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Nas cidades-sede, pressão sobre ambulantes aumenta com regras da FIFA; nas áreas de restrição comercial, só vai vender quem vestir a camisa dos patrocinadores

Reportagem
14 de abril de 2014
13:31
Este artigo tem mais de 10 ano

“Estamos sendo constantemente ameaçados pela Prefeitura do Recife e tememos que o quadro fique mais grave com a aproximação da Copa do Mundo. Mas nós não vamos recuar um passo.” Assertivo, Severino Souto Alves, presidente do Sintraci (Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Comércio Informal do Recife), se exalta ao falar da situação dos trabalhadores ambulantes na capital pernambucana.

Cidades-sede restringem comércio ambulante na Copa do Mundo. Na foto, Recife.  (Foto: Chico Peixoto/Leia Já Imagens)
Cidades-sede restringem comércio ambulante na Copa do Mundo. Na foto, Recife. (Foto: Chico Peixoto/Leia Já Imagens)

Desde outubro de 2013, o Sintraci – criado em dezembro de 2012, para se contrapor aos possíveis impactos negativos da Copa do Mundo – convocou dez manifestações em diversos pontos da Região Metropolitana do Recife; foram seis só nos últimos dois meses. Reivindicam a garantia de permanência de vendedores ambulantes em alguns pontos da cidade (como os bairros da Casa Amarela e da Boa Vista, por exemplo), a construção de shoppings populares, mais diálogo com a administração do prefeito Geraldo Julio (PSB) e a exoneração de João Braga, secretário de Mobilidade e Controle Urbano, órgão responsável por disciplinar o comércio informal em Recife.

“Todas as negociações [com a secretaria] são feitas de forma a restringir o comércio informal”, afirma Severino. Segundo ele, mais de 300 comerciantes já tiveram suas barracas retiradas de vários pontos da cidade e sem realocação alguma.

A chegada da Copa do Mundo acirra a tensão entre trabalhadores ambulantes e as Prefeituras. Um dos pontos críticos é o estabelecimento de áreas de restrição comercial durante os eventos oficiais da FIFA (desde jogos até os congressos da entidade). Desde o dia anterior a qualquer um desses eventos, leis e decretos criados especificamente a Copa do Mundo passam a vigorar nessa áreas.

Criadas para proteger os interesses dos patrocinadores da Copa, as Áreas de Restrição Comercial foram definidas na Lei Geral da Copa (12.663/2012) que atribuiu a regulamentação dessas áreas aos municípios-sede, o que já foi feito em sete sedes: Brasília, Fortaleza, Natal, Recife, Rio de Janeiro, Salvador  e São Paulo. (Veja os mapas abaixo)

As áreas são delimitadas por linhas imaginárias – não há barreiras físicas – e governadas pelas regras da FIFA, em alguns casos, revogando as leis municipais sobre comércio (incluído o ambulante), promoções e publicidade. O objetivo é dar à FIFA o direito de conduzir essas atividades nas áreas de grande concentração de torcedores – e de exposição na televisão -, garantindo aos seus patrocinadores exclusividade comercial e publicitária.

Na capital pernambucana, além do entorno da Arena Pernambuco, que fica no município de São Lourenço da Mata, uma série de ruas e avenidas como as da Boa Viagem, Conselheiro Aguiar e Domingos Ferreira (na orla da Praia de Boa Viagem) e um bairro inteiro – chamado Bairro do Recife – foram incluídos na área de restrição pelo decreto municipal 27.157/2013, sancionado pelo prefeito Geraldo Julio a dez dias do início da Copa das Confederações, no ano passado. Em seu artigo 6o, o decreto determina: “Não será autorizado qualquer tipo de comércio de rua na Área de Restrição Comercial nos dias de Evento e em suas respectivas vésperas, salvo se contar com a prévia e expressa manifestação positiva da FIFA.” Brasília e Fortaleza têm artigos idênticos em seus respectivos decretos.

“É preocupante, porque são áreas onde o comércio ambulante atua sempre aqui no Recife”, diz Severino. Em nota publicada em 8 de abril passado, a Prefeitura afirmou que recebeu o sindicato 38 vezes desde janeiro de 2013 para conversar e que vem tocando negociações em pontos reivindicados pelos ambulantes.

