Por Cora Currier*
A greve de fome começou depois que guardas revistaram exemplares do Alcorão durante uma inspeção nas celas em fevereiro — mas se tornou algo bem maior do que um protesto contra o desrespeito ao livro sagrado.
>Os militares americanos dizem que os detentos haviam escondido “armas improvisadas, comida e remédios não-autorizados” na lombada de exemplares do Alcorão, e que a revista foi feita de acordo com o padrão, por tradutores muçulmanos.
Já os advogados afirmam que os presos propuseram jogar fora os livros, em vez de tê-los revistados dessa maneira. Os militares inicialmente não aceitaram essa opção, mas agora dizem que os detentos podem optar por não ter o Alcorão.
Outras revistas a exemplares do Alcorão já haviam gerado greves de fome em 2005.
Desta vez, todo mundo – desde a Cruz Vermelha até o comandante do Comando-Sul do Pentágono americano – concorda que a greve foi causada pela crescente frustração e desespero dos presos.
Há poucas indicações de que Guantánamo será fechada ou que os detentos serão transferidos para outro lugar num futuro próximo. O último detido a deixar a prisão, no ano passado, só saiu de lá morto.
O general John Kelly, chefe do Comando Sul americano, disse no mês passado que os detentos haviam ouvido o discurso de Obama e perceberam que não haviam nenhuma menção a eles. “Isso causou frustração e eles querem aumentar a temperatura, voltar à mídia” diz Kelly.
Em um relato publicado no New York Times, Samir Moqbel, um detento do Iêmen em greve de fome, afirmou esperar que “por causa do nosso sofrimento, os olhos do mundo irão novamente se voltar para Guantánamo antes que seja tarde.” Outro detento, o saudita Shaker Aamer, também escreveu um artigo, dizendo que esta greve de fome é diferente das anteriores que já fez. Segundo os advogados, a greve de fome foi adotada por muito mais detentos do que os militares admitem. Nesta segunda-feira, o número de grevistas chegou a metade do total – 84 – segundo os militares.
De acordo com os militares, dois presos tentaram cometer suicídio desde o início da greve de fome.
Houve conflitos entre os guardas e os presos?
Sim. Na manhã de 13 de abril , soldados com equipamentos anti-motim transferiram 60 detentos da cela de convivência conjunta para celas individuais. Os guardas atiraram balas não-letais; eles afirmam que os prisioneiros tinham armas improvisadas, como garrafas de plástico cheias de pedras e cabos de vassoura.
Comandantes militares afirmaram ao Miami Herald que os detentos estavam ignorando suas ordens, cobrindo as câmeras de monitoramento, cutucando guardas através das grades, jogando urina nos militares e se recusando a se trancar nas celas para inspeções durante a noite.
Em janeiro houve outro conflito no campo de futebol da prisão no qual os guardas também atiraram balas “não-letais” nos presos.
Em um comunicado essa semana, os militares afirmaram que os detentos foram presos para serem monitorados 24 horas por dia. Em anos recentes, a cela comum foi transformada em dormitório. Agora, segundo o jornal Miami Herald, os presos estão de novo mantidos em celas individuais, sem TV e sem seus documentos pessoais.
Os advogados dos detentos afirmam que os guardas se tornaram mais duros nos últimos meses, confiscando cartas e itens pessoais.
Omar Farah, do Centro de Direitos Constitucionais, diz que ele e outros advogados temem que a transferência para celas individuais os impeça de saber o que está acontecendo com a greve de fome. “Temos obtido informações principalmente através do relato de outros presos.”
Os detentos em greve de fome estão sendo punidos?
Pelo menos um detento afirmou que os grevistas estão sendo punidos ao serem forçados a tomar água da torneira, além de manterem temperaturas baixas nas suas celas. Os militares americanos negam.
Mas e a alimentação forçada?
Até meados de abril, 15 detentos estavam sendo alimentados à força com suplementos nuticionais através de tubos enfiados nariz abaixo. Os militares alegam que os detentos se apresentam voluntariamente para essas sessões. Porém, para eles, os presos que desmaiam estariam dando seu consentimento.
Outros presos são amarrados durante o procedimento. Moqbel escreveu no New York Times que em março ele chegou a passar 26 horas amarrado. Duas vezes por dia eles me amarram a uma cadeira na minha cela. Meus braços, minhas pernas e minha cabeça são amarrados. Eu nunca sei que horas eles vão chegar”, relatou.
A Cruz Vermelha e outros grupos de direitos humanos são contra a alimentação forçada; afirmam que os prisioneiros têm o direito de escolher se querem comer. Já os militares americanos mantêm que seria desumano deixar os prisioneiros morrerem de fome.
Quantos prisioneiros ainda estão em Guantanamo?
166. Desde 2002, 779 pessoas passaram pela prisão.
Nenhum novo detento foi trazido pela administração Obama, e os penúltimos a sair foram dois muçulmanos chineses, transferidos para El Salvador no ano passado. Adnan Latif, um iemenita, suicidou-se em setembro. Foi o nono detento a morrer na prisão.
