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Viajamos a Havana para conhecer a ilha, conversar com os cubanos, saber como vivem; guiadas por esse povo educado, curioso e bem informado descobrimos riquezas que não aparecem nos jornais

Crônica
16 de janeiro de 2015
10:30
Este artigo tem mais de 9 ano

A pousada fica em um pequeno prédio reformado pelos próprios moradores que se destaca entre as belas mas maltratadas construções da ruazinha em Habana Vieja. Ali tudo funciona perfeitamente, do  elevador de porta pantográfica ao ar condicionado dos quartos dos hóspedes. Depois do mutirão, os apartamentos dos três andares se tornaram pousadas familiares e o térreo, um salão de cabeleireiro.

O apartamento do segundo andar, onde funciona a Casa de Maura, foi caprichosamente decorado por nossa simpática anfitriã, uma engenheira de 49 anos, casada, com dois filhos. Na sala com sofás de veludo e espelhos antigos não falta nem a TV digital – pendurada na parede como ela “viu nos filmes”, conta, com seu sorriso largo.

Depois de anos trabalhando para o Estado, a engenheira passou a fazer parte dos 500 mil cuentapropistas (trabalhadores por conta própria) cubanos, donos de pousadas, restaurantes caseiros, salões de cabeleireiro, táxis. Eram 100 mil em 1991, início do chamado “período especial”, marcado pela escassez que se seguiu à queda da União Soviética e do bloco socialista europeu. Isolado desde 1962 pelo bloqueio dos Estados Unidos, endurecido com a promulgação de novas leis em 1992 e em 1996, o país perdeu 78% das importações e ficou sem insumos para produzir.

Em Habana Vieja, pousadas familiares e apartamentos residenciais se misturam ao comércio. Foto: Veruscka Girio
Em Habana Vieja, pousadas familiares e apartamentos residenciais se misturam ao comércio. Foto: Veruscka Girio

Para vencer a fome que ressurgia depois de trinta anos de revolução, o governo foi forçado a abrir a economia para o pequeno investimento privado e para empresas estrangeiras. Esse processo de abertura, com avanços e recuos no governo de Fidel Castro, ganhou impulso na presidência de seu irmão Raúl, que o substituiu em 2008. Hoje já se vê carros novinhos da francesa Peugeot circulando entre os Chevrolets dos anos 1940/50 e anúncios de emprego na iniciativa privada. O marido de Maura, por exemplo, trabalha em uma empresa canadense, ganhando um salário alto para os padrões cubanos: 150 dólares. Um funcionário de nível superior empregado no Estado – que continua a deter a propriedade da maior parte das empresas no país – recebe cerca de 600 pesos cubanos, ou 25 dólares por mês.

Na Casa de Maura a diária para duas pessoas é de 30 pesos conversíveis (CUCs) – outra criação dos anos 1990 para legalizar o mercado negro do dólar; um CUC vale 25 pesos nacionais (o dólar vale 24 pesos nacionais). O apartamento tem quatro suítes; uma ocupada pelo casal e as outras três reservadas para os hóspedes – os filhos, uma estudante de arquitetura de 21 anos e um garoto de 15 anos, moram atualmente em um apartamento próximo, alugado por Maura para “manter a privacidade dos meninos”.

E os negócios vão bem. Em dezembro, Maura já estava com as reservas fechadas até fevereiro. A abertura do turismo foi a medida do período especial que obteve o melhor resultado até agora. Em 1990, 340 mil pessoas viajaram a Cuba; em 2013, foram 2,8 milhões de pessoas, deixando 2,6 bilhões de dólares em divisas de acordo com os dados mais recentes da Oficina Nacional de Estadísticas. Para se ter uma ideia do que isso significa para o cotidiano dos cubanos, em Havana, a maior cidade do país, vivem 2,1 milhões dos 11,1 milhões de habitantes da ilha.

E o número de turistas deve aumentar após o recente reatamento das relações diplomáticas entre Cuba e EUA, rompidas pelo presidente Kennedy em janeiro de 1961, com dramáticas consequências para Cuba. Três meses depois, em abril de 1961, o ataque frustrado de imigrantes financiados e armados pela CIA na Baía dos Porcos daria início à guerra suja, que continuou mesmo depois da queda do bloco comunista. Os atentados sofridos pelos cubanos desde a Revolução de 1o de janeiro de 1959 causaram 3478 mortes e 2009 feridos até 2012, de acordo com a denúncia do governo cubano a ONU.

Painel no Museo de la Revolución com os inimigos: o ditador Fulgencio Batista, e os ex- presidentes americanos Ronald Reagan, Bush pai e Bush filho. Foto: Veruscka Girio
Painel no Museo de la Revolución com os inimigos: o ditador Fulgencio Batista, e os ex-
presidentes americanos Ronald Reagan, Bush pai e Bush filho. Foto: Veruscka Girio

O final da guerra fria também não foi suficiente para acabar com o bloqueio econômico decretado pelo presidente Kennedy. Ao contrário: os Estados Unidos aumentaram o isolamento de Cuba com as leis Torricelli (1992) e Helms-Burton (1996) que punem também seus parceiros comerciais que negociarem com a ilha. Em 1992, a ONU condenou o bloqueio pela primeira vez “por motivos humanitários”. Em outubro de 2014, 185 países se declararam contra o bloqueio em votação na ONU; Estados Unidos e Israel foram os únicos a votar a favor.

E o bloqueio continua trazendo sofrimento ao povo cubano, como alertou o presidente Raul Castro em entrevista logo após o reatamento diplomático em 17 de dezembro de 2014. Seus oponentes dizem que o bloqueio ajuda o governo cubano a esconder seus próprios erros mas, como diz o ministro das Relações Exteriores de Cuba: “Que suspendam então o bloqueio por um ano para ver o que acontece”. Vamos esperar que Obama nos dê a chance de checar quem tem razão.

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Havana Vieja e Centro Habana, com destaque para o Capitolio, copiado dos Estados Unidos e transformado em Museu da Ciência pela Revolução. Foto: Veruscka Girio

 

Sin contrapartidas

Estivemos em Havana de férias entre novembro e o início de dezembro – fomos embora uma semana antes do reatamento diplomático que colocou novamente a ilha sob os holofotes. A artista multimídia Veruscka Girio (que vai participar da próxima Bienal de Havana, em maio) e eu queríamos conhecer a capital cubana, conversar com as pessoas, saber como vivem. Mas nossa experiência rendeu cenas e papos tão mais ricos do que a “decadência” de Havana retratada nos jornais, que não resistimos a publicar as fotos e o relato dessa viagem em que fomos recebidas de braços abertos por um povo alegre e corajoso que “gosta de se vestir bem, dançar, fazer a festa, e enfeitar a casa”, como definiu com simplicidade Gladys, uma de nossas “vizinhas” na Casa de Maura.

