Um brasileiro está preso há quase dois anos na Índia por tentar viajar do país para o Nepal com um visto falsificado. Após diversas tentativas de recurso, seu caso foi recusado pela Suprema Corte indiana no dia 7 de novembro. Era o último dispositivo legal disponível, segundo sua irmã, Ana Farinello, de 41 anos. Ela está na Índia tentando provar que Dante foi vítima de um golpe e não teve direito a um julgamento justo, com documentos traduzidos para o seu idioma. Ana entrou com recurso três vezes, em três cortes diferentes, e teve negados todos os seus pedidos. A Justiça indiana agora afirma que, além do visto, o passaporte de Dante Farinello também era falso. No entanto, em documento oficial enviado a Ana, a embaixada brasileira na Índia nega a informação e assume a responsabilidade pela emissão do documento.
Dante Farinello Cardoso, de 43 anos, viajava pela Índia em 2014 quando seu visto de turista, válido por três meses, venceu. Para renovar o documento, ele contratou um despachante, que cobrou mil euros pelo serviço. Dante alega que só descobriu que o visto fornecido era falso no dia 11 de setembro do mesmo ano, quando foi detido com sua então namorada, Tainá Palheta, em Sunauli, na fronteira da Índia com o Nepal. O casal foi submetido a um curto interrogatório dos guardas fronteiriços e aguardou no local por 12 horas até a chegada da polícia, que levou Dante sem dar explicações. Tainá, que estava com o visto vencido havia um dia, precisou deixar o país sem o namorado.
Desde esse episódio, a vida do tatuador Dante e de sua irmã, Ana, mudou completamente. Dante passou por duas prisões na Índia, debilitado pelo agravamento da febre tifoide, doença que havia contraído pouco antes de ser preso. Ana se viu obrigada a vender sua casa, na Guarda do Embaú (SC), para arcar com os custos legais do processo do irmão e financiar as frequentes viagens à Índia para visitá-lo.
“A gente tenta um dar apoio ao outro. Eu sempre procuro não trazer problemas de fora pra ele e ele tenta não passar muito os problemas internos da cadeia pra mim, mas é difícil manter uma estabilidade emocional diante dessa situação”, contou Ana em entrevista à Pública por telefone.
Luta judicial
Para tentar tirar o irmão da cadeia, Ana recorreu à Justiça em quatro ocasiões, mas seu último recurso, na Suprema Corte, foi negado no dia 7. “O juiz rejeitou sem nenhuma justificativa, apenas uma sentença dizendo que a apelação foi negada. Por isso, decidi fazer uma queixa nos Direitos Humanos também, estão negando o princípio básico de defesa do Dante”, reclama Ana. Ela tem reuniões marcadas nesta semana com a organização Human Rights Law Network (HRLN) e com representantes da embaixada do Brasil em Nova Délhi, onde espera conseguir chamar mais atenção para o caso de seu irmão.
“O julgamento está todo errado. O processo inteiro foi feito em hindi. Meu irmão é brasileiro, eles são obrigados a traduzir o processo na língua da pessoa que está sendo acusada, para que a mesma possa entender as acusações e se defender corretamente”, aponta. “Não saber o que está acontecendo é a pior coisa. Eu pedi diversas vezes um tradutor, mesmo em inglês, se não tivesse pra nossa língua, e deram risada.”
O périplo de Ana na Justiça indiana começou ainda em 2014, quando ela contratou um advogado e entrou com recurso para questionar a decisão da corte local, que havia condenado Dante a cinco anos de reclusão. O caso foi levado para a Corte Distrital, um nível acima da local, onde o pedido de revisão foi recusado. Ana entrou com um novo recurso, em um tribunal superior. “O advogado foi claro comigo. Ele falou que eu poderia ficar tranquila, que a gente iria encerrar o caso na Corte Superior, que caso de visto não vai pra Suprema Corte. Eu estava aqui na Índia, eu assinei os documentos, eu trouxe os papéis. Aí o juiz recusou o caso, ou seja, manteve a mesma sentença. Eles não querem bater de frente com o Judiciário deles”, conta. “Eu fui na audiência e fiquei chocada. Meu advogado começou a falar e, em dez segundos, o juiz interrompeu, jogou a pasta dele pro lado e falou ‘next’. É uma corte sobrecarregada ao extremo”, revela.
Além de manter a condenação de cinco anos de prisão, a Corte Superior acrescentou uma alegação ao processo, a de que o passaporte brasileiro de Dante também seria falso. Segundo a acusação, a embaixada brasileira teria confirmado tal informação. No entanto, em julho deste ano, a representação do Brasil em Nova Délhi enviou ao advogado de Ana um documento no qual certifica a autenticidade do passaporte. “Me forneceram esse documento porque meu irmão de fato fez o passaporte na embaixada brasileira”, diz Ana. “Agora ficou muito fácil de provar que eles estão mentindo, porque eles ainda colocaram essa história do passaporte falso, que foi desmentida pela embaixada.”
Legalmente, Dante responde por quatro crimes previstos no Código Penal indiano, que lista as infrações em seções numeradas. Dois dos crimes, os de número 471 e 467, estão relacionados a falsificação de documento e a uso de documento falso como genuíno. No entanto, os crimes das seções 468 e 420, pelos quais Dante também é acusado, são relativos a fraudes e traições. “Colocaram várias acusações contra ele, todas referentes a falsificação de documento, mas tem umas supersérias, tem a ver com falsificar documento para poder pegar propriedade do governo, várias acusações que não se encaixam no caso dele porque o documento falso era apenas o visto”, relata Ana. “A gente não conseguiu tirar essas acusações. A embaixada também falou que íamos conseguir tirar essas acusações, mas não aconteceu.”
