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"O que mais chocou foi a forma da execução dos despejos. Não houve qualquer proposta de alternativa para aqueles moradores" diz Vladimir Seixas sobre "Atrás da Porta"

Entrevista
31 de maio de 2012
08:00
Este artigo tem mais de 12 ano

O cineasta Vladimir Seixas produziu o documentário “Atrás da Porta” mais ou menos como vivem as pessoas que mostra em seu filme: sem qualquer tipo de apoio. Com uma câmera emprestada e um amigo fotógrafo, finalizou o belíssimo longa em 2010, após um ano acompanhando o sofrimento das famílias despejadas pelo poder público, todas do centro da cidade e a maioria na zona portuária; local em que se concentra o projeto de “revitalização” e do “Porto Maravilha”.

Na última semana, Estados integrantes do Conselho de Direitos Humanos da ONU recomendaram ao Brasil que não permita que a preparação para os megaeventos de 2014 e 2016 resultem em  violações do direito à moradia ao provocarem remoções forçadas. Em seu blog, a relatora especial da Organização das Nações Unidas para o direito à moradia adequada Raquel Rolnik lembra que há mais de um ano mandou uma carta ao governo brasileiro sobre as denúncias que estava recebendo de pessoas e comunidades ameaçadas de remoção por conta de obras da Copa e das Olimpíadas e que até agora nada foi feito.

Em entrevista, Vladimir Seixas conta o que viu e ouviu na convivência com famílias que vivem esta realidade e dá sua avaliação sobre o cenário: “A impressão que dá é que quando se fala em Copa e Olimpíadas tudo é permitido. Isso em nome de um legado para um bem maior. Mas olhem o caso do Jogos do Pan no Rio de Janeiro. O único legado foi uma rede de corrupção entre o poder público e empreiteiras que vem sendo recentemente noticiado. Os estádios do Pan não servirão para Copa. E os da Copa não servirão para as Olimpíadas”

Leia a entrevista e veja o filme na íntegra, no pé da matéria:

O que te levou a escolher este tema?

Ainda na Escola de Cinema (Darcy Ribeiro) realizei um curta chamado Hiato, em que mostrava uma manifestação em um grande Shopping de classe média alta aqui do Rio de Janeiro. Dentre os manifestantes estavam militantes do MST, do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto, estudantes e moradores de favela. Como o vídeo circulou e teve uma boa recepção por parte dos movimentos sociais, me perguntaram se gostaria de realizar gravações das próximas ações de ocupação do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto na cidade.

O vídeo “Hiato” pode ser assistido aqui

Como foi o trabalho de pesquisa? Você ficou com os personagens por quanto tempo?

As gravações foram intercaladas e duraram aproximadamente um ano; se totalizou 48 horas de material bruto. Muitas dessas gravações tratavam do sofrimento de famílias despejadas pelo poder público. Todas no centro da cidade e a maioria na zona portuária; local em que se concentra o projeto dito de “revitalização” e chamado de “Porto Maravilha”. A partir das filmagens fui decupando todo o material e encontrando um corte menor. Foi quando senti falta de uma interpretação crítica mais direta daqueles eventos que percebia nos próprios moradores. Então fui a quatro ocupações e conversei com alguns moradores e extraí um discurso mais conjuntural dessas mudanças urbanísticas em torno dos megaeventos. Posteriormente fui procurar os moradores que mais me aproximei nas filmagens, que são os da antiga ocupação Guerreiros do 510. E finalmente os defensores públicos que trabalharam naquela ocasião.

O que mais te chocou durante a produção do filme?

O que mais chocou foi a forma da execução dos despejos. Não houve qualquer proposta de alternativa de moradia para aqueles moradores. Foi utilizado caminhão de lixo para tirar os bens das pessoas e um aparato bélico por parte dos policias desproporcionalmente pensado. Quando se leva centenas de policiais com fuzis para despejar famílias extremamente pobres automaticamente se criminaliza esta condição material. E o indigno é hoje (dia 30 de maio de 2012) a maioria desses prédios, alguns estatais, estarem com paredes de alvenaria em sua entrada, completamente vazios, esperando uma valorização maior para venda.

Você acompanhou a questão do Porto Maravilha. De que forma você acha que a Copa e as Olimpíadas estão dificultando ainda mais a vida destas pessoas?

A Raquel Rolnik publicou em seu blog um levantamento que constata em que medida a Copa do Mundo e as Olimpíadas trouxeram prejuízo social pelos países que passaram. Esse levantamento realizado pela ONU destaca as milhares pessoas que perderam suas moradias e foram empurradas para regiões afastadas do centro da cidade. Para se ter idéia, em Pequim foram despejadas oficialmente 1 milhão e meio de pessoas. O quadro de todos esse países se repete aqui: expulsão depessoas das camadas mais pobres das regiões que se quer valorizar e elevado índice de especulação imobiliária. É triste ver uma celebração que aparentemente é tão bonita e teoricamente popular carregue essa base perversa para acontecer em todos os lugares que passa. O que os movimentos sociais estão tentando fazer é debater e seguir a pauta de luta pela moradia popular. Se quer que para cada 3 prédios empresariais e residenciais de classe média e alta da zona portuária, um seja destinado a moradia de famílias de 0 a 3 salários mínimos.

