Por Andrés Bermúdez Liévano
Há pouco menos de um ano, María Concepción Pinzón se levanta todos os dias ao amanhecer para alimentar sua vaca leiteira e suas 70 galinhas poedeiras.
Não é uma nova rotina de vida – mas a retomada de seu cotidiano. Há 16 anos ela foi removida da área rural pela violência que abalou o Vale de Magdalena Medio, na região central da Colômbia.
Graças a um programa do recém-extinto Instituto Colombiano de Desenvolvimento Rural (Incoder), María Concepción obteve um lote de 2,5 hectares em uma aldeia de Cómbita, no departamento de Boyacá, e voltou a ser camponesa. Ela foi selecionada pelo programa por ter sido removida de suas terras, ser maior de idade e uma mulher chefe de família.
Os critérios utilizados pelo programa são muito semelhantes aos propostos pelo acordo de paz assinado entre governo e as Farc este ano que gerou tanta polêmica. Setores conservadores a favor do “Não” promoveram a ideia de que – ao priorizar as mulheres – a proposta estaria se baseando em ideologia de gênero. O ex-promotor Alejandro Ordóñez sustenta que esse conceito estaria “criptografado” no texto do acordo. Mas, se esse critério tivesse sido erradicado do acordo, como queriam alguns representantes de igrejas cristãs, milhares de camponesas como María Concepción teriam sido prejudicadas.
Mulher, camponesa e expulsa da terra
Vestida com um chapéu de palha, colete acolchoado e botas de borracha, María Concepción se senta em um banquinho e amarra com agilidade as patas traseiras de sua vaca. Seu nariz avermelhado e a cor de suas bochechas denunciam a exposição da pele ao áspero sol das montanhas de Cómbita, aquelas onde o célebre atleta colombiano Nairo Quintana se tornou ciclista.
“Nós que somos do campo não pertencemos à cidade. Ter que fazer essa mudança para seguir em frente é muito difícil. Para mim foram nove meses com um psicólogo, porque é muito difícil passar do verde para quatro paredes”, diz ela enquanto ordenha a vaca.
Os meses sob tratamento psicológico são parte das sequelas da guerra enfrentada pela aldeia de San Rafael, a duas horas de Rionegro, de onde ela veio de mãos vazias, em 2000, após vários encontros com a guerrilha e, em seguida, com os paramilitares. Nesse período, perdeu a loja – “este negócio já não é seu e você tem que ir” – e sua família passou por um recrutamento forçado e um episódio de violência sexual.
Ela foi para Tunja, onde começou a trabalhar como líder de famílias expulsas e acabou se tornando – quando nasceu a Lei de Vítimas, no primeiro governo de Juan Manuel Santos – a representante de todas as vítimas de Boyacá no primeiro Escritório Nacional de Vítimas.
Atuando na liderança, ficou sabendo de um projeto para as mulheres rurais promovido pelo recentemente extinto Incoder, que era responsável pelo acesso à terra até a criação da Agência Nacional de Terras.
Foi assim que quatro famílias se reuniram e encontraram uma fazenda que estava à venda. Todas elas camponesas, todos elas removidas de suas terras. Dona Carolina saiu de Chiscas, no sopé da serra Nevada del Cocuy; dona Elena, da região do Meta, e seu Ángel e sua esposa, da região de Magdalena Medio, em Boyacá.
María Concepción recebeu um lote com uma casa abandonada, que pouco a pouco foi colocando de pé. Com o subsídio para melhorias habitacionais, concedido pelo município de Cómbita, ela arrumou um dos quartos e o banheiro. Seu neto Jesús David, de 7 anos, e sua filha, María Salomé, dormem em um colchão no pátio interno, pelo menos até o final da reforma do piso de madeira podre do segundo quarto.
Todos cuidam dos animais que ocupam as três pastagens na montanha: 70 galinhas poedeiras, uma vaca que dá sete litros de leite por dia, um bezerro, cinco galinhas crioulas, quatro ovelhas e cinco coelhos. Eles cuidam também da cultura de batatas, que sofreu após o cruel verão do começo do ano, e de uma minúscula horta de espinafre, alface, repolho, acelga e cenoura.
“Eu não sabia nada de batata, apenas de milho, mandioca e inhame. Este é todo um processo. Precisamos aprender tudo”, diz María Concepción enquanto termina de cozinhar um almoço – frango crioulo, batata com molho, cenouras – que, para seu orgulho, é todo caseiro.
