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Entrevista

CNDH levanta hipótese de vingança de policiais em massacre de Pau D’Arco

Para Darci Frigo, entrevistado pela Pública, mortes na Santa Lúcia podem ser retaliação à morte de segurança; é a segunda maior chacina do campo brasileiro nos últimos vinte anos

Entrevista
26 de maio de 2017
09:26
Este artigo tem mais de 7 ano

O presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), Darci Frigo, contestou a versão apresentada pela Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (Segup) do Pará sobre a morte de dez posseiros na fazenda Santa Lúcia, em de Pau D’Arco (PA), na última quarta-feira (24). “A pergunta que a gente se faz é se não foi uma ação de vingança tendo em vista a morte do segurança da fazenda há poucos dias no local”, disse Frigo em entrevista à Pública nesta quinta-feira.

Ele se refere à morte do segurança Marcos Batista Montenegro, baleado no último dia 30 de abril quando patrulhava a fazenda ocupada. Os tiros teriam sido disparados pelos posseiros. No dia da chacina, os policiais civis e militares, liderados pela Delegacia de Conflitos Agrários (Deca) de Redenção, foram à ocupação para cumprir 16 mandados de prisão e de busca e apreensão relacionados ao assassinato do segurança. Segundo a Segup, eles teriam sido recebidos a tiros pelos posseiros. Dos dez mortos, sete eram da mesma família: o casal Jane Julia de Oliveira e Antonio Pereira Milhomem, seus três filhos e dois sobrinhos.

Familiares de nove vítimas prestaram depoimentos ao Ministério Público do Estado do Pará até a noite de ontem. Sobreviventes do massacre também estão sendo ouvidos. Relatos ouvidos por Frigo dão conta de que cerca de 150 pessoas estavam no local no momento do crime. Um deles relatou ao MP que a polícia chegou à ocupação abrindo fogo. A Polícia Civil apresentou dez armas supostamente apreendidas com os posseiros. O CNDH também deve continuar a oitiva de testemunhas nos próximos dias.

Darci Frigo, presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos (Foto: Terra de Direitos)

Um velório coletivo foi feito nesta madrugada no município de Redenção. Segundo relatos, os corpos chegaram do Instituto Médico Legal (IML) em estágio avançado de putrefação, o que revoltou as famílias. Para Frigo, houve destruição da cena do crime, obstrução das investigações e há risco de coação das testemunhas. O CNDH e a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) pediram o afastamento dos policiais envolvidos nos crimes.

Os recentes episódios de violência no campo brasileiro – como a chacina de Colniza, no Mato Grosso e o ataque aos índios Gamela, no Maranhão – levaram o CNDH a criar, na última terça-feira, véspera da chacina, as missões urgentes: forças-tarefas que podem se deslocar rapidamente aos locais dos crimes e vistoriar os trabalhos de investigação. No dia seguinte, o Conselho foi surpreendido pelos assassinatos em Pau D’Arco. “