“Segurança fica a cargo das autoridades do Estado. A Fifa não pode garantir segurança. Isso faz parte do compromisso do governo que organiza”, afirmou categoricamente Sepp Blatter, presidente da FIFA, em uma coletiva de imprensa em Hong Kong no final de abril.
Não é o que prevê o acordo para sediar a Copa (hosting agreement) nem a Lei Geral da Copa. De acordo com esses dispositivos, a segurança do interior e do entorno dos estádios – o chamado “perímetro de segurança” – estará a cargo de 20 mil agentes privados contratados diretamente pelo COL, o Comitê Organizador Local da Fifa.
Serão esses agentes privados, ou “stewards”– seguranças treinados e sem qualquer tipo de armamentos – que vão acionar as forças de segurança pública caso avaliem ser necessário. Eles também comandarão a segurança nas demais “instalações oficiais”, como os hotéis onde estarão as delegações, os Centros de Treinamento de Seleções, os Campos Oficiais de Treinamento e o Centro de Mídia. Nesses locais, “a força pública é usada apenas sob demanda”, nas palavras da assessoria de imprensa do COL.
Até o final de abril, porém, a Fifa não havia comunicado à Polícia Federal, que pela legislação brasileira tem a atribuição de fiscalizar as forças de segurança privada atuantes no país, nem quais foram as empresas contratadas. “O responsável pela contratação das empresas é a Fifa e até o momento não nos foi enviada uma relação das empresas contratadas para fornecer segurança no evento”, confirmou a Polícia Federal à Agência Pública no dia 28 de abril, em resposta a um pedido de Lei de Acesso à Informação. “O processo de seleção foi realizado pela Fifa sem participação do Departamento de Polícia Federal. Os contratos são firmados pela Fifa sem divulgação de duração e valores à Polícia Federal”.
Uma lacuna que preocupa os especialistas em segurança pública e que não parecer fazer sentido diante da afirmação do presidente da Fifa de que a responsabilidade pela segurança durante os jogos é do Estado brasileiro. “Não pode o responsável pela fiscalização, que é a PF, dizer que não tem nenhuma informação sobre quem vai fazer, até porque isso tem que estar interligado ao esquema maior de segurança, que afinal de contas é público”, diz a analista de Justiça e Segurança Pública do Instituto Sou da Paz, Carolina Ricardo. “Não faz sentido ter essa separação. O que não está muito clara é essa relação com a segurança privada”. A resposta ao pedido de acesso à informação ilustra bem a falta de normas claras. Perguntada sobre protocolos que regerão o emprego das forças privadas nos estádios, a PF declarou: “O protocolo de atuação da segurança privada consiste na prevenção de ocorrência de ilícitos, com acionamento da Força Pública em caso de sua ocorrência”.
Uma carta na manga
O Planejamento Estratégico de Segurança para a Copa do Mundo do Ministério da Justiça, determina apenas que “no que se refere às medidas de segurança nos locais de interesse, a FIFA, através da Gerência Geral de Segurança do Comitê Organizador da Copa do Mundo FIFA Brasil 2014, terá responsabilidade pelas ações de segurança privada nos perímetros privados dos locais de interesses”. E acrescenta: “Se, por qualquer motivo, a segurança no interior de um estádio ou outro local sob a responsabilidade da FIFA não for garantida por esta entidade, as autoridades públicas de segurança assumirão e avocarão a responsabilidade e o controle dessas áreas”.
Mas, apesar de utilizar essa prerrogativa na hora de contratar as forças de segurança privada, a Fifa não terá nenhum tipo de ônus em caso de problemas, daí a declaração de Blatter. Desde 2007, durante os acordos para o Brasil sediar a Copa do Mundo, a Fifa tem em seu poder uma carta de garantias assinada pelo então ministro da justiça Tarso Genro, que afirma: “Nós aceitamos completa responsabilidade legal por quaisquer incidentes de segurança e/ou acidentes em conexão com a Competição, e indenizamos, defendemos e isentamos a Fifa e todas as subsidiárias da Fifa de toda a responsabilidade legal, obrigações, perdas, prejuízos, ações, demandas, recuperações, deficiências, custos ou despesas (incluindo honorários de advogados) que as partes possam sofrer ou incorrer em conexão com, resultantes de ou a partir de quaisquer incidentes de segurança e/ou acidentes em conexão com as Competições”.
A promessa virou lei com a Lei Geral da Copa, promulgada 5 anos depois. No artigo 23 a União assumiu legalmente responsabilização civil perante a Fifa por todos os danos decorrentes de acidentes de segurança relacionados ao evento – exceto se a Fifa tiver motivado os danos. Isso significa que, se houver qualquer processo contra o evento motivado por questões de segurança na Copa, quem paga os custos é o Brasil.