Os cubanos também são mais bem informados, e céticos em relação aos americanos, do que as notícias deixam transparecer. Quando Obama e Castro trocaram prisioneiros, a tarjeta de ligações internacionais da telefônica cubana ainda exibia a imagem de “los cinco heroes” – três deles libertados pelo acordo costurado pelo Papa Francisco (dois já haviam sido soltos pela Justiça). Os cinco agentes da inteligência cubana, presos por espionagem em 1998, haviam se infiltrado nas organizações terroristas dos imigrantes cubanos em Miami (Alpha 66, Omega 7 e outras) com a missão de prevenir os atentados à ilha que os americanos sempre se negaram a investigar. Entre eles as bombas que em 1997 explodiram em oito hotéis de luxo em Havana e Varadero, até hoje a praia mais procurada pelos estrangeiros. Os políticos republicanos americanos são historicamente aliados aos líderes de direita dos imigrantes cubanos que apoiam os terroristas e as sanções contra o seu próprio povo para tentar desestabilizar o governo desde a Revolução de 1959.

Pelas leis vigentes nos Estados Unidos, que só podem ser revogadas pelo Congresso com maioria republicana, Cuba teria que adotar “uma democracia” ao estilo americano para que o bloqueio acabe. Uma interferência que os cubanos rejeitam independentemente do que pensam sobre seu próprio governo e das vantagens que poderiam obter –  a estratégia de Obama e Castro tem sido a de “esvaziar” o bloqueio com medidas paralelas. Foi Maura, que espera os turistas americanos de braços abertos, quem nos ensinou a expressão que ouvimos depois nas esquinas calientes de Havana quando se falava em condições para suspender o bloqueio: Sin contrapartidas.

De uma sacada de Habana Vieja

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Vista da sacada da Case de Maura na Calle Refugio em Habana Vieja. Foto: Veruscka Girio

 

A sacada do segundo andar com vista para a rua e uma geladeira recheada de cervezas nacionais (Crystal e Bucanero) logo se tornou o lugar favorito de nosso lar habanero. Dos banquinhos altos estofados, assistíamos de camarote ao desfile de elegância e alegria que enfeita as ruas da capital cubana iluminadas pelo sol acolhedor do início de inverno caribenho. Mulheres de porte altivo e andar macio exibem suas roupas estampadas em cores vibrantes que se destacam nas diversas tonalidades de peles negras. Bandos de meninos e meninas em uniformes escolares vão e voltam para a casa aos risos e brincadeiras entre garotos de skate, jovens de cabeças raspadas, homens de camisa social em cores tropicais.

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Os bicitáxis são muito utilizados como meio de transporte e têm caixas de som embaixo do banco dos passageiros. Foto: Veruscka Girio

 

As caixas de som das bicitáxis irradiam a música caribenha eletrônica – o reggaeton – animando os vizinhos que conversam nas calçadas. Os rapazes se debruçam sobre os motores dos carrões antigos, sempre em manutenção, a mãe chama os filhos da janela, o vendedor passa com o pão e a manteiga. De vez em quando, um grupo de turistas interrompe o colorido cubano com suas peles claras e roupas de cor neutra.

Ninguém tem medo de andar nessa cidade onde “todas as ruas levam ao mar”, como eles dizem. Mesmo nos bairros turísticos não se vê nenhum aparato militar e a presença policial é discreta. Em Havana, o povo é dono da rua e até altas horas conversa em suas calçadas, caminha por seus paseos, joga bola nas plazas, namora no Malecón.

Museu vivo a céu aberto

Em Habana Vieja moram 100 mil pessoas, 67% no centro histórico, que passa por um grande processo de restauração desde 1994. Entre quase 600 edificações de alto valor histórico e mais de cem monumentos dos séculos XVI a XIX, escolas, postos de saúde, bibliotecas públicas e prédios residenciais se misturam a hotéis, museus, lojas, bares e restaurantes frequentados pelos turistas, como os mundialmente famosos La Floridita e La Bodeguita del Medio.

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Vista da fortaleza San Carlos de La Cabaña, onde todas as noites dispara-se um tiro de canhão como se fazia nos tempos coloniais. Foto: Veruscka Girio

Declarado patrimônio da Humanidade pela Unesco, o centro histórico nasceu em 1519 como Villa de San Cristobal de La Habana, protegida da cobiça dos piratas por uma murada – o Malecón – e quatro fortalezas. A mais famosa delas é o Castillo de los Tres Reyes Magos del Morro, de 1610, onde fica o farol do Morro, a imagem-símbolo de Havana.

O casario histórico ocupa pouco mais de 2 km2 de ruas de calçamento de pedra entremeadas por plazas e igrejas e preserva os traços da arquitetura colonial mais do que qualquer outra localidade na América Latina de acordo com o levantamento da Oficina del Historiador, que orienta o Projeto de Desarrollo Integral del Centro Histórico de La Habana Vieja.

Financiado pelos lucros da rede estatal de restaurantes, lojas e hotéis do centro histórico (80% da rede hoteleira e comercial de Havana continua nas mãos do Estado) e pelos impostos dos cuentapropistas, o projeto destinou 60% dos recursos de 530 milhões de dólares a melhorar a qualidade de vida dos moradores – as obras ficaram com os outros 40%. Uma inversão de prioridades em comparação aos projetos desenvolvidos no Brasil, por exemplo, que mereceu destaque na Conferência de Assentamentos Humanos da ONU, realizada em Dubai, em 2006. Até 2004, o projeto, ainda em andamento, havia recuperado 33% do centro histórico, incluindo 3.300 habitações onde vivem 13.200 pessoas.

Por isso as ruazinhas estreitas que desembocam no Porto de Habana Vieja continuam atravancadas pelos banquinhos e cadeiras dos moradores nas calçadas – os mais velhos passam o dia todo ali, de charuto e jornal na mão. São quase todo negros, a maioria “mulatos”, como dizem os cubanos com naturalidade.

