Para o professor da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) Valter Bracht, doutor pela Universidade de Oldenburg (Alemanha) e coordenador do Laboratório de Estudos em Educação Física (LESEF), os megaeventos reforçam o investimento público no esporte de alto rendimento – profissional, para competição – e deixam o esporte como lazer e prática para saúde cada vez mais fora do alcance das pessoas.
Por isso é pessimista quanto ao legado esportivo da Copa para a população brasileira: “Não são mais usados argumentos como sediar o evento para aumentar a prática esportiva e melhorar a saúde da população. São argumentos que não se sustentam, porque não é esse o mote da realização dessas competições. Os megaeventos são sediados por razões extremamente econômicas, estatais e empresariais”.
Os megaeventos incentivam a cultura esportiva do alto rendimento no país? Que efeito tem, em termos de incentivo ao esporte para a população?
Os megaeventos ajudam a confirmar e a cristalizar no imaginário social um determinado modelo de prática esportiva hegemônico, que é o chamado esporte de alto rendimento. Quando se fala em prática esportiva, as pessoas logo associam isso ao alto rendimento como se ele fosse o único modelo existente. Os megaeveentos reforçam isso também. A grande massa da população não pratica este tipo de atividade mas sim outro tipo de prática corporal que difere muito deste modelo. O esporte de alto rendimento tem realidades e valores diferentes dos da maioria das pessoas, como comprovam pesquisas realizadas por institutos australianos. Mas as políticas públicas que se preocupam com esporte, se referem unicamente ao alto rendimento, e os megaeventos ajudam nesse cenário. Qual é o setor com que o esporte tem condição de interpelar o estado? O de alto rendimento, porque é institucionalizado e tem forças políticas e econômicas significativas. Hoje o sistema esportivo de alto rendimento se apodera de argumentos poderosos, como são os do ponto de vista econômicos (Quantos empregos gera? Quanto movimenta a economia?). Não são mais argumentos de outras épocas, como a disseminação esportiva, mas sim os índices econômicos que são levados em conta. Ou seja, a prática esportiva majoritária praticada pela população é praticamente ignorada.
Quando isso começou?
Desde as Olimpíadas de Munique, em 1974, o sistema esportivo de alto rendimento virou um grande negócio. A FIFA e o COI são grandes multinacionais do negócio esportivo e faturam milhões nesse tipo de evento. A relação do Estado com o esporte passa então a seguir critérios político econômicos, para se beneficiar destes altos lucros. Quando um país decide pela candidatura a um evento como esse, ele se legitima e o legitima a sociedade não pelo viés esportivo, mas pelo viés econômico. Há quarenta anos, era um ônus esportivo sediar um megaevento, mas hoje é um grande negócio. Dependendo de como é realizado, dependendo do grau de comprometimento com o interesse da iniciativa privada, ocorre uma grande transferência de recursos públicos para a iniciativa privada, que também sai lucrando muito e tende a apoiar esse tipo de modelo. E isso não ocorreu só no Brasil, mas em outros países também. Sempre há o argumento de que o grosso do investimento vai ser privado, mas o resto a gente já conhece… Os megaeventos são sediados por razões extremamente econômicas, estatais e empresariais, embora isso seja vendido de outra forma. Existem até casos específicos, como a olimpíada de Sydney, em que esse modelo diminuiu o número de praticantes. O esporte-lazer demanda outro tipo de investimento. Ao invés de um velódromo, seria interessante investir em ciclovias. Ou no aparelhamento do sistema estadual de educação, pois as escolas não dispõem de equipamentos básicos mínimos. Agora imagine o investimento feitos em estádios e os valores neles investidos. São contradições colocadas à sociedade, entre o modelo e as práticas preponderantes.
Você percebe algum tipo de preocupação das entidades envolvidas na realização da Copa com o fortalecimento do esporte nas escolas, por exemplo?