O artigo 23 foi referendado esta semana pelo Supremo Tribunal Federal ao julgar uma ação de inconstitucionalidade movida pela Procuradoria-Geral da República. A votação foi quase unânim: 10 votos a favor e um único contrário, do presidente do STF, Joaquim Barbosa. Na declaração de voto, muitos ministros louvaram as vantagens econômicas do Brasil sediar a Copa. Um deles foi o relator, ministro Ricardo Lewandowski, para quem o compromisso de sediar a Copa foi assumido “livre e soberanamente” pelo Brasil quando se candidatou e entre as promessas figurava “a responsabilidade por eventuais danos decorrentes do evento”. Já o ministro Teori Zavascki incluiu até a previsão das fontes de pagamento de eventuais prejuízos legais: dinheiro do Tesouro Nacional. (leia mais aqui)
Nó jurídico
“A possibilidade de segurança privada nos estádios surgiu com a Copa do Mundo”, explica André Zanetic, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP que estuda o setor privado. Segundo ele, com as exigências da Fifa abriu-se uma nova frente de negócios, as empresas de “stewards” – e, com eles, um tremendo nó jurídico e muitos desafios em termos de fiscalização. “Virou a atividade principal a ser apoiada quando o Brasil acabou sendo escolhido para ter Copa do Mundo e a Fifa ficou responsável em fazer a segurança dos estádios. Mas isso só faz sentido se você tiver uma articulação consistente com as forças públicas”.
O emprego dos “stewards” foi regulamentado por uma portaria da Polícia Federal de dezembro de 2012, que estabelece como critério central para esse novo tipo de trabalho a necessidade de tais agentes realizarem um curso com carga horária de 50 horas, ou 5 dias, em escolas aprovadas pela PF. Foi a primeira vez que apareceu na legislação brasileira a figura do “vigilante em extensão em segurança para grandes eventos” – esses são definidos como “aqueles realizados em estádios, ginásios ou outros eventos com público superior a três mil pessoas”.
Publicada às pressas, seis meses antes da Copa das Confederações, a portaria deu um “jeitinho” para que os seguranças privados da Fifa pudessem atuar nos estádios. Inicialmente, o Ministério da Justiça pretendia aprovar o Estatuto da Segurança Privada – a lei atual é de 1983 – que deve regulamentar as cerca de 2 mil empresas e 700 mil vigilantes em atuação no país – número maior que o das polícias federal, civil e militar de todos os Estados juntos. O tema, no entanto, é tão espinhoso que o texto ficou meses parado na Casa Civil e o governo ainda não apresentou o texto do projeto de Lei ao Congresso.
“Já faz muito tempo que está se tentando fazer uma nova regulamentação ao setor. Tinha se chegado à conclusão de que não iam conseguir fechar antes, e isso [a regulamentação dos “stewards”] precisava avançar sem passar por toda a discussão do legislativo”, explica André Zanetic. “Mas de certa forma corre-se o risco de ser um arranjo insuficiente para dar conta dos problemas da organização da segurança na Copa”. Ele lembra o episódio da partida entre Atlético-PR e Vasco da Gama em dezembro do ano passado no estádio Arena Joinville, quando uma briga na arquibancada deixou quatro feridos e resultou em troca de acusações entre a Polícia Militar e o Atlético, que tinha contratado 60 seguranças para o evento. “Hoje a gente começou a fazer segurança privada nos estádios de futebol de uma forma mal ajambrada que começa a dar esses resultados. O que aconteceu em Santa Catarina pode acontecer de novo”, alerta o especialista.
Legislação de encomenda
O atropelo legal para a segurança na Copa ficou claro alguns meses depois da publicação da portaria da PF, em maio de 2013, o texto foi alterado pelo diretor-geral da PF Leandro Daiello Coimbra, abrandando a sua principal exigência: a formação dos vigilantes. A exigência inicial era de que a obrigatoriedade valeria dali a seis meses, mas a data foi mudada para dez meses. Portanto, ela não foi aplicada na Copa das Confederações, “considerando a impossibilidade prática de que as empresas de curso de formação de vigilantes capacitem profissionais em quantidade suficiente”, diz a portaria da PF. Mudou-se a lei porque não ia dar tempo.
Hoje em dia o curso é obrigatório para todos os que vão fazer a segurança privada dos estádios. No entanto até o final e abril, apenas 5084 vigilantes haviam passado pelo curso de 5 dias, segundo dados da PF publicados pela BBC. A Fifa pretende empregar 20 mil.