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Cubano fotografado em um cabaré de El Vedado. Foto: Veruscka Girio

 

Um país cada vez mais negro

A população mestiça e negra cresceu com a Revolução. Em 1953, eles representavam 27% do total; em 2010 passavam de 60%. E as taxas de crescimento demográfico caíram desde os anos 1980 – são negativas atualmente. Com alto índice de escolarização e profissionalização das mulheres, ampla difusão dos métodos anticoncepcionais e aborto legalizado desde 1968, Cuba tem uma das menores taxas de natalidade da América Latina. Além disso, as migrações tiraram do país mais de 1 milhão de cubanos (dados de 2010) desde a Revolução. As primeiras levas majoritariamente de brancos ricos – os mais pobres (e não-brancos) migraram depois, principalmente quando a situação a econômica do país se deteriorou no período especial.

Entre 1959 e 1965, mais de 300 mil pessoas deixaram o país, a maioria pertencente à elite, que além de latifúndios, mansões e apartamentos à beira-mar – abandonados ou confiscados -, perdeu os clubes e praias exclusivos, em que os negros não eram sequer admitidos. O primeiro a fugir foi o ditador Fulgencio Batista, que escapou por uma porta lateral do palácio do governo quando as tropas dos revolucionários se aproximavam de Havana, na virada de 1958 para 1959.

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A ATT presenteou o ditador Batista com um telefone de ouro; depois que a empresa foi nacionalizada pela revolução, descobriu-se que o “ouro” era pura tinta. Foto: Veruscka Girio

Até as casas de veraneio dos mafiosos americanos em Miramar foram nacionalizadas, abrindo espaço para que inquilinos se convertessem em proprietários pelos decretos da Revolução. Hoje, 85% dos cubanos têm imóveis próprios e os outros 15% pagam aluguel ao Estado, que não pode ultrapassar o valor correspondente a 10% de seus salários. Muitos, porém, vivem em imóveis superlotados ou precários. Além de faltar investimento para o governo fazer novas construções, 43% dos prédios do país teriam que ser reformados de acordo com um relatório entregue pelo governo cubano a ONU em 2005. Em Havana, onde a beleza dos prédios coloniais convive com a maresia, o sol implacável, as chuvas torrenciais e os terríveis ciclones, o déficit habitacional correspondia em 2005 a 40% do déficit nacional, estimado em 500 mil moradias pelo governo. Ou seja, faltavam 200 mil moradias na capital de 2,1 milhão de habitantes segundo o relatório de dez anos atrás.

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Um dos solares de Habana Vieja que abriga famílias de forma precária. Foto: Veruscka Girio

 

Gladys, a novela e o lixão

Moradora de um apartamento em frente, Gladys toma conta da casa de Maura quando ela tem que sair. Havana é a cidade dos vizinhos, da ajuda mútua, das trocas e pequenas negociações que ajudam o cubano a ter mais do que o estritamente necessário: arroz, feijão, óleo, sal, açúcar, café, uma libra de frango, uma libra de porco (cerdo), fósforos, sabão e, de vez em quando um pescado – eles preferem carne de porco e boi aos peixes e frutos do mar, vendidos aos turistas. Os que tem idosos ou crianças em casa recebem leite e picadillo (carne de boi).

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Foto: Veruscka Girio

 

Esse é hoje o conteúdo da libreta que desde 1962 garante aos cidadãos cubanos o direito a produtos básicos com preços subsidiados, quase simbólicos. O restante fica por conta de um salário médio de 471 pesos (20 dólares), de acordo com o Banco Central de Cuba, um pouco mais para os que têm nível superior (25 dólares). O suficiente para comprar hortaliças (tomate, alho, milho, verduras e algumas raízes, como a malanga, o nosso inhame, e a batata-doce, são as mais comuns), ovos e algumas frutas, usar o transporte público (40 centavos de peso, ou 2 centavos de dólar) e desfrutar de algumas diversões: ir ao cinema (2 pesos cubanos ou 10 centavos de dólar), comer uma pizza com a família (10 pesos), tomar um sorvete (1 a 10 pesos nacionais), e passar o domingo em algumas das praias próximas de Havana – são sete, todas acessíveis por ônibus comuns e com as areias brancas e as águas cristalinas do Caribe.

Não parece tão pouco com a educação inteiramente gratuita em todos os níveis do ensino (livros, material escolar e, para os mais jovens, uniformes, também são gratuitos), atendimento integral de saúde (psicólogos e dentistas incluídos) e moradia, luz e gás quase gratuitos.

Mas a situação piora para os aposentados como Gladys, uma física miudinha de seus 60 e poucos anos, que ganha 324 pesos cubanos por mês, pouco mais de 15 dólares. A previdência permanece um desafio em um país com uma expectativa de vida de 79,3 anos, a maior da América Latina, empatada com o Chile (PNUD de 2012), e quase 5 anos a mais do que no Brasil. Os maiores de 60 anos já representam 18,3% da população; serão 30% em 2030 segundo as projeções atuais.

Gladys, física aposentada moradora de Havana Vieja. Foto: Veruscka Girio
Gladys, física aposentada moradora de Havana Vieja. Foto: Veruscka Girio

Gladys veio da porção oriental da ilha – ela é de Santiago de Cuba, a segunda maior cidade do país, próxima de Guantánamo, onde fica a base militar até hoje ocupada pelos americanos. Entre os cerca de 700 mil moradores de Havana não originários da capital, mais da metade é proveniente do Oriente e ocupa moradias precárias. O prédio da esquina, por exemplo, onde sempre se via alguém fumando nas sacadas periclitantes, é um solar, (cortiço), em que as famílias vivem em cômodos apertados e os banheiros são compartilhados, explica a física aposentada, reclamando do “conformismo do povo”: “Ves a alguien aquí que parece triste? Esto hace que sea más fácil para el gobierno!

A física aposentada tem saudade da juventude e da fartura vivida nos anos 1970 e 1980 quando os “rusos” mandavam de tudo, até “la leche condensada”. Consola-se vendo as novelas brasileiras na TV (são quatro canais estatais, mais a Telesur) – um hit em Cuba desde os anos 1980. Atualmente estão na grade Paraíso Tropical – com Camila Pitanga como a prostituta “do bem” arrasando corações cubanos – e Chocolate com Pimenta, muy tonta, na definição de Gladys. Ela preferia a novela anterior, Avenida Brasil, e sua inesquecível vilã, Carminha (Adriana Esteves), ambientada em um lixão no Rio de Janeiro.

