Três soldados uniformizados seguram com força um rapaz moreno sobre um colchão. Com os braços torcidos por trás das costas, ele recebe um soco e tem sua calça abaixada entre as risadas estridentes do grupo. Um quarto soldado, de pé e sem camisa, abre a braguilha da sua calça camuflada e aproxima o seu pênis do menino, deitado de costas. Ele faz uma expressão de terror; pouco depois, os soldados o soltam, ainda entre gargalhadas.
O vídeo que expõe a tortura e suposto estupro do jovem haitiano por parte de quatro soldados uruguaios, integrantes da força da ONU no Haiti (MINUSTAH), vazou no começo de setembro pela internet, provocando comoção nacional. O presidente Michel Martelly, condenou veementemente o ato que “revoltou a consciência da nação’, e a porta-voz da missão de paz, Eliane Nabaa, expressou a preocupação de que o “lamentável” episódio possa “impactar nossa relação com os haitianos”. O ministro brasileiro da Defesa, Celso Amorim, ressalvou: “Não se pode contaminar toda a missão de paz por um episódio específico”.
Para a maioria da população haitiana, porém, o humilhante vídeo é apenas mais um motivo de revolta contra a missão militar da ONU, há tempo demais no país. Enquanto a discussão segue a passos lentos da ONU – na semana passada, o secretário-geral Ban Ki-Moon recomendou a redução de 12 mil soldados e policiais para cerca de 9 mil, voltando à quantidade anterior ao terremoto de 2010, mas uma decisão só vai sair em outubro – as ruas de Porto Príncipe têm sido palco de protestos que são difíceis de ignorar.
No dia 14 de setembro deste ano, um protesto contra a presença das tropas da ONU teve início em frente à base militar comandada pelo
Brasil em Bel Air. Os cerca de 400 manifestantes que pediam o fim da Minustah foram até a frente do Palácio Presidencial foram dispersados por diversas bombas de gás lacrimogêneo atiradas pela Polícia Nacional Haitiana (PNH). (FOTOS: ANSEL HERZ)
Outros protestos estão sendo articulados para as próximas semanas.
Na última sexta-feira, falando na ONU, Martelly afirmou sobre os protestos: “Muita gente está fazendo política, pedindo a saída da Minustah porque eles querem criar instabilidade. A Minustah só pode sair quando houver uma alternativa”.
Porém, muito antes do assombro causado pelo vídeo, já era comum ver pelas ruas de Porto Príncipe pichações com os dizeres “abaixo a Minustah” ou “abaixo a ocupação”; e a população se referia desdenhosamente à força comandada pelos brasileiros, apelidada de “pepe blanc”, ou “estrangeiros de segunda mão” – em referência à etnia das tropas composta por nove países latino-americanos, quatro países asiáticos, além das Filipinas e Jordânia, que se juntaram aos “estrangeiros de primeira mão” – Canadá, Estados Unidos e França.
Depois de sete anos no Haiti, com a participação de mais de 13 mil soldados brasileiros, 1 bilhão de reais de gastos do governo, o sentimento dos haitianos é bem diferente do entusiasmo demonstrado no jogo da seleção do Brasil, em agosto de 2004, o marco midiático da missão.“A verdade é que, em geral, a Minustah é vista como uma força de ocupação”, diz Michèle Montas, jornalista haitiana que foi porta-voz do secretário-geral da ONU, Ban Ki-Moon.
Uma das promessas de campanha de Martelly, eleito no início desse ano, foi a retirada das forças da ONU no país. Cinco meses depois da posse, porém, o presidente haitiano ainda não conseguiu nem montar o governo – dois nomes propostos para primeiro-ministro foram rechaçados pelo parlamento –, que dirá mandar as tropas embora.
O ministro da Defesa, Celso Amorim, antes de assumir a pasta, também afirmou em um programa de TV que “não fazia sentido” manter as tropas brasileiras no país. Recentemente, já como ministro da Defesa, ponderou: “Não podemos ter uma saída desorganizada que gere uma situação de caos”.
O início de tudo: circunstâncias nebulosas
A ocupação da ONU no Haiti começou assim que o avião militar americano partiu na madrugada de 29 de fevereiro de 2004 levando o presidente Jean-Bertrand Aristide em direção ao exílio. Desestabilizado por meses de greves e protestos, que degeneraram em rebelião armada, Aristide assinou a carta de renúncia em uma reunião, na noite do dia 28, com representantes diplomáticos da França e dos Estados Unidos.
Até hoje não se sabe exatamente o que aconteceu nesse encontro.
Três dias depois, em uma comunicação por celular de Bangui, a capital da República Centro-Africana, a um amigo em Washington, Aristide afirmou ter sido forçado a renunciar e a deixar o país, “sequestrado por soldados americanos armados”, o que contribuiu, desde o começo, para o ceticismo da população em relação as forças da ONU no país.
O desfile vitorioso dos rebeldes em Porto Príncipe, “vestindo uniformes novos, bem armados e equipados”, também despertou, além de aplausos, desconfiança, como relata um integrante de uma respeitada organização humanitária, que presenciou o espetáculo. “Acho um insulto à nossa inteligência os Estados Unidos dizerem que não sabiam de nada, enquanto os rebeldes treinavam do lado dominicano da fronteira, encostado em Miami”, diz o observador.