Protesto de trabalhadores ambulantes no dia 11 de abril de 2014 pede a saída do secretário de Mobilidade e Controle Urbano, João Braga. (Foto: Facebook Sintraci)
Protesto de trabalhadores ambulantes no dia 11 de abril de 2014 pede a saída do secretário de Mobilidade e Controle Urbano, João Braga. (Foto: Facebook Sintraci)

Falta de diálogo e indefinição

Em Fortaleza, o vice-diretor da Aprovace (Associação Profissional do Comércio de Vendedores Ambulantes do Estado do Ceará), Guilherme Caminha, reclama da falta de diálogo. “Estamos tentando sentar para conversar desde o início do ano com a Prefeitura para saber como vão funcionar as coisas na Copa do Mundo e não temos respostas”, afirma. “A área do [estádio] Castelão e o centro da cidade são importantes para a gente e esperamos que haja diálogo para podermos atuar por ali. Até agora as únicas informações que eu tenho são as que você me conta”, ele disse ao nosso repórter.

Segundo dados da ONG Streetnet, cerca de 52 mil vendedores informais trabalham na capital cearense. Para a Copa das Confederações, em 2013, foram oferecidas aos ambulantes 250 vagas no entorno do Castelão e no Polo Urbanizado da Lagoa de Messejana. “No fim deste mês vencem as permissões que nós temos para trabalhar lá e nós não sabemos o que vai acontecer. Até agora a prefeitura só apreendeu nossas mercadorias. Só vejo eles perseguindo os ambulantes, mas não ofereceram espaço nenhum para a gente”, afirma Caminha.

Ambulantes protestam pelo direito de vender comidas e bebidas no entorno dos estádios em Recife, durante a Copa do Mundo (Foto: Victor Soares/Leia Já Imagens/Estadão Conteúdo)
Ambulantes protestam pelo direito de vender comidas e bebidas no entorno dos estádios em Recife, durante a Copa do Mundo (Foto: Victor Soares/Leia Já Imagens/Estadão Conteúdo)

Já em Belo Horizonte, as barracas que desde os anos 1960 vendiam feijão tropeiro e outras comidas típicas no entorno do Mineirão foram retiradas em 2010, quando começou a reforma do estádio para a Copa do Mundo. Há quatro anos os barraqueiros não têm trabalho garantido (Leia a história completa aqui).

“Para nós, a Copa foi acompanhada de desemprego e falta de renda”, desabafa Selma Salvino da Silva, presidente da Abaem – Associação dos Barraqueiros da Área Externa do Mineirão -, que também representa outros trabalhadores ambulantes da cidade. Ela conta que, durante a Copa das Confederações, quem decidia trabalhar nos arredores do estádio tinha que fazê-lo ilegalmente, correndo o risco de ter mercadorias apreendidas pela fiscalização. Além disso, a polícia bloqueou a entrada para a Avenida Antônio Abrahão Caran, principal via de acesso ao Mineirão, o que manteve os ambulantes a pelo menos 1 km de distância do estádio.

No dia 9 de julho de 2013, logo após as manifestações que marcaram o país, o governador Antonio Anastasia se reuniu com militantes no Palácio da Liberdade e fez promessas aos ambulantes: “Estamos falando de trabalhadores e familiares. Vou me esforçar para resolver a situação deles o quanto antes. Vamos quebrar a cabeça pra isso”.

“Tem sempre muita luta e muita reunião”, diz Selma, apontando a falta de resultados efetivos apesar das inúmeras audiências que a Abaem teve com assessores do governo do estado, Ministério Público, Secretaria municipal da Copa, BH Trans (Empresa de Transporte e Trânsito de BH), Defensoria Pública e Polícia Militar, entre outras entidades. A última reunião foi no dia 19 de março e as negociações seguem em andamento.

Na Copa do Mundo, os ambulantes querem autorização para vender no entorno do estádio ou pelo menos nas áreas de fan fests (eventos oficiais de exibição pública dos jogos nas cidades-sede). “A gente espera uma negociação pacífica e uma resposta dos órgãos competentes. Quando a gente perceber que não vai ter negociação nem articulação, aí vamos fazer uma ocupação”, alerta Selma.

Até agora não se sabe nem exatamente qual será a área de restrição comercial em Belo Horizonte. Em dezembro de 2013, seis meses depois da Copa das Confederações, Belo Horizonte aprovou a Lei nº 10.689, estabelecendo que o comércio de rua nas imediações e principais vias de acesso ao estádio seguirá as determinações da Fifa em acordo com a prefeitura, não sendo aplicáveis as normas municipais sobre o assunto. Mas não definiu o perímetro das áreas de restrição, o que terá que ser feito por meio de um decreto. Questionada sobre a demora em definir as áreas de restrição comercial e sobre seu posicionamento em relação aos ambulantes, a Secretaria da Copa de Belo Horizonte não respondeu até o fechamento da reportagem.