Es cierto que en su país tienen los niños que viven de recoger las cosas en la basura como en la novela Avenida Brasil?”, quis logo saber, desconfiada da ficção. Sim, é verdade que temos crianças que vivem de catar coisas no lixo, fui obrigada a responder.

Ela me olhou com pena. Apesar da pobreza que transpira nas reportagens sobre a ilha, Cuba continua a honrar a famosa frase estampada em um outdoor próximo ao aeroporto José Marti: “200 millones de niños dormen hoy en las calles del mundo. Ninguno de ellos es cubano”. A taxa de pobreza da ilha – 4% – também é muito menor que a média da América Latina: 35%.

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Crianças fotografadas durante a realização de atividades esportivas nas ruas de Havana. Foto: Veruscka Girio

 

Los logros de la Revolución

Em um artigo em que compara o desempenho socioeconômico dos países do ex-bloco soviético (Comecon), a pesquisadora Emily Morris da University College of London observa que Cuba foi o país que mais sofreu com o fim do Comecon e no entanto seus indicadores sociais continuaram a melhorar mais rapidamente do que os de outros países do bloco, que receberam farta ajuda internacional. A mortalidade infantil, que era de 11 por mil em 1990 tinha caído para 6 por mil em 2000 – hoje é de menos de 5 por mil, melhor do que os Estados Unidos segundo a ONU e muito melhor do que a média da América Latina – o Brasil baixou de 53,7 por mil nascidos vivos em 1990 para 15,7 por mil em 2014.

E os cubanos defendem com unhas e dentes as suas conquistas sociais – a que se referem nas conversas como “los logros” (de la Revolución).

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Grupo de crianças do Secundário (6º ao 9º ano) voltando para casa pelas ruas da capital cubana. Foto: Veruscka Girio

 

Principalmente a educação, reconhecida como uma das melhores do mundo pelo Banco Mundial, e a saúde, o xodó do país, não apenas por sua qualidade mas pela amplitude de cobertura – a medicina preventiva é a base, através do sistema de atendimento familiar. Há 67,2 médicos para cada 10 mil habitantes no país, a melhor média do mundo segundo a OMS, mesmo com a “exportação” de 31 mil médicos para 69 países, segundo o Ministério de Saúde de Cuba.

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Maura, nossa anfitriã, a engenheira que virou dona de pousada. Foto: Veruscka Girio

Em uma de minhas conversas com Maura sobre as possibilidades econômicas da ilha – sua preocupação maior era de que Cuba se tornasse “um país de terceiro mundo como outro qualquer” – mencionei a exportação dos serviços médicos que renderam ao país 8,2 bilhões de dólares em 2013 – com o retorno parcial dos salários recebidos por eles no exterior para o governo cubano. Para minha surpresa, ela se ofendeu.

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“Não é pelo dinheiro, os médicos cubanos aprendem desde a faculdade que sua missão é salvar vidas”, rebateu enfaticamente. “Em qualquer catástrofe, nossos médicos estão lá para ajudar, na África, no Paquistão, na Guatemala, no Haiti – até para os Estados Unidos oferecemos ajuda quando teve o furacão Katrina” (os EUA não aceitaram). Também foram os cubanos “os primeiros a se oferecer”, segundo ela, para trabalhar no atual combate à epidemia de Ebola na África. “Os médicos quiseram ir”, destaca (de fato 15 mil voluntários se apresentaram para 250 vagas).

E são os cubanos os voluntários mais úteis, de acordo com a OMS, porque conhecem a realidade africana (já havia 4 mil médicos da ilha em missões na África antes da epidemia) e estão acostumados com as missões humanitárias internacionais: desde 1963, Cuba mandou mais de 132 mil médicos para 102 países, muitas vezes, cobrindo os custos.

Para Maura, o pagamento dos serviços através de convênios com países como o Brasil e a Venezuela ajuda a desenvolver a ciência e manter o  investimento do país na formação dos médicos, inclusive de outros países – metade dos 11 mil estudantes formados em 2012 em 24 faculdades gratuitas de medicina eram estrangeiros – cerca de 70% deles da América Latina. Desde 1998, a Escola de Medicina Latino-americana (Elam) recebe exclusivamente estudantes dos países vizinhos. Os médicos também têm um tratamento especial em Cuba, como salários mais altos (até 1.000 pesos, cerca de 40 dólares) e acesso à internet em casa.

Voltei a discutir o assunto com Cristina, integrante do Partido Comunista de Cuba (PCC) e vizinha de Mariana, uma “amiga de amigas” que se converteu em minha principal guia à realidade cubana. “A solidariedade é a base da nossa cultura, o sentido da revolução, mas a generosidade de Fidel diante dos recursos financeiros de Cuba pode ser vista como excessiva”, disse Cristina, uma negra bonita de 64 anos de idade, que cresceu com a Revolução. “Fidel é um idealista, um humanista, e nossos ideais estão muito vivos, mas ele mesmo sabe que precisamos também ser práticos, como Raul está sendo. Temos que mudar o que é necessário para o país crescer sem deixar de ser quem somos, o povo que coloca o ser humano como prioridade, essa é a tarefa dos revolucionários hoje”, disse.

Das hortas coletivas ao sofá de Havana

Pelas leis da revolução, os que tinham imóveis urbanos para moradia dos familiares ou terras produtivas até o limite de 1.300 hectares puderam conservar seus bens – a partir daí eram expropriados pelo Estado. E o governo cubano vem ampliando o direito à propriedade – primeiro permitindo a permuta de imóveis (Maura trocou a propriedade da família mais longe do centro pelo apartamento em Habana Vieja, por exemplo), e agora a compra e venda de imóveis. O Estado também transferiu boa parte de suas terras para pequenos agricultores, permitindo a venda do excedente da produção pelas cooperativas por preços livres (em pesos nacionais), depois de uma longa crise de desabastecimento.

