“Eu tinha uma loja de produtos naturais no parque e, em 1997, comecei a ver as fontes sendo fechadas: aquela não dá mais água, a outra está em manutenção, manutenção… Os clientes também estavam reclamando, falavam que precisávamos tomar uma atitude”. E foi o que ela fez. Em 2000, após uma grande enchente na cidade, Nair Ribas D’Ávila teve muitos prejuízos e fechou sua loja. Sem mais vínculos com a Nestlé, ela participou da organização de um movimento de moradores preocupados com o futuro das águas minerais de São Lourenço.
“Eu tinha um grupo de apoio terapêutico grande e começamos a discutir a questão. O Hugo Seabra, que também liderou o movimento, me procurou dizendo que precisávamos fazer alguma coisa e começamos a nos reunir”, relembra Nair.
Das discussões surgiu, em 2001, o Movimento Cidadania Pelas Águas, que conseguiu uma expressiva participação dos moradores nas mobilizações. “Começamos com nossos amigos e foi crescendo, vindo gente de fora, de tudo que é jeito. Fizemos o abraço ao parque com mais de mil pessoas. Um ano depois reunimos 3 mil numa passeata. As matriarcas da cidade saíram para as ruas, foi muito legal. Conseguimos 4.800 assinaturas de apoio numa cidade que não tem o costume de se mobilizar!”, diz.
Além da queda de vazão das águas, sobretudo da fonte Magnesiana, que chegou a secar, também preocupavam os moradores as rachaduras que apareceram em alguns fontanários. Outro problema ocorreu em 1998. Na ampliação da fábrica da Nestlé, que fica dentro do parque, a fonte Oriente, construída na década de 1930, foi destruída. Hoje, há uma réplica da original no espaço.
Espionagem
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Apesar de pouco noticiado no Brasil, o caso teve repercussão em outros países, sobretudo na Suíça, onde fica a sede internacional da Nestlé. Com o apoio do grupo Associação pela Tributação das Transações Financeiras para Ajuda aos Cidadãos (Attac), o ativista ambiental Franklin Frederick realizou diversos debates sobre o tema. “Fizemos uma mobilização bastante grande, com palestras, eventos. A televisão suíça chegou a ir a São Lourenço em 2003 documentar a disputa, o que começou a prejudicar a imagem da empresa”, lembra Frederick. O carioca, que já atuava na defesa das águas antes de se envolver com o movimento de São Lourenço, chegou a participar de uma confrontação pública com o presidente da Nestlé, Peter Brabeck-Letmathe, no Fórum Aberto de Davos, na Suíça, em 2004. Na ocasião, o executivo chegou a anunciar que a empresa cessaria suas atividades na cidade mineira, o que nunca aconteceu.
Na época, Franklin participava da elaboração do livro Attac contra o Império Nestlé (Attac contre l’empire Nestlé), publicado em 2004 pela associação altermundialista. O que ele e os outros membros do grupo não sabiam é que uma das participantes envolvidas nesse trabalho, que dizia se chamar Sara Meylan, era, na verdade, espiã da empresa. Nos relatórios, que eram enviados diretamente à Nestlé, ela prestava contas do conteúdo das discussões e até do perfil dos membros da associação.
Sara era funcionária da empresa de segurança Securitas, contratada pela multinacional para infiltrar pessoas na Attac. A operação foi descoberta por um canal de televisão suíço. A Attac processou as duas empresas e, em janeiro de 2013, quase cinco anos depois do início da ação penal, o Tribunal Civil de Lausanne condenou a Nestlé e a Securitas por “atentado ilícito à personalidade”.
“Foi um escândalo. A polícia teve acesso aos relatórios escritos e o meu nome aparece da segunda página em diante, tem até a minha foto. Mas qual o interesse da Nestlé em um cidadão brasileiro? Sabemos que houve essa operação de espionagem, mas não sabemos quais são as conexões entre a Nestlé Suíça e a Nestlé Brasil nessa história”, questiona Frederick.
Para ele, é importante discutir a questão das águas dentro do contexto global de privatização dos recursos naturais. “O Brasil possui a maior reserva de água doce do mundo, o que faz do país um alvo natural das empresas transnacionais. Mas não vejo muito cuidado com esse tema por aí”. O ativista, que hoje vive na Suíça, ainda chama a atenção para a pequena cobertura que o caso recebeu na imprensa nacional. “Houve um bloqueio muito grande em cima de toda essa história. Cheguei a ser contatado por um jornalista brasileiro que depois sumiu.”