Entre outros itens, o curso inclui conhecimentos da cadeia de comando da segurança e responsabilidades das forças públicas; técnicas de controle de acesso; gerenciamento de público – o que inclui “psicologia básica de controle de multidões” –; e conhecimentos básicos de direito, da Constituição, do Código Penal, do Estatuto do Torcedor e do regulamento de segurança da Fifa. O quesito “uso progressivo da força” é descrito como “técnicas de imobilização e condução de detidos; defesa contra agressão de instrumentos lesivos a integridade física dos espectadores e dos próprios vigilantes; técnicas de contenção de distúrbios em massa”.
As aulas também ensinam o vigilante a “desenvolver exercício prático de formação, como cortina humana para impedir avanços de multidões e outros gerenciamentos e separação de conflitos, como contenções e escoltas”, e enfatiza a obrigação de “identificar e comunicar seu superior sobre comportamentos anti-sociais, racistas, xenófobos, ou contra crianças e idosos; e desenvolver técnicas de dissuasão de tais comportamentos, caso sua atuação, individual ou em equipe, seja suficiente para encerrar a ocorrência, sem deixar de fazer o devido encaminhamento às autoridades”
Mas apesar de definir todas essas atribuições para os vigilantes privados, ainda não está claro, segundo os especialistas, qual será o poder de fiscalização que a PF terá de fato e como será a articulação entre os seguranças privados e as forças públicas. “Se você pegar a regulação que foi feita na legislação sobre segurança na Copa, você vê que não tem nenhum protocolo específico sobre como seria feita a tal ação integrada”, diz André. “Há uma insegurança jurídica muito grande, inclusive dentro do pessoal da PF, de ter que lidar com um ordenamento jurídico vago, que se resume a algumas frases falando que vai haver integração entre forças públicas e segurança privada em ações que ficam na alçada da segurança privada”.
A Pública procurou a Polícia Federal e a Fifa para perguntar como será feita a fiscalização da segurança privada durante a Copa. Não obteve respostas. A Fifa também não informou os nomes das empresas contratadas, os valores ou a duração dos contratos, como havia sido solicitado pela reportagem.
O Legado
O pesquisador André Zanetic enfatiza que não é contra o uso de segurança privada dentro dos estádios. Essa é apenas uma das facetas da crescente privatização desses espaços, na qual não faz sentido ter “um contingente público atuando numa atividade específica privada”, diz ele.
A mesma visão foi defendida calorosamente pelo presidente da Associação Brasileira das Empresas de Vigilância (ABREVIS) José Jacobson Neto Presidente em um editorial na revista da associação em outubro de 2012. “Os stewards são o símbolo internacional dessa nova concepção em segurança para grandes eventos”, escreve ele, defendendo a chegada de uma “nova cultura” ao Brasil que “vai trazer de volta as famílias aos estádios” – e gerar altos lucros. “Os estádios passam a ser arenas multiuso, onde os jogos de futebol figuram como uma das atividades, juntamente com promoções de shows, eventos culturais, religiosos, artísticos e de outras modalidades desportivas. Restaurantes, cinemas e teatros complementam os atrativos. E serão exatamente esses atrativos que propiciarão a arrecadação necessária para tornar as arenas multiuso uma atividade economicamente viável ao ponto de tornar pagável uma segurança de qualidade”.
O mesmo editorial não deixa dúvidas de que as demandas da Fifa constituíram um “marco” para o setor de segurança privada. “O grau de confiança atribuído à segurança privada iniciou-se com a FIFA, que legitimou o emprego de seus regulamentos no Brasil quando firmou o host agreement com o então Presidente Lula. Posteriormente, o COL/FIFA – Comitê Organizador Local permitiu a inserção do art. 70 na Lei Geral da Copa (Lei nº 12.663, de 5 de junho de 2012), que introduziu a segurança privada no sistema jurídico brasileiro para os jogos do evento. Finalmente, o COL buscou afinar sua doutrina com a Polícia Federal, órgão regulador da segurança privada no Brasil”.
O texto termina num tom profético: “A sorte para a segurança privada do Brasil está lançada. A Copa do Mundo será um divisor de águas, elevando o segmento como parceiro dos órgãos de segurança pública dentro do novo sistema integrado de segurança”.
Em email enviado pela sua assessoria de imprensa, a Fifa coloca as mudanças na área de segurança como “parte importante do legado da Copa para o Brasil” e destaca especificamente a segurança privada: “Entre os impactos a serem observados estão a capacitação dos profissionais de segurança privada para atuação em grandes eventos, a regulamentação da profissão de steward, o novo conceito de procedimento operacional compartilhado entre as seguranças pública e privada, as adequações técnicas visando o combate a incêndio e pânico, instalações inteligentes e equipamentos eletrônicos adequados para a prevenção da violência (por exemplo, identificação de torcedores que já causaram problemas anteriormente), entre outros avanços”.