Os EUA consideram os prisioneiros terroristas perigosos?
Não. Na verdade, cerca de metade dos detentos atualmente em Guantánamo teve a libertação aprovada. Veja como está a situação legal dos presos:
- 56 deles receberam permissão para serem devolvidos aos seus países ou transferidos para outros.
- 30 iemenitas também foram liberados mas continuam na prisão por causa da situação de insegurança no país, segundo os EUA.
- 24 pessoas ainda “podem ser julgadas”.
- 46 estão sendo mantidos indefinidamente presos por serem considerados “muito perigosos para serem soltos”, mas não estão sendo devidamente julgados.
- Sete estão sendo julgados por comissões militares, ente eles cinco acusados de organizar os ataques de 11 de setembro.
- Três foram condenados por comissões militares e estão cumprindo a sentença. Outros quatro foram condenados e depois transferidos para os seus países.
Os EUA não publicaram os nomes dos detentos em greve de fome, mas sabe-se que alguns estão na lista dos que já foram liberados mas continuam presos.
Por que os presos liberados ainda não foram soltos?
Nos últimos anos o Congresso dos EUA proibiu a trasnferência de prisioneiros para o país, e tornou mais difícil a sua transferência para outro países ao exigir a garantia de que o indivíduo não representaria uma ameaça futura.
Isso tornou a transferência difícil, mas não impossível, já que a legislação prevê maneiras de contornar as restrições. Grupos de direitos humanos estão pressionando Obama, sem sucesso.
Desde que a lei entrou em vigor, quatro detentos foram enviados para o exterior, mas em todos os casos as transferências foram ordenadas pela justiça ou resultado de um acordo com a comissão militar – o que é permitido pelo Congresso americano.
Quanto aos iemenitas presos, Obama anunciou a suspensão das tranferências para o Iêmen depois de um atentado fracassado no Natal de 2009. Há também temor de reincidência – segundo um relatório do Diretor de Inteligência Nacional, cerca de 16% dos detentos libertados haviam voltado a atividades de militância.
Mesmo assim, o presidente do Iêmen, que tem trabalhado proximamente com os EUA em contra-terrorismo – inclusive em uma campanha com drones dentro o território do país – recentemente se referiu a Gauntanamo como uma “tirania”.
O Reino Unido também fez lobby pela libertação de um detento em greve de fome, Shaker Aamer, que tem residência no país. O Comissário para Direitos Humanos da ONU afirmou que a detenção por tempo indefinido em Guantánamo “é uma clara violação da legislação internacional”.
Por que Obama ainda não fechou Guantánamo?
A Casa Branca diz que “permanece comprometida” em fechar Guantánamo, mas seus planos foram paralisados pela oposição do Congresso.
Um dos primeiros atos de Obama quando se tornou presidente foi uma ordem executiva para desativar a prisão no prazo de um ano. Ele não descartou a detenção militar contínua ou o julgamento em comissões militares, mas suspendeu temporariamente as comissões e exigiu uma revisão da situação dos detentos. Em um discurso poucos meses depois, Obama disse que “a existência de Guantánamo provavelmente criou mais terroristas ao redor do mundo do que jamais deteve” e provocou “um retrocesso na autoridade moral que é a moeda mais forte dos EUA no mundo”.
A partir daí, o Congresso aprovou restrições – e a administração abandonou muitos de seus esforços para fechar Guantánamo.
Em janeiro, o Departamento de Estado desativou o escritório responsável por realocar os detentos. Mesmo que as restrições de transferência fossem flexibilizadas, ainda não é claro o que aconteceria com os prisioneiros que estão detidos por tempo indefinido. Uma nova revisão periódica dos processos dos detidos foi criada em 2011, mas ainda não começou de fato.
O que os observadores internacionais podem saber sobre Guantánamo?
Não muito além daquilo que os militares querem. As reclamações sobre a qualidade da água, o número de grevistas e as revistas no Alcorão ressaltam as limitadas – e por vezes unilaterais – informações que saem da prisão.
Os detentos se comunicam principalmente através de seus advogados. Os militares controlam o acesso à prisão. Recentemente, repórteres foram expulsos da prisão por algumas semanas.
Há pouco tempo, um fotógrafo da Reuters relatou como foi a sua visita, extremamente monitorada, incluindo restrições do que se podia ou não fotografar. Carol Rosenberg, do Miami Herald, também descreveu recentemente as restrições a repórteres que cobrem Guantánamo, como ela faz há 11 anos. Por exemplo, ela nunca obteve permissão para conversar com um detido.
A Cruz Vermelha tem acesso aos prisioneiros e está em Guantánamo desde o início da greve, mas suas descobertas raramente são publicadas. Na semana passada, o presidente do grupo classificou a situação dos prisioneiros como “insustentável”.
* Texto baseado em reportagem do ProPublica. Leia aqui o original em inglês.