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Uma refeição típica cubana: feijão preto, arroz, costela de boi com molho, bisteca de porco, malanga (inhame) e salada. Foto: Veruscka Girio

 

Há pontos de venda em todas as cuadras nos terrenos em que ficam as hortas coletivas dos moradores locais, que também funcionam como lugar de encontro para a programação esportiva e cultural oferecida para as crianças nos fins de semana – anunciada pela música a toda altura que nos acordava nos domingos. Maura fazia compras em um desses pontos, que estão longe da exuberância das feiras brasileiras mas fornecem verduras, legumes, raízes e frutas – essas são consideradas caras (um abacate, por exemplo, usado em saladas e como sobremesa, custa 17 pesos nacionais, quase 2 reais), mas em nossa mesa do café da manhã não faltava abacaxi, manga, goiaba, banana e papaia. Mesmo na casa de Mariana, que fica em Alamar, fora da cidade de Havana, havia frutas e verduras para as crianças (ela tem dois meninos, de 7 e 11 anos), que ela adquiria com o salário de 600 pesos nacionais.

A socióloga Mariana, cidadã cubana, filha de brasileiro e mexicana. Foto: Veruscka Girio
A socióloga Mariana, cidadã cubana, filha de brasileiro e mexicana. Foto: Veruscka Girio

Mariana, uma cubana de origem brasileira (o pai se exilou em Cuba durante a ditadura) e mexicana (a mãe ainda mora no México), está procurando um apartamento mais perto do trabalho – ela mora na zona leste, na estrada para as praias, e trabalha na outra ponta, na zona oeste. Por isso, ela ficou feliz da vida quando contamos que havia uma “feirinha de imóveis” funcionando nos fins de semana no Paseo de Martí, que todos chamam pelo nome original, Paseo del Prado. É um lindo e sombreado boulevard, alguns degraus acima das pistas laterais de asfalto, com 12 quarteirões de extensão e acabamento de mármore e ferro fundido. Tem bancos para sentar, tomar um sorvete, espaço livre para as bicicletas das crianças e para os skates dos jovens, exposição de quadros, artesanato, aulas de salsa e agora esse espaço de negociação de imóveis –  uma exposição de cartelinhas com fotos xerocadas e dados como endereço, número de quartos, valor.

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O Paseo del Prado fica em uma das vias mais movimentadas da capital, mas os pedestres têm todo o espaço do mundo. Foto: Veruscka Girio
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Cubanos e turistas se misturam nas caminhadas no Malecón no fim da tarde. Foto: Veruscka Girio

O Paseo divide Habana Vieja de Centro Habana, o antigo e superpovoado centro comercial, e alcança o mar na altura da Fortaleza de San Salvador de La Punta. É nesse ponto que acaba a zona portuária da Baía de Havana (Habana Vieja) e nasce o Malécon, voltado para o Estreito da Flórida. Com 8 quilômetros de extensão, a murada colonial vai de Centro Habana ao El Vedado – o bairro residencial que também é centro cultural, hoteleiro e da vida noturna da capital cubana. O Hotel Nacional, por exemplo, conhecido pelas celebridades que ali se hospedaram e por ser a sede do Buena Vista Social Club, fica bem na frente do Malecón, na altura de La Rampa – o ponto boêmio de El Vedado, com cabarés (casas noturnas tradicionais) e danceterias com música eletrônica.

O Malecón é o ponto de encontro dos habaneros, movimentado dia e noite por grupos de amigos, casais de namorados, pescadores, solitários, famílias e turistas. No horário do pôr-do-sol, quando o horizonte e o mar azul se tingem de dourado, as silhuetas de homens e mulheres se multiplicam e o som de vozes e risos se faz ouvir no intervalo das ondas. Ali se pode sentar na murada com as pernas penduradas sobre o mar que bate nas escarpas, talvez bebericando uma dose de rum. Como aprendi com meus companheiros de pôr-do-sol, “el Malecón es el gran sofá de la Habana”.

La moneda mais fuerte del mundo

O circuito Habana Vieja – El Vedado é o mais frequentado pelos turistas e por isso o favorito da malandragem habanera, ávida por CUCs. São os lúmpens como dizia Fidel; os “malas”, dizíamos nós, familiarizadas que estamos com a abordagem em cidades turísticas como o Rio ou Salvador. A vantagem é que dificilmente alguém vai apontar uma arma e assaltar um turista – no máximo furtam uma carteira se você der moleza. Uma liberdade maravilhosa para duas moradoras de São Paulo, da qual usufruímos quase que diariamente até a madrugada, sempre protegidas pelos cubanos, a maioria deles preocupados em amparar os turistas. Uma cena singela em uma das confusas filas de Havana – elas não seguem a nossa lógica, as pessoas perguntam “quem é o último” e se espalham pelos arredores até chegar sua vez – presenteou-me com uma demonstração desse apoio. Depois de quase uma hora tentando entender meu lugar em um dos três amontoados de gente que se formavam diante da Telefônica (para comprar tarjetas para Internet), meus companheiros de espera exigiram do funcionário que controlava a porta que me deixasse entrar. “Querem que eu a deixe passar?”, ele perguntou para confirmar. Um “sí” em uníssono encheu de gratidão meu coração de viajante.

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Fachada de prédio com fotos que orientam sua restauração em Cayo Hueso. Foto: Veruscka Girio

 

Mas também não faltam artimanhas, movidas à lábia e à criatividade. Há pessoas que puxam conversa nas ruas para depois pedir dinheiro ou oferecer rum e charutos de “cooperativas”, falsificados ou afanados das fábricas estatais. Um dos golpes mais comuns é o praticado por “casais”, que tentam conduzir o turista a determinados bares e restaurantes sob o pretexto de um inexistente festival de salsa ou mambo para fazê-los consumir e pagar os drinques de todos. Conhecemos dois “irmãos” (eles se apresentaram assim), Mayra e Luís, que faziam a vida levando os turistas para dançar salsa e se embebedar enquanto eles tomavam falsos Mojitos (feitos de água em lugar do rum) pagos por seus acompanhantes como se fossem reais. O lucro era dividido com a dona do bar.

Também encontramos aqueles que queriam apenas filar uma cerveja em troca de uma boa conversa – até os malandros discutem política, economia e relações internacionais com categoria em Cuba. E sabem que os turistas que compram boinas de Che Guevara e se hospedam nos hotéis chiques de Varadero anseiam por ver uma libreta, saber o valor de seus salários, ouvir o que pensam do governo e da vida em seu país.