O contingente da Força Multinacional Provisória (Multinational Interim Force – MIF), formado por franceses, americanos e chilenos chegou na capital haitiana logo depois dos rebeldes. A criação da MIF pela resolução 1529 foi aprovada no mesmo dia 29, assim que o Conselho de Segurança, do qual o Brasil participava como membro provisório, recebeu uma cópia da carta de renúncia de Aristide do Representante Permanente do Haiti junto às Nações Unidas.
Horas depois de entrar em Porto Príncipe, as tropas da MIF já dividiam o controle militar do país – os americanos ficaram com as favelas e os franceses no alto do morro, nas áreas mais ricas, que abrigavam as famílias franco-haitianas. “Os franceses andavam sem capacete, com camisas de mangas enroladas, e os americanos com blindados, capacetes, atirando muito, mas sempre para cima. Dois dias depois, os chimères (defensores armados de Aristide) desapareceram”, conta a mesma testemunha.
O embaixador americano protesta
Do lado civil, os preparativos para a deposição de Aristide começaram antes, como comprovam documentos, entre eles um relatório interno da USAID de julho de 2002 obtido pelo repórter Joshua Kurlantzick, da revista americana Mother Jones.
Nele, o então embaixador americano no Haiti, Brian Dean Curran, faz um protesto formal contra Lucas Stanley, coordenador do IRI – International Republican Institute – no Haiti.
Durante os anos de 2002 e 2003, o IRI, ligado ao Partido Republicano dos EUA e financiado pela USAID, ministrou “cursos de treinamento político” para 600 líderes da oposição haitiana na República Dominicana, o que configuraria ingerência na política interna do país, proibida pelas regras da agência de desenvolvimento americano.
Investigado pelo Congresso dos Estados Unidos, o IRI foi acusado de estar por trás de duas organizações que conspiraram para derrubar Aristide: o Grupo 184 – coalizão de 184 ONGs, capitaneada por André Apaid, empresário que participou do primeiro golpe contra Aristide, em 1991; e a Convergence Démocratique, frente oposicionista formada em 2000 por diversas facções da elite do país.
Segundo a imprensa haitiana, os líderes da oposição eram responsáveis pela ligação das forças estrangeiras com os rebeldes armados, liderados pelos ex-militares do exército (dissolvido por Aristide em seu primeiro mandato, em 1994, depois de sofrer um golpe militar).
A rebelião ganhou corpo com a violência da política haitiana na repressão aos protestos e as ações criminosas dos chimères (“matadores” em créole), fortalendo os clamores da oposição por intervenção internacional. Em 16 de janeiro de 2004, o grupo 184
promoveu uma grande manifestação diante dos escritórios da ONU com essa reivindicação.
Como disse o embaixador Curran, em seu discurso de despedida na Câmara de Comércio Haitiana, ainda em 2003: “Muitos no Haiti, em vez de me ouvir, preferem ouvir seus amigos em Washington”. E acrescentou: “Eu os chamo de chimères de Washington”. Curran, diplomata de carreira, sempre se opôs à derrubada de Aristide.
Uma rosa é uma rosa
Os documentos diplomáticos publicados integralmente pelo Wikileaks na semana passada também revelam o desejo americano de reorganizar o Haiti sem Aristide.
Embora apenas cinco desses telegramas com informações relevantes sobre o Haiti sejam anteriores à queda, eles mostram que os EUA estavam sondando os países caribenhos, e até o Vaticano, sobre essa possibilidade, afastada por todos pelo grande apoio popular de que ainda desfrutava Aristide. Um bom exemplo é o telegrama de 17 de abril de 2003, em que o primeiro-ministro das Bahamas mostra-se “pouco disposto” a pressionar Aristide.
A partir de 31 de janeiro de 2004, porém, enquanto o Caricom – Comunidade do Caribe – negociava com Aristide um plano de estabilização – e a crise se agravava -, os telegramas passam a refletir a preocupação crescente dos países do Caribe com a possibilidade de uma imigração em massa dos haitianos, compartilhada com os Estados Unidos, como revelam os títulos: “Um ansioso primeiro-ministro solicita encontro sobre Haiti “, “Governo das Bahamas busca apoio para convocar Conselho de Segurança sobre o Haiti”.
O pragmatismo atingiu o auge após a queda de Aristide, seguida por uma manifestação pública do Caricom questionando as circunstâncias da renúncia.
Um telegrama de 9 de março de 2004, relata o encontro em Nassau entre o embaixador americano e o embaixador das Bahamas no Haiti, Eugene Newry. Segundo o representante dos Estados Unidos, Newry confirmou que houve “irritação “ no Caricom pelo fato de o órgão não ter sido consultado “sobre a saída repentina de Aristide”, mas afirmou que os governos caribenhos estavam satisfeitos com as medidas adotadas pelos Estados Unidos e França na constituição do governo provisório.
E afirmou: “Uma rosa, ainda que com outro nome, será sempre uma rosa. Deixo aos historiadores a tarefa de descobrir exatamente o que aconteceu na noite que Aristide voou do Haiti”.