A serviço dos patrocinadores

O Fórum dos Ambulantes de São Paulo, que reúne membros de sindicatos, associações e coletivos ligados aos trabalhadores ambulantes, atua desde 2011 em conjunto com o Comitê Popular da Copa de São Paulo para garantir os direitos dos trabalhadores ambulantes na capital paulista. Em junho de 2012, com assistência jurídica do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, o Fórum conseguiu uma liminar revogando as cassações de Termos de Permissão de Uso (TPUs) feitas pelo prefeito Gilberto Kassab (PSD) naquele ano. Na decisão da juíza Carmen Oliveira, da 5ª Vara da Fazenda Pública, aparece o número de licenças cassadas: 4 mil.

Trabalhadores ambulantes protestam em Recife (Foto: Facebook Sintraci)
Trabalhadores ambulantes protestam em Recife (Foto: Facebook Sintraci)

A liminar foi derrubada pela Prefeitura ainda em 2012, mas os ambulantes conseguiram reestabelecê-la no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Em 16 de maio de 2013, uma audiência pública definiu que o processo seria suspenso por 180 dias para a elaboração de um plano municipal para o comércio ambulante. Com esse objetivo, foi criado, em setembro, o Grupo de Trabalho dos Ambulantes, composto por representantes dos ambulantes, da sociedade civil e do poder público, e coordenado pela Secretaria de Coordenação das Subprefeituras.

Esse plano ainda não foi lançado, mas o Grupo de Trabalho dos Ambulantes tem funcionado como espaço de articulação de um acordo entre SP Copa (Secretaria Municipal da Copa), FIFA, Secretaria de Coordenação das Subprefeituras e Fórum dos Ambulantes para garantir trabalho aos ambulantes durante a Copa do Mundo. “Estamos negociando para que os ambulantes vendam produtos das empresas patrocinadoras da Copa no entorno do estádio, na fan fest e nos outros cinco eventos de exibição pública”, diz André Cintra, assessor de imprensa da SP Copa.

Porém, o decreto nº 55.010, publicado na quinta-feira passada, afirma apenas que a FIFA possui o direito sobre o comércio de rua nas áreas de restrição comercial nos dias de eventos oficiais e nas vésperas, sem detalhar como isso vai acontecer.

“Vai ter ambulante na Copa. Isso está fechado. É uma coisa boa para o ambulante, boa para quem está nas ruas. Para a Ambev e para a Coca-Cola, o que importa é vender a latinha, então quanto mais ambulantes houver, melhor”, afirma Cintra. Segundo ele, o número de ambulantes que poderão atuar nesse esquema e a logística ainda estão sendo discutidos pelo Grupo de Trabalho, mas deve ficar em torno de 400 postos de trabalho.

Esse esquema conta com as benção da FIFA, que declarou: “Em 2013, por meio de uma iniciativa inédita, a FIFA e COL autorizaram que quatro Sedes da Copa das Confederações da FIFA Brasil 2013, em conjunto com os patrocinadores oficiais, implementassem um projeto com ambulantes, que foram previamente selecionados, treinados e devidamente credenciados para atuação nas imediações dos estádios nos dias dos jogos. Para a Competição em 2014, a FIFA e COL, juntamente com outros atores relevantes, têm estimulado as autoridades locais e patrocinadores oficiais da Copa do Mundo da FIFA 2014™ a desenvolver e implementar projeto semelhante. É importante notar que, mesmo que seja conduzido um programa de qualificação para os vendedores do setor informal pelas autoridades locais, a atuação dependerá de autorização prévia e deverá ser fiscalizada nos dias dos jogos, a fim de garantir o mínimo impacto para as operações e, sobretudo, proteger aqueles que consumirão os produtos em questão.”

Na boca do Itaquerão

O assessor de imprensa da SP Copa também reconheceu as limitações da comunicação da prefeitura com os vendedores que estão hoje no entorno do estádio do Corinthians, o Itaquerão. Ali, os ambulantes trabalham em meio aos canteiros de obras sonhando com as oportunidades oferecidas pela Copa do Mundo ao mesmo tempo que convivem com a total falta de informação, como apurou a reportagem da Pública em visita à Arena Corinthians no dia 3 de abril. “O pessoal tá querendo montar um negocinho aqui, arrumar um cantinho para vender. Só que perto não vai poder ficar”, diz Elisângela Soares de Melo, que há duas semanas vende água, refrigerante e sorvete para os operários e visitantes do Itaquerão.

 Elisângela Soares de Melo vende água, sorvete e refrigerante para os operários do Itaquerão, em São Paulo, e pretende trabalhar durante os jogos da Copa (Foto: Joseh Silva/Agência Pública)
Elisângela Soares de Melo vende água, sorvete e refrigerante para os operários do Itaquerão, em São Paulo, e pretende trabalhar durante os jogos da Copa (Foto: Joseh Silva/Agência Pública)

“No começo do ano, fomos na prefeitura pedir uma licença para trabalhar aqui, mas eles disseram que ninguém ia ficar na frente do estádio porque lá dentro vai ter um shopping que vai atender às necessidades dos torcedores”, relata Josi dos Santos, que trabalha lá há três meses. “Se ninguém se opuser, estaremos aqui. Mas a gente não sabe o que vai acontecer”, resume Valéria Nogueira, ambulante no local há um ano.