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A cédula de cima – 20 pesos nacionais – vale 25 vezes menos do que a de baixo, em pesos conversíveis (CUCs). Foto: Veruscka Girio

 

A justificativa para garimpar nas ruas é de que os salários são baixos e pagos em pesos nacionais enquanto as tiendas (lojas) são caras e vendem em CUCs. Mas além dos alimentos in natura, do transporte (com exceção dos táxis), dos pequenos cafés, pizzarias, sorveterias, paladares (restaurantes caseiros), cinemas e livrarias pagos em pesos cubanos, os assalariados dispõem de centros comerciais nos locais de trabalho para comprar produtos de higiene pessoal (as farmácias só vendem remédios e ervas medicinais), alimentos industrializados, material de limpeza e outras coisas do gênero a pesos cubanos. Não há muita variedade, como me explicou Mariana, que trabalha em uma empresa estatal de energia, mas as vitrines das tiendas que só vendem em CUCs na Calle Obispo ou no Vedado também parecem vazias aos nossos olhos capitalistas. A escassez impera na ilha isolada: consertar, reciclar, trocar e emprestar são verbos conjugados diariamente pela população.

E os produtos não-básicos são mesmo caros para os padrões cubanos, só acessíveis aos que ganham em CUCs no turismo e, principalmente, aos que recebem dólares dos parentes imigrantes – as remessas internacionais são a maior fonte de ingresso de recursos estrangeiros em Cuba, e vão aumentar de acordo com as medidas anunciadas depois do reatamento com os Estados Unidos. Ter um parente em Miami permite que uma família inteira viva sem trabalhar haciendo la fiesta todo el tiempo, como diziam nossos vizinhos, apontando a casa de uma dessas famílias.

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Leonardo brinca com cliente no bar Gitana, em frente ao Memorial Granma. Foto: Veruscka Girio

Os salários e gorjetas em CUCs também explicam por que há tantos garçons e músicos com curso superior nos bares, restaurantes e casas noturnas de Cuba. Leonardo, por exemplo, o garçom do bar “La Gitana”, que fica entre o Memorial Granma e o Museo Nacional, é formado em Comunicação Social. Deu uma aula sobre Victor Manuel, pintor precursor do modernismo em Cuba, quando perguntamos sobre o painel com a reprodução de sua obra-prima, La Gitana Tropical, que fica na entrada do bar, batizado em sua homenagem. Ou como o sociólogo Rafael, que trocou o salário de professor em Guantánamo por gorjetas na capital. Ele toca em um conjunto musical nas casas de La Rampa e sabe tudo sobre música e sobre o Brasil – da bossa nova à reeleição de Dilma.

Os cubanos são curiosos – a maioria queria saber sobre a vida e a política brasileiras e se divertia ao saber que a frase “Vai pra Cuba” virou o mote dos opositores do PT nas eleições. Ficavam surpresos quando eu contava que Dilma e Lula foram criticados pelo financiamento do BNDES ao porto de Mariel, a 30 quilômetros de Havana. “Mas se vamos pagar os custos e são os empresários brasileiros que estão lucrando com as obras, que querem mais?”, comentavam, irônicos. A picardia cubana não perdoa mesquinhez nem burrice.

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Rafael (de camisa rosa) e um amigo no cabaré Sofia, em La Rampa. Foto: Veruscka Girio

 

Em nossa segunda semana em Havana bebendo em CUCs – para os turistas é difícil encontrar bons lugares a pesos cubanos – já estávamos duras. Foi quando surgiu a brincadeira que repetíamos quando os músicos passavam o chapéu: “No tenemos más diñero, el CUC es la moneda más fuerte del mundo”. Eles perdoavam as moedinhas e o humor negro e davam risada com a gente.

Se os CUCs permitiram legalizar parte dos dólares que entravam na ilha por baixo do pano – o Estado taxa o câmbio e arrecada o lucro das tiendas onde os “novos-ricos” gastam o dinheiro que recebem dos parentes –, por outro lado criaram uma duplicidade monetária que exclui e confunde muita gente. Mesmo com a possível unificação das moedas, anunciada há tempos, vai ser difícil corrigir as distorções entre preços subsidiados e livres, salários pagos pelo Estado e dólares remetidos do exterior, como reconhece o governo.

Aliás, o primeiro a lamentar essa situação é Fidel Castro, que presidia o país no período especial, quando o CUC foi criado. Em uma entrevista publicada pelo jornalista Ignacio Ramonet no livro “Biografia a duas vozes: Fidel Castro”, ele diz: “Tivemos que aceitar as lojas em divisas, coisas que odiávamos porque sabíamos o que significava; aqueles que tinham possibilidades de receber divisas era por parte de muitos dos que tinham ido embora”. E vai mais fundo: “Quanto o povo de Cuba gasta com os dólares que enviam de lá? Porque esse é um dólar que a pessoa não ganha trabalhando aqui. São enviados de lá, por alguém que se foi daqui em perfeita saúde, que estudou gratuitamente desde que nasceu, que não está doente, são os cidadãos mais saudáveis que chegam aos Estados Unidos. E para subsidiar esse dólar que enviaram dos Estados Unidos, Cuba gasta, em média, uns 44 dólares”.

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Painel comemorativo da Revolução, no Museo de la Revolución, com Fidel à frente. Foto: Veruscka Girio

 

Operação Peter Pan

Como se vê, não vai ser fácil Raul Castro e Barack Obama resolverem essa parada. As crises migratórias entre os Estados Unidos e Cuba são antigas como a guerra suja, e às vezes se confundem, como na Operação Peter Pan, quando 14 mil crianças desacompanhadas migraram para os Estados Unidos entre 1960 e 1962 em viagens organizadas pela Igreja Católica com vistos obtidos pela CIA. Os padres convenciam os pais de   que o governo revolucionário planejava tirar-lhes as crianças para educá-las “ao modo comunista”, mentira reforçada por difusões de uma rádio clandestina montada pela CIA, a Radio Martí. Depois da ruptura diplomática em 1961, agravada pela Crise dos Mísseis do ano seguinte, muitas famílias foram separadas pela migração e quase metade dessas crianças foi adotada ou criada em casas de caridade como órfãs, tendo os pais vivos em Cuba. A trama só foi descoberta por inteiro em 1998 depois que uma dessas crianças, já crescida, entrou com um pedido pela lei de acesso à informação (FOIA) nos Estados Unidos.