Vejo justamente ao contrário. De certa forma, o Ministério da Cultura vem sendo negligente e permite que o Ministério do Esporte, mobilizado pelo interesse do sistema esportivo, deixe de avançar sobre a escola e investir nesse sentido. Essa semana tive que assistir horrorizado à série de reportagens do Jornal Nacional sobre as Olimpíadas Escolares. Apesar de serem atividades em escolas elas, paradoxalmente, são iniciativas do COB e motivados pela Rede Globo. E qual é o modelo? Não é o esporte escolar, mas o esporte como competição. É um modelo que possui legitimidade social e tanto a mídia, como os órgãos governamentais se valem disso. Eu não conheço nenhum projeto de melhoria da iniciativa do esporte escolar, a partir desse megaevento. O que se quer é investir na escola no esporte de competição, para criar campeões, o que é uma grande mentira. O modelo do esporte dos megaeventos não serve à população comum. Para a prática esportiva da maioria da população, teria que se incentivar outras formas de evento. Na Europa, por exemplo, há um evento que em princípio se reúnem 10, 20 mil pessoas que apresentavam o que eles faziam nas asssociações e clubes de suas cidades. Esses sim são eventos que poderiam ter uma repercussão mais interessante para a maioria da população. Qual é o apelo do investimento no alto rendimento? É: “O fulano que morava na favela, se esforçou, virou um atleta de ponta e foi campeão”. Isso é um grande embuste, é só ver o que acontece nas peneiras de futebol. Tem cinco mil garotos, passam cinco. Aí a imprensa segue os cinco, mas não diz o que aconteceu com os 4995 que ficaram e voltaram à sua condição. Então, é uma estrutura hierarquizada e que não serve para a população do ponto de vista de um ganho público. É um grande negocio e acho mais justo que ele seja tratado assim, inclusive pelo governo. Quem vai nadar no parque aquático? Quem vai andar de bicicleta no velódromo? O legado, em termos esportivos, é nulo para a maioria da população.
O que é o esporte escolar?
Aqui no Brasil, o esporte praticado nas escolas é uma extensão do sistema esportivo, da competição. Ao invés de ser o esporte “da” escola é o esporte “na” escola. O que a gente propõe é que a escola invente um esporte a partir de sua própria lógica. Porque você tem dois mundos diferentes. Enquanto o esporte é competitivo e excludente, a escola quer incluir e socializar. O que aconteceu com os portadores de necessidades especiais nas escolas? Tirou-se eles das APAEs e os colocaram na escola dita normal. No caso do esporte é diferente, há uma olimpíada e uma paraolimpíada. Então os modelos são contraditórios. O esporte de alto rendimento segue códigos que não são sensíveis ao argumento da educação e nem da saúde.
Quais são os critérios do investimento estatal no esporte hoje?
Antigamente tínhamos o esporte como forma de lazer, que era propiciado pela iniciativa privada. Isso ocorria no chamado associacionismo, dos clubes e associações de bairro. Esse modelo foi minguando porque o Estado pouco intervém aí, ele sempre olha pelo alto rendimento. A unica exceção foi o “Esporte para Todos”, nos anos 80. O estado de bem-estar social ajudou é claro nos investimentos, mas havia investimento na corrida de rua e uma das grandes motivações foi o aumento dos gastos do sistema de saúde, com o aumento do sedentarismo. Então motivou-se por a + b, que os custos de saúde eram altos pelo sedentarismo e a prática esportiva ajudava a reduzir esse custo. A ideia era propor ao associacionismo formas para motivar as práticas de lazer. Recentemente, houve outro fenômeno que provocou senão o desaparecimento, a diminuição do associacionismo, pois há a disseminação da prestação de serviços, como as academias que estão em cada esquina. A relação da prática esportiva não é mais com um associacionismo, mas com a prestação de serviços. Essa lógica do lucro sempre é valorizada. O Governo Federal tem alguns programas para motivar as prefeituras a disponibilizar recursos para o esporte lazer, mas o volume de recursos ainda vem a conta-gotas. Para minha visão política, essa seria a grande prioridade. Mas isso não significa construir velódromo, mas investir, por exemplo, em parques com espaços para práticas corporais, isso sim seria um investimento de acordo com os hábitos da população.