“Não podemos continuar a olhar para trás. É difícil, não estou dizendo que é fácil. Mas, sim, é possível.”
Oportunidades para as vítimas mulheres
Dar a milhares de camponesas como María Concepción a oportunidade de progredir é uma das razões da inclusão do tópico agrário, que coloca as mulheres no centro das políticas públicas para o campo, no acordo de paz.
Por exemplo, se cumprido esse ponto do acordo, elas iriam – junto com os removidos – para o início da fila dos camponeses sem terra aptos a receber terrenos do Fundo de Terra do pós-conflito. E, além de terra, devem receber apoio integral, que vai desde estradas terciárias e melhorias na educação até mais facilidade para consultar veterinários.
Além disso, elas seriam priorizadas na hora de formalizar as escrituras, um processo urgente para os milhares de agricultores que têm lotes, mas não seus títulos formais, necessários até mesmo para pedir empréstimos. Também seriam estimuladas a criar cooperativas agrícolas de mulheres, um plano nutricional especial para as mulheres grávidas e a formalização do trabalho em áreas como turismo e artesanato.
Mas por que diferenciar homens e mulheres na área rural?
Se você perguntar a María Concepción, ela responderá que “os mais atingidos foram as mulheres, que tomaram as rédeas da casa após a morte dos maridos ou filhos”.
De fato, todos os indicadores, pelo menos no campo, são mais alarmantes para as mulheres. Segundo dados da Missão Rural, as famílias rurais chefiadas por mulheres são 8% mais pobres, além de elas serem mais afetadas pelo desemprego e mais propensas a ter terra sem escritura.
“Isso vai muito além do acordo entre as Farc e o governo. O que ocorre é que o acordo reflete o espírito da lei das mulheres rurais e as políticas que já existem, mas que quase nunca se tornam realidade. O processo de paz eleva essas políticas a outro patamar”, diz Marina Gallego, líder nacional da Rota Pacífica da Mulher, que reúne mulheres vítimas em todo o país e que ganhou o Prêmio Nacional da Paz há dois anos. Na verdade, das 6 mil mulheres que compõem o grupo, 40% vivem em áreas rurais.
No fundo, a equação que o processo de paz com as Farc contempla é que, se os agricultores são cidadãos de segunda classe na Colômbia, as mulheres rurais estão, por muitas razões, um degrau abaixo.
“Dar oportunidades para as mulheres e eliminar a discriminação de gênero permitirá que as mulheres rurais possam explorar seu potencial produtivo, aumentar a renda rural e aproximar as crianças de suas mães”, diz a economista Ana María Ibáñez, uma das que mais estudam as condições das mulheres rurais.
Uma de suas pesquisas mostrou, por exemplo, que a renda média de uma camponesa é pouco mais da metade da de um homem, apesar de elas terem, em média, mais anos de educação.
A isso se somam os indicadores sociais relativos às mulheres, muito mais dramáticos no campo do que na cidade: a taxa de gravidez na adolescência é 10 pontos superior, e, como mostra outro estudo de Ana María, as oportunidades profissionais são tão escassas que as mulheres estão migrando para as cidades em ritmo muito mais acelerado do que os homens.
Ainda que María Concepción já tenha recebido seu lote em Cómbita, essas foram precisamente as demandas que ela fez ao governo e às Farc. Sua organização de deslocados, chamada Asopodescol, enviou duas propostas concretas para a mesa em Havana, onde foi negociado o acordo de paz: a primeira é que as vítimas sejam contempladas com a verdade e a segunda que as mulheres chefes de família sejam priorizadas no programa de terras e de geração de renda. Duas coisas que continuaram no acordo.
Isso significa que mulheres como ela têm que receber sementes, aulas de como fazer adubo e plantar cercas vivas e assistência técnica de agrônomos como aquele que ensinou María Concepción a lutar contra a temida traça da batata guatemalteca, que come as batatas por dentro.
“Isto é o que resolve a minha vida, não só economicamente, mas também psicologicamente e emocionalmente, porque é disso que eu sei viver”, ela diz, cuidando das galinhas enquanto o crepúsculo cai.
“Daqui só me tiram à força, porque não me vou. Só vou no dia que Deus falar para mim ‘Venha, María’.”
Reportagem originalmente publicada no site La Silla Vacia. Leia aqui o texto original em castelhano. Traduzido por Patrícia Figueiredo.