O levantamento pode ser lido aqui

Em determinado momento, você entrevista um defensor público que aponta vários erros graves na forma com que são feitas as desocupações, como a falta de notificação prévia, falta de justificativas, falta de acesso à defesa, violência etc. Você pôde constatar isso?

Sem dúvida. E muitos despejos são bem piores do que os que consegui mostrar no filme. Os defensores públicos do núcleo de Terras e Habitação lidam cotidianamente com isso. Muitas demolições para construir vias expressas. Imagina acordar uma bela manhã e ter sua casa grafitada com uma sigla; somente depois você vai descobrir que a casa onde vive há mais de 40 anos vai ser demolida. Muitas demolições estão tendo essa forma de notificação. A impressão que dá é que quando se fala em Copa e Olimpíadas tudo é permitido. Isso em nome de um legado para um bem maior. Mas olhem o caso do Jogos do Pan no Rio de Janeiro. O único legado foi uma rede de corrupção entre o poder público e empreiteiras que vem sendo recentemente noticiado. Os estádios do Pan não servirão para Copa. E os da Copa não servirão para as Olimpíadas. Estamos falando de um volume gigantesco de consumo de recursos que não visam a melhora da vida humana nem tratam ela como parâmetro. Por quê o Brasil é apontado como um país que não está fragilizado com a última grande crise mundial que se apresentou em 2008 e se intensificou nos últimos anos? Os Estados Unidos com suas bolhas de crédito, A União Europeia quebrando, a China desacelerando bruscamente, as revoluções e ocupações de 2011, e o Brasil inabalável. De onde vem essa força? Vem grande parte da agenda construída em relação ao consumo de recursos e capitais e pela nova rodada de crescimento que isso vai proporcionar. O que pode parecer positivo num primeiro momento deve entendido como crescimento de lucros e de capitais em detrimento da humanidade. Assim como foram as duas grandes guerras do século passado. Deu no que deu. Consumo da abundância, implícita da forma como o homem produz e crescimento da chamada força produtiva e fabricação e alargamento da miséria humana. Estamos nesse curso, mas não tenhamos dúvida que não será destinado ao povo o melhor que isso pode trazer e sim ao próprio capital em virtude de sua ampliação.

Na frente da câmera o trato era diferente? Ou houve violência também?

Houve sim violência e vemos no Atrás da porta. Mas aquela agressão física do desalojo se estende para a violência de ser expulso das regiões centrais da cidade que claramente trazem mais oportunidade de trabalho e melhores condições para criar uma família.

Você continuou o contato com estas comunidades ou algumas pessoas?

As pessoas que consegui contatar fui levar o DVD do filme, mas por exemplo o grupo da ocupação Guerreiros do 510 se perdeu enquanto coletivo. A ocupação Zumbi dos Palmares e Flor do asfalto foi desalojada depois da finalização do filme. O quadro é muito difícil.

Como você produziu o filme? Teve apoio? Ou foi totalmente independente?

Quando fiz as primeiras gravações não tinha nem câmera própria. Usei de um grande amigo. Me aproximei de um fotógrafo que morava em uma ocupação chamado Chapolim e tocamos com nossos próprios recursos. E isso de uma certa maneira está presente em todo o filme.

Pretende continuar trabalhando este tema?

Acho que pretendo continuar a trabalhar da mesma forma. Até mesmo sobre a questão do megaeventos há uma cobertura jornalística por parte da imprensa hegemônica. Mas vemos ali uma ou outra denúncia pontual com matérias que tendem ao consenso das melhorias maiores. Nos vídeos que experimentei fazer há presença de uma parcialidade pretendida. Há uma tentativa de encontrar imagens, mesmo que narrativas, que tragam uma violência. Que se comece a pensar depois dela. Foi o que tentei e quero continuar tentando.

No filme parece que, ao menos, os moradores estão mais conscientes dos direitos e brigam mais por eles. É isso mesmo? Você chegou a acompanhar alguma conquista?

A consciência dos direitos e a luta há. Mas a correlação de forças é desigual. O quadro local não é muito animador não. Mas o horizonte colocado pela conjuntura internacional dos últimos anos está aí e é amplo. Veremos quais serão os novos programas da humanidade. Alguns pensadores têm colocado que estamos num estágio decisivo, em uma transição profunda. E que a ligação de hegemonia mundial entre capitalismo e democracia está no seio dessa mudança. Cabe ao homem construir um estágio melhor da história de sua passagem nesse planeta. Mas no caso dos moradores pobres do centro do Rio de Janeiro tivemos grandes perdas. Mas algumas ocupações resistem e se fortalecem tanto politicamente quanto juridicamente. Como é o caso da Manuel Congo, Quilombo das Guerreiras e Chiquinha Gonzaga.

Quem está do lado destas pessoas? Há apoio de instituições/orgãos?

Absolutamente. Não há qualquer instituição ou órgão que não seja a defensoria pública ao lado dessas pessoas. Mas vemos no filme que do outro lado, para expulsar, no caso cerca de 80 pessoas de um prédio federal se destacou um quadro efetivo absurdo composto de Batalhão de Choque, Polícia Federal, Polícia Militar do Estado do Rio de janeiro, Comlurb, Secretaria de ordem pública, policiais civis à paisana P2, Guarda Municipal, até o Comandante do Batalhão daquela região. Enfim.

 

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