“Só sai reportagem na Europa. Aqui não, ninguém tem coragem de publicar. Uma das matérias mais sérias que já foram feitas por uma equipe de televisão daqui não foi publicada. Fizeram acordo depois das filmagens” reclama Marília Noronha, da ONG Nova Cambuquira, que atua em defesa das água minerais e participou das mobilização em São Lourenço.
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Justiça brasileira
Provocado por um abaixo-assinado com mais de 2.500 assinaturas, o Ministério Público de São Lourenço ajuizou uma Ação Civil Pública ambiental contra a Nestlé, em dezembro de 2001. “Analisei uma série de documentos requisitados à empresa e ao Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) e cheguei a conclusão de que a exploração de um poço denominado Primavera era ilegal – não só sua abertura, mas a desmineralização da água que era realizada”, conta o promotor da ação, Pedro Paulo Aina. A água dessa fonte, com alto teor de ferro, passava por um processo chamado osmose reversa, no qual todos os minerais são retirados. Após essa extração, era feita a adição de sais minerais artificiais. Ou seja, um poço de água mineral estava sendo usado para a comercialização de “água comum adicionada de sais”, vendida sob a marca Pure Life. O procedimento, no entanto, é proibido pelo Código de Águas Minerais, que não permite a alteração da composição dessas águas.
Dados levantados pela Ação junto ao DNPM também mostravam um aumento crescente da produção desde 1972. Naquele ano foram extraídos 6,2 milhões de litros de água para o envase. Já em 1999, esse número era de 27,6 milhões de litros. Para apurar as denúncias de superexploração das águas, o geólogo Aldo da Cunha Rebouças, então considerado um dos maiores especialistas do Brasil no tema, foi contratado para realizar uma perícia na região. Seu laudo foi desfavorável à Ação Civil, atribuindo eventuais problemas na água mineral ao crescimento desordenado da cidade.
Esse parecer técnico, no entanto, foi refutado por ambientalistas da região, como o geólogo Gabriel Tadeu Franqueira de Junqueira, que assessorou tecnicamente o MP. Ele questionou diversas das conclusões, creditando-as à falta de tempo hábil do perito para se inteirar da problemática. Quanto à afirmação de que a fonte Magnesiana estava aberta e produzindo água mineral, por exemplo, Junqueira pergunta em suas considerações sobre a perícia: “Será que colocaram a fonte em atividade durante a visita do perito?” Sem um estudo conclusivo sobre a superexploração, a Ação centrou-se no que havia de mais concreto: a exploração ilegal de um poço.
“No final houve-se por bem fazer um acordo: paralisar a explotação do poço Primavera, não totalmente, mas destiná-lo só para abastecer o fontanário que serve aos frequentadores do Parque das Águas”, explica Aina. Outras condições definidas no Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), firmado em 2006, foram a proibição de extração de gás de outros poços para reforçar a água mineral engarrafada e, como medida compensatória, a substituição de uma mata de pinheiros, situada no Parque das Águas, por vegetação nativa. “O que conseguimos foi não só o possível, como o melhor diante do contexto do processo, em razão da perícia técnica desfavorável. Foi uma vitória da sociedade”, ressalta o promotor.
Futuro
Nair conta que, após uma fase de grande mobilização, o Cidadania pelas Águas se dispersou. “Muitos foram desanimando, alguns se calaram, mas as pessoas continuam aí”, diz. E foi com a difusão das redes sociais que algumas delas voltaram a se mobilizar, sobretudo no último ano.
“Quando entrei no Facebook, um amigo postou uma notícia sobre as águas minerais daqui, outra colega contou como tinha sido em 2000 e começamos a discutir que devíamos retomar o movimento”, explica Alzira Maria Fernandes. Foi também com o auxílio da rede social que eles contataram alguns antigos participantes do Cidadania pelas Águas e outros novos interessados. Por que voltaram? “Não me conformo com a situação como está. Ver as águas perdendo sabor, a cidade afundando, cheia de buracos. A gente não sabe se é pela superexploração”, relata a aposentada. Curiosamente, a articuladora desse novo movimento não participou ativamente do grupo de 2001. “Na época não participei porque estava cuidando de minha mãe, com Alzheimer”, conta.
“Entre uma curtida e outra no Facebook, a Alzira me convidou para participar do Amar’Água. Eu me juntei a eles, porque vejo a situação crítica em que está a cidade e o povo não faz nada”, conta Andreia Ribeiro Rodrigues Ramiro, que resolveu fazer sua parte. Já John Kennedy de Andrade trabalhava no hotel onde ocorreram as primeiras reuniões sobre o problema, em 2001. Desde aquela época, participa das mobilizações. “Se acabar a água, acaba a cidade, porque ainda vivemos do turismo”, conta ele no café onde o grupo, de cerca de dez pessoas, reúne-se todas as quartas-feiras.