‘A FIFA tem poder de município’

“Uma vez que as atividades não autorizadas concentram-se, invariavelmente, no entorno dos estádios e outros Locais Oficiais de Competição, focando no grande número de torcedores que transitam em tais regiões, as Áreas de Restrição Comercial tornam-se, operacionalmente, essenciais para a organização da Copa do Mundo da FIFA”, afirma o departamento de imprensa da entidade, alegando que os ambulantes podem “atrapalhar o fluxo de pessoas e de carros na chegada aos jogos, além de trazer problemas para as equipes de segurança”.

O presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB (SP), Martim de Almeida Sampaio, que fez um estudo sobre a Lei Geral da Copa, critica o que considera a criação de tipos penais inexistentes para garantir os privilégios da FIFA e de seus patrocinadores. “Há três crimes novos nessa legislação: proteção à marca FIFA, marketing de emboscada por associação e [marketing de emboscada] por intrusão. Eu pesquisei: pelo Direito Comparado não existem essas três figuras penais nos principais sistemas legais”, afirma. O marketing de emboscada por associação é quando alguém divulga marcas, produtos ou serviços e os associa aos eventos ou símbolos oficiais da FIFA, sem a autorização dela. Já o marketing de intrusão ocorre quando alguém faz uma promoção de produtos, marcas e serviços nos locais de competição, sem se associar ao evento, mas chamando a atenção do público. Os crimes estão definidos nos artigos 32 e 33 da Lei Geral da Copa e têm penas previstas de três meses a um ano de detenção.

“O Direito Penal é um campo do Direito cujo objeto tutelado é a sociedade. Por exemplo, existe uma lei que diz que matar é crime. Isso está protegendo quem? Alguma pessoa específica? Não, está protegendo a sociedade. A Lei Geral da Copa é um caso de Direito Penal de autor. Não se está protegendo a sociedade, mas se está protegendo as marcas da FIFA”, argumenta.

“Essa lei declara um autêntico estado de sítio. A soberania nacional foi posta de lado. A Constituição Federal declara a nossa liberdade comercial e a Lei Geral da Copa delimita áreas onde a FIFA é responsável por determinar quem [pode comercializar] e o que pode ser comercializado”, critica o presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB. Sobre os ambulantes, diz: “a FIFA agora assume a postura de legislador municipal e tem o poder de proibir inclusive os vendedores ambulantes que estão devidamente regularizados”.

“Transferir para a FIFA o papel de gestão de um espaço urbano dentro da cidade é muito grave”, reitera Orlando Santos Jr., sociólogo doutor em Planejamento Urbano e pesquisador do Observatório das Metrópoles. “Quem legitimou essa autoridade para que a FIFA possa regular o espaço público de uma parte da cidade? Há também um impacto sobre o direito dos cidadãos de se apropriarem da cidade na qual vivem. Eu estou com o meu direito cerceado por uma lei de exceção que não me permite a apropriação desse espaço durante um certo período. Cria-se um precedente do ponto de vista de subordinar a gestão do espaço público a interesses privados”, diz Orlando.

Sobre os ambulantes, é taxativo: “As medidas de restrição ao comércio ambulante sinalizam como uma restrição ao próprio direito ao trabalho, garantido pela Constituição. Está se criando uma restrição específica a certo grupo social, portanto, a meu ver, restringindo seu direito ao trabalho”, diz Santos Jr.

O coordenador do programa de justiça da ONG Conectas, Rafael Custódio, tem a mesma percepção: “Uma coisa é a FIFA querer regular as áreas onde o evento acontecerá, outra coisa é querer regular o espaço público do entorno. Regulamentar dessa maneira o entorno dos estádios é absolutamente ilegal e abusivo. O interesse de uma entidade privada se sobrepõe a uma série de direitos fundamentais e sobretudo ao interesse público”, afirma.

A FIFA afirmou por meio de nota que “as áreas de restrição não são uma medida inédita ou exclusiva da Copa do Mundo da FIFA™ ou da Copa das Confederações da FIFA. É usual que eventos de grandes proporções (e não apenas esportivos) contem com áreas nas quais determinadas atividades comerciais não são permitidas. Trata-se de medida lógica e necessária para a preservação da ordem e da legalidade em um evento que atrairá milhões de pessoas”.

Veja os mapas das cidades-sede com as Áreas de Restrição Comercial definidas:

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