A reportagem procurou a embaixada do Brasil em Nova Délhi, que repassou a demanda ao Itamaraty. O órgão, responsável pela assistência consular a brasileiros no exterior, disse que “não está autorizado a divulgar dados específicos sobre o processo judicial ou sobre as circunstâncias que levaram o cidadão brasileiro a receber assistência consular”. Entretanto, afirma ter prestado assistência a Dante e a sua irmã Ana: “Diplomatas da embaixada do Brasil realizaram viagens para visitas consulares ao brasileiro em seis ocasiões”, afirma o Itamaraty. Questionado sobre a inércia da embaixada diante da alegação da Justiça indiana de que o passaporte de Dante também seria falso, o Itamaraty se limitou a destacar a “impossibilidade de que uma repartição consular venha a ser parte em processos judiciais envolvendo cidadãos brasileiros”.
Por telefone, a reportagem conversou com Ana na semana em que ela se preparava para o último recurso à Suprema Corte indiana. Ela viajava de Varanasi, onde seu irmão está preso atualmente, para Nova Délhi, onde ocorrem as audiências. Na segunda vez em que conseguimos contato com ela, Ana tinha acabado de receber a notícia de que o juiz havia rejeitado seu recurso na Suprema Corte, tecnicamente o último recurso legal.
Problemas financeiros
Abalada emocionalmente, Ana foi pega de surpresa por mais uma desventura poucos dias depois da audiência na Suprema Corte: o governo do país decidiu tirar de circulação boa parte das notas de rúpia. As cédulas de 500 e 1.000 rúpias, que correspondem a 80% da moeda em circulação, perderam a validade, como mostra matéria da Folha de S.Paulo. Longas filas se formaram nos bancos, já que milhares de indianos precisaram trocar suas cédulas. “A Índia está um verdadeiro caos, não tem dinheiro disponível para as pessoas, estão falando em greve geral, a situação está bem complicada”, explica Ana. A novidade também agravou a já delicada situação financeira de Ana na Índia: em meio aos processos e reuniões para discutir o caso do irmão, ela precisa ainda trocar as notas que possui para conseguir pagar suas despesas, já que a maior parte dos pagamentos no país ainda é feita em dinheiro vivo.
Ana diz já estar acostumada a enfrentar dificuldades em todas as visitas que fez à Índia desde que o irmão foi preso, em 2014. Inicialmente, Dante cumpriu pena na região de Maharajganj, em uma penitenciária próxima à fronteira onde foi detido. “Aquela cadeia era pequena, em um lugar esquecido por todos, completamente sem lei, muito violento. Os primeiros meses que ele ficou ali foram muito difíceis mesmo”, lembra Ana. “O lugar era de muito difícil acesso. Eu era a única estrangeira no lugar, só tinha homem na rua, e é um dos estados mais violentos do país.” Ela conta que só conseguiu falar pessoalmente com o irmão quando um diplomata brasileiro a acompanhou até a cadeia. A partir de então, Ana passou a visitá-lo semanalmente, levando mantimentos para que ele pudesse cozinhar sua comida em um fogareiro dentro da cela. “Ele fica doente quando come a comida da cadeia”, suspeita Ana. No entanto, o hábito despertou a ira de alguns presos. “Ele era o único que recebia visitas, começaram a falar que sabiam tudo sobre mim, ameaçavam ele lá dentro”, revela.
Dante havia contraído febre tifoide, uma doença bacteriana disseminada por meio de alimentos e água contaminados, pouco antes de ser detido na fronteira. “A doença piorou muito quando ele entrou. Ele descobriu antes de ser preso e, quando chegou, avisou que estava doente, mas não deram medicamentos, nada. Só depois que ele desmaiou na cela é que levaram ele para o hospital. Ele estava mais de 10 quilos mais magro”, conta Ana, que diz ainda que o irmão sofreu diversas vezes com infecções por estafilococos. “É muito fácil ficar doente, é muita gente junta em um lugar que não tem higiene.”
Depois do julgamento na Corte Superior, considerado definitivo, Dante foi transferido para um presídio central em Varanasi, que Ana julga menos precário. “Por ser uma cadeia central, a maioria dos presos que estão lá tem prisão perpétua e são presos mais velhos, mais tranquilos. Não tem tanta violência quanto na outra, fica em uma região muito mais turística. Também é mais controlada a questão da corrupção. Na outra cadeia, era dinheiro pra qualquer coisa”, avalia. Mas a situação continua difícil. “Ele dorme no chão, não tem cama, não tem colchão. É muito precário.”
“Mulher aqui é inferior até para falar com o advogado”
As dificuldades do processo judicial se somam àquelas próprias da sociedade indiana: “Ser mulher sozinha é muito difícil aqui. Mulher aqui é inferior até para falar com advogado”. O Judiciário também atua com dificuldade. “Quando eu fui na Suprema Corte, tinha um advogado defendendo um caso de 1978. Mesmo assim, eu fico sempre em cima, sempre pressionando, mas fico superpreocupada porque eles não têm uma data-limite. Já foram dois anos, ele já cumpriu a pena mínima de dois anos, entende? Ele poderia, sim, responder pelo resto da pena em liberdade”, diz. Sua última esperança é que a acusação do passaporte falso traga visibilidade ao caso de Dante. “É uma acusação muito séria envolver a embaixada brasileira contra um cidadão brasileiro. Eles precisam perceber que tem mais gente olhando.”