“Ninguém tem paciência de ir para a reunião. O processo anterior foi muito desgastante, mas, se precisar de assinaturas, apoios, até de empresas daqui, conseguimos com muita facilidade. Em agosto fizemos uma audiência pública e lotamos a sala. Precisamos é divulgar mais o que está acontecendo. Muita gente não sabe”, acredita Nair. A terapeuta é jornalista de formação, natural de São Vicente, no litoral paulista. Seu contato com os movimentos ambientalistas começou na década de 1970, quando ela estudou ciência política na Universidade Sorbonne, na França. De volta ao Brasil, foi viver num sítio em São Lourenço e trabalhar com uma cooperativa rural.
Nair conta que às vezes se desanima com as dificuldades da luta pelas águas, mas logo a indignação fala mais forte. “As pessoas acham impossível brigar com a Nestlé porque ela faz papinha para criança? Chocolate? Se a cidade ganhasse muito dinheiro, eu não concordaria, mas entenderia. Mas não”, afirma.
Amigos do parque
Outro grupo com origem nos conflitos contra a Nestlé é o Amigos do Parque. Segundo o prefeito Zé Neto, ele foi promovido pela empresa para diminuir o clima de desconfiança da comunidade. “É um grupo formado por comerciantes, idealistas, pessoas da sociedade civil na busca por consenso para tocar a gestão do parque. Grupos de participação são importantes, mas precisam ter foco. Ter assento no Amigos do Parque e pedir melhorias no lago, na iluminação… Não pode ser só ‘sou contra, não concordo com nada’”, diz, referindo-se ao Amar’Água.
Mas para Alzira, o Amigos do Parque deixa de lado o mais importante, que são as águas subterrâneas. Ela também critica a falta de cuidado com o parque, sobretudo quanto ao lago de 90 mil metros quadrados que o espaço abriga. “Está todo poluído, tem dia que a água está vermelhinha”, diz.
A abrangência das discussões do Amigos do Parque também é um problema para o vereador Gil, que participou dele em 2009. “O grupo é de amigos do parque, não das águas. Trata da parte física, para dar idéias de acessibilidade, criar jardim japonês…”
Lago
Representante dos comerciantes no Amigos do Parque, João Gorgulho conta que as reuniões ocorrem a cada dois meses e que a empresa tem grande preocupação com o espaço. Quanto aos problemas do lago, ele diz que na última reunião havia sido apresentado projeto de aeração, mas não soube informar se já estava sendo implantado.
Janimayri Forastieri de Almeida Albuquerque, gerente de meio ambiente de São Lourenço, explica que o lago é artificial e que a água é captada numa área que já chega poluída dos municípios vizinhos. Outro problema, segundo ela, é a dificuldade de movimentação dessa água no lago, que está assoreado. A gerente diz que a empresa tem um projeto, já em andamento, para realizar um pequeno tratamento dessa água e aumentar sua aeração e velocidade de circulação no lago. Segundo resposta da Nestlé, esse problema não afeta as fontes, pois a pressão da água no aquífero é maior que a pressão externa.
As águas da Danone
Um caso semelhante ao de São Lourenço ocorre em Jacutinga, também no sul de Minas Gerais. Lá, a água mineral é explorada por outra multinacional, a Danone, e os planos de ampliação da produção empresa – e consequente aumento da extração da água – levaram o Ministério Público a ajuizar uma Ação Civil Pública. Em 2008, por exemplo, a empresa apresentou pedido de ampliação da explotação de 9 milhões de litros por ano para 61,8 milhões de litros por ano. Em 2009, fez novos pedidos de licenciamento para aumentar sua produção e a explorar novas fontes, pretendendo chegar a uma captação total de 147,6 milhões de litros de água mineral por ano.
Por meio de um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) foi feito um acordo com a empresa, que concordou em arcar com as despesas de uma pesquisa interdisciplinar de um instituto independente para avaliar a capacidade dos aquíferos da região e a sustentabilidade da exploração. Bergson Guimarães, coordenador regional das promotorias de Justiça do Meio Ambiente da Bacia do Rio Grande, conta que no final de fevereiro foram descobertas irregularidades na extração de águas em Jacutinga, com extração de fontes sem licenciamento.
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