O que explica a intensa comoção do país com o caso Elián, o garoto cubano que perdeu a mãe na travessia para Miami em 1999 e que o tio imigrante não queria devolver. A família em Cuba, com apoio do governo, conseguiu recuperar o menino que hoje culpa a Lei de Ajuste Cubano pela perda da mãe. Promulgada em 1966, a Lei de Ajuste passou a classificar os imigrantes cubanos ilegais que chegam aos Estados Unidos como “refugiados políticos” com direito à residência, enquanto os vistos para viajar regularmente são distribuídos a conta-gotas pelos americanos. O que é considerado um incentivo à imigração ilegal pelo governo cubano.

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Houve mais duas grandes crises migratórias: a de Mariel, em 1980, quando 100 mil pessoas saíram pelo porto autorizadas pelo governo; e a “crise dos balseiros”, em 1994, quando a mesma Rádio Martí difundiu o boato de que no dia 5 de agosto daquele ano barcos viriam da Flórida à Baía de Havana buscar os que queriam imigrar. No tumulto que se seguiu à decepção provocada pela falsa notícia, 30 mil pessoas deixaram a ilha em embarcações roubadas ou improvisadas e as imagens das balsas frágeis lutando com o oceano “pela liberdade” nos Estados Unidos ganharam o mundo.

Recentemente, o governo cubano reduziu os custos para os que viajam legalmente a Miami e aumentou de um para dois anos o tempo que os cubanos podem ficar fora do país sem perder o direito de residência. E tem cada vez mais gente voltando para casa depois de juntar algum dinheiro nos Estados Unidos (como fazem os imigrantes de todas as nacionalidades), incluindo aqueles que trazem suas economias para investir em pontos comerciais em Cuba.

É o que me conta Júlio, 27 anos, que pretende fazer como alguns de seus amigos que estão em Miami: ir para os Estados Unidos, ganhar algum dinheiro por lá e voltar para abrir seu próprio negócio. “Em Cuba temos condição de estudar e nossa formação é valorizada lá fora enquanto aqui ganhamos essa miséria”, explicou. “Mas não sei se conseguiria viver muito tempo longe daqui”, diz.

Mais do que a escassez de produtos e os baixos salários, a principal queixa que ouvi dos jovens é a falta da internet, uma contradição que salta aos olhos em um país que valoriza o conhecimento acima de tudo. Os blogueiros dissidentes da turma de Yaoni Sanchéz – obviamente mais conhecida aqui do que lá (até porque apenas 27% dos cubanos acessam a internet) – dizem que o governo limita propositalmente o acesso à rede, como forma de censura, enquanto os jornais oficiais destacam as dificuldades para investir em uma rede de fibra ótica em um país carente de infraestrutura em que os serviços são públicos e subsidiados. A liberação da entrada de empresas de telecomunicação americanas, divulgada como parte do acordo entre Obama e Castro, vai mudar essa situação.

Cha-Cha-Cha proibidão

Há muitas portinhas, porões e moradias improvisadas em Centro Habana, um dos bairros mais populosos e decadentes de Havana, onde moram 140 mil pessoas. Era ali que ficavam os cambistas do mercado negro e outros viradores mas não chegamos a penetrar no submundo movido a maconha e rum caseiro descrito em vivas cores pelo seu mais famoso morador, o escritor Pedro Juan Gutiérrez, nos livros ambientados no período especial. Não sentimos nem o cheiro da erva, talvez por causa das severas penas existentes no país para o tráfico e uso de drogas.

Todas as vitrines parecem vazias aos nossos olhos capitalistas – das tiendas aos bares. Foto: Veruscka Girio
Todas as vitrines parecem vazias aos nossos olhos capitalistas – das tiendas aos bares. Foto: Veruscka Girio

Também não se vendem os livros do premiado autor de Trilogia Suja de Havana – publicados no Brasil desde o final da década de 1990 – nem de outros autores “malditos” e internacionalmente famosos como o poeta, dramaturgo e escritor Reinaldo Arenas, que se matou em Nova York em 1990, depois da perseguição sofrida em seu país por ser homossexual – um de seus livros se tornou o filme “Antes que anoiteça”, estrelado por Javier Bardem. Quando insistimos em saber por que não havia nada de Pedro Juan nem de Arenas na livraria mais famosa de Havana, La Moderna Poesia, a vendedora respondeu dentro da linha oficial: as editoras – todas estatais – tem que “escolher entre uma fila de bons autores que esperavam para ter seus livros impressos”.

Ex-militante da Revolução, Arenas denunciou em seus livros a existência de “campos de concentração” para gays, as chamadas “Unidades Militares de Ajuda à Produção” que nos anos 1960 destinavam ao trabalho rural compulsório os gays, religiosos, hippies, excluídos das Forças Armadas Revolucionárias. “Sim, havia um grande preconceito contra os homossexuais”, Fidel reconheceu na entrevista a Ramonet.

Mas para as lésbicas e gays cubanos o preconceito continua de pé, apesar da militância pelos direitos homossexuais de Mariela Castro, a filha de Raúl, que obteve progressos como a criação de um dia contra a homofobia em 2007 (17 de maio) e a cirurgia para mudança de sexo na rede pública de saúde.

Ainda hoje não se vê grupos nem pessoas que se identifiquem abertamente como gays nem mesmo nas casas noturnas – as festas são escondidas e realizadas em locais privados. No terraço do Hotel Inglaterra, em frente ao Parque Central, onde funciona o bar Louvre e se oferecem diversões proibidas aos turistas, notamos uma ou outra travesti. Não pareciam bem aceitas pelas garotas de programa, essas bem evidentes em todo o circuito turístico, apesar da criminalização da prostituição. As lindas, esguias e jovens negras “que parecem modelos”, como descrevia Pedro Juan, quase sempre estão acompanhadas de gringos bem mais velhos. Também vimos homens igualmente jovens e belos acompanhando gringas remoçadas pelos ares tropicais.

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Músicos tocam em casa noturna de Havana. Foto: Veruscka Girio

Presenciamos uma cena marcante em La Rampa, a zona boêmia de El Vedado, que se enche de gente desde cedo na noite de sexta-feira para curtir os conjuntos musicais – de ótima qualidade aliás, reunindo instrumentos tradicionais cubanos a contrabaixos, flautas transversais, sax de vara, trompetes. Havia dois casais, cada qual em uma mesa: um rapaz negro alto e muito bonito que tratava com extrema gentileza sua acompanhante, uma mulher mais velha branca; e uma linda e jovem negra de cabelos loiros como Beyoncé que paparicava um gringo barrigudo e careca. De repente, sem nenhum aviso, os jovens negros se levantaram de suas respectivas mesas e deram um show de graça e sensualidade dançando uma salsa juntos. Sob aplausos dos frequentadores do bar, a moça se dirigiu à mulher que acompanhava seu par para cumprimentá-la, como quem pede desculpas, e depois passou a noite toda tentando consolar seu emburrado gringo.

Seremos como El Che

A altivez e a espontaneidade do povo cubano não se encaixam na imagem de povo oprimido, forjada pelos meios de comunicação capitalistas. Os americanos não têm ninguém para “libertar” a não ser de seu próprio jugo. A principal razão para a prisão dos dissidentes políticos – que estão sendo soltos a partir do acordo entre Obama e Raúl – ainda é a obtenção de recursos dos Estados Unidos para fazer oposição segundo o governo, o que certamente não justifica nem mesmo explica todos os casos, mas já foi comprovada mais de uma vez pelos meios de comunicação internacionais.

Maura costumava me dizer que os cubanos estavam ocupados demais atrás de alguma coisa para misturar ao congrí (feijão com arroz) para influir na política. Afinal, o que não falta em Cuba são canais de representação, dos comitês dos bairros às federações de mulheres, estudantes, trabalhadores, centrais sindicais e comitês dos locais de trabalho. Conversei muito sobre esse assunto com Mariana, a socióloga mexicano-cubana que me ensinou o bê-a-bá da vida em Cuba, e com Cristina, a já citada vizinha, membro do PCC. “São tantas as instâncias e reuniões que acaba se discutindo coisas pequenas, burocráticas, não se fala do mais importante”, dizia Mariana. “As pessoas se sentem impotentes diante da situação econômica, não conseguem ver saída diante do bloqueio e isso desestimula a discussão política”, justificava Cristina.

Cristina e Mariana moram em um conjunto residencial em Alamar, uma cidade construída em mutirão por voluntários na década de 1970, que hoje parece quase triste, com prédios sem pintura marcados pelo mofo das infiltrações. A alegria fica por conta da campainha que toca sem parar no apartamento de Mariana – crianças chamando seus filhos para brincar, o vizinho pedindo o carro emprestado, uma família chamando para experimentar uma sobremesa que veio do interior.

E o seu apartamento é um brinco. “Com os cubanos aprendi a fazer milagres”, contou rindo, a socióloga formada na Universidade Autônoma do México que mora em Havana por opção – ela está separada do pai de seus filhos, cubano. Mariana trabalha em um projeto de fomento a energias alternativas desenvolvido entre as comunidades pela companhia estatal. “Não existe povo mais fácil de mobilizar; em alguns telefonemas para as entidades representativas da região está todo mundo avisado”, conta.

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A química Cristina, integrante do Partido Comunista de Cuba. Foto: Veruscka Girio

 

Uma prontidão que veio do combate revolucionário, desempenhou papel crucial na assistência aos mais vulneráveis durante o período especial, explica Cristina, que admite um certo desânimo na juventude. “Eu tinha 10 anos quando veio a Revolução trazendo um futuro para aquela menina de família analfabeta, que jamais imaginaria se formar em Química na universidade e conhecer o mundo em conferências científicas”, diz. Menos ainda que participaria da direção do seu país como membro do Partido Comunista de Cuba, concorda.

“Não podemos esquecer que a revolução foi feita por outra geração, eles nasceram com isso pronto, é natural que vejam mais as lacunas do que os acertos no que foi conquistado pelos ‘viejos‘”, rebateu Mariana, quase 30 anos mais nova do que Cristina.

Foram elas que me explicaram como funciona o sistema eleitoral cubano, complicado para nós. Ele começa com a eleição direta e secreta dos delegados municipais nas circunscrições eleitorais (Havana tem 200 circunscrições onde podem concorrer de 2 a 8 candidatos) em intervalos de dois anos e meio. São eles que elegem a Assembléia Nacional – na proporção de um delegado para cada 20 mil habitantes – que nomeia o Conselho dos Ministros e elege o presidente do Conselho do Estado – até hoje apenas Fidel e Raúl Castro ocuparam o cargo. O Partido Comunista de Cuba é a força dirigente superior.

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A bandeira de Cuba em frente ao Estreito da Florida. Foto: Veruscka Girio

“Cuba não é um país fácil de compreender mesmo para mim que moro aqui; nem para os meus amigos do México consigo explicar direito como vivo”, ela me diz, depois de nos despedirmos de Cristina. “Quando as pessoas visitam Cuba dizem que estranham a pobreza daqui mas o que é diferente mesmo é a falta de riqueza”, conta Mariana que viaja todos os anos para o México. “De lá, sinto falta mesmo é da Internet, acho péssimo assistir à TV mexicana, apelativa e cheia de anúncios”.

Conversamos pela última vez nos jardins da Universidade de Havana, em El Vedado, em um dia que ela estava de folga. Antes passamos pelo Cine Yara para comprar a Cartelera (jornal cultural) com a programação do Festival de Cinema Internacional de Havana, que ocupa todas as salas de cinema da capital cubana na primeira quinzena de dezembro. O reatamento das relações com os Estados Unidos ainda estava por vir, mas já havia anúncios de celular com acesso à internet (pago) na porta do cinema, o que entusiasmou Mariana. De brincadeira, pus-me a imaginar o que acontecerá quando os cubanos tiverem acesso fácil à internet. Sucumbirão ao consumo? Desistirão do socialismo?

Tenho cá para mim a esperança de que a solidariedade que está na base da sociedade cubana, como disse Cristina, e a educação que recebem desde pequenos pode fazer a diferença nas redes e influenciar a juventude bombardeada pela publicidade da mesma maneira que “a Revolução tocou meu coração”, como dizia a música de Caetano Veloso, quando a América Latina mergulhava na escuridão da ditadura.

A imagem de Ernesto Guevara, o médico revolucionário símbolo da solidariedade internacional, estampada nas camisetas de jovens de todo mundo até hoje, é o principal produto de exportação cultural de Cuba. E aconteça o que acontecer, no final desse ano escolar milhares de alunos do 5º ano farão o juramento que marca a passagem para o secundário nas escolas cubanas. “Pioneros del comunismo internacional!”, diz o mestre da cerimônia. “Seremos como El Che!”, respondem as crianças em coro.

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Mãe e filho com o uniforme escolar do 5º ano. Foto: Veruscka Girio

 

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