em on.
De um lado, os “pacos” paramentados formavam-se em linha brandindo seus escudos, enquanto chegavam mais ônibus, mais policiais. Um deles vem se aproximando com uma câmera, focando em rostos aqui e ali. Do outro, lentamente, formava-se um grupo de jovens, 50, depois 100 e 200, no meio da avenida. Brandiam bandeiras do Chile, faixas com dizeres como “pátria é educação”, apitos. Muitos tiram fotos, filmam; gravando a história no mesmo momento em que tentam fazer parte dela.
Até que um grupo de meninos e meninas toma a dianteira e, ali no meio da avenida, desenrola uma bandeira chilena de uns quatro metros quadrados. São cerca de dez, vestidos de cores escuras, jeans, jaquetas, xadrez, cabelos arrepiados, mochilas, tênis; e abrem-na no meio da multidão para fazer de colchão elástico para uma, depois outra estudante. Jogam-nas para o ar, voando sobre a bandeira chilena. A brincadeira vai durar ainda um pouco mais; apenas vinte minutos depois a festa vai se transformar em confronto.
Estes meninos e meninas, alguns têm o rosto coberto por um cachecol ou pelas suas camisetas. Aqui e ali, um vendedor anuncia limões, que retira de um saco cheio, verde claro.
Haverá gás lacrimogêneo e spray de pimenta; e todos sabem disso.
“E vai cair, e vai cair… a educação de Pinochet”
À medida que mais ônibus pretos estacionam atrás da barreira militar e deles saem mais e mais policiais, a multidão vai se desconcentrando. Cerca de duzentos jovens que se amontoam diante da polícia, enquanto os que esperam dos dois lados das calçadas passam de quatrocentos.
É quando voam as primeiras garrafas de vidro. Uma, pesada, sobrevoa a multidão, caindo pouco atrás da fileira de policiais, que agora fica mais robusta. Um grupo coeso, pequeno, decide avançar.
São adolescentes, têm entre doze e vinte anos, os encapuzados. Vestidos na moda. Gritam contra os policiais: “paco maricón”, “vocês têm menos educação do que nós”, “seus filhos também são estudantes”.
Então os policiais formam duas fileiras separadas por um pequeno espaço de não mais que quatro metros; como que convidando-os a atravessar o cordão e tomar, afinal, a avenida em frente ao palácio de La Moneda.
Os meninos aceitam o convite, e avançam num tumulto. O cordão se fecha, soam gritos, a polícia avança sobre eles, abrindo espaço. Em segundos, tempo ínfimo, a multidão começa a correr para todos os lados. Da direção do palácio vêm tanques com jatos de água, fortes, atirando sobre quem quer que estivesse ali, seja encapuzado ou não, estudante ou não; varre a rua e as calçadas com o ardor do spray de pimenta, misturado à água para “conter a multidão”.
No tumulto, abaixo-me para me proteger sob uma ilha de concreto que divide as duas faixas da avenida. É quando sinto uma pancada forte, ardida, no joelho, com um estalido abafado; e logo outra, na costela direita. As pancadas vêm de um cassetete negro ao mesmo tempo em que um policial me empurra para o outro lado da avenida. São pontuais, certeiras, programadas para atingir os pontos mais sensíveis.
Dolorida, com o joelho sangrando, apresso-me para sair dali. Ainda olho para o policial: queria tentar dizer algo sobre a liberdade de imprensa e expressão, mas não.
Em poucos minutos os tanques varreram a avenida de gente, e depois subiram aos passeios para perseguir as centenas as pessoas que correriam para as ruas laterais. E logo uma multidão de mulheres, velhos, adolescentes encapuzados, caminhavam rapidamente nas ruas próximas, e o protesto tinha fim.
Manuel foi ver os protestos. E morreu
Naquela noite, entre as localidades de Macul e Peñalolén, na região metropolitana de Santiago, o menino Manuel Gutiérrez Reinoso foi morto porque também foi ver os protestos. Junto com seu irmão, Manuel atravessava uma passarela acima de uma avenida, de onde policiais tentaram afastar a multidão atirando para o ar. O tiro acertou-lhe no peito. Desde então, o ministro do interior Rodrigo Hinzpeter, pediu a demissão do general dos policiais militares, Sergio Gajardo, por ter descartado “prematuramente” uma investigação sobre a morte do rapaz. E o porta-voz da Corte Suprema Chilena foi à carga: “não é tranquilizador que os funcionários estejam usando armas contra a população civil”.
Apenas no dia seguinte à morte de Manuel, o presidente Sebastian Piñera chamou os estudantes para uma negociação sobre as reivindicações. A reunião foi marcada para o próximo sábado, dia 3 de setembro.
Enquanto ela não acontece, os estudantes seguiram em diversas cidades chilenas, fazendo “panelaços”, tomando os semáforos para pedir aos motoristas que pintem seu carro pela educação.
Prova de que a batalha pela educação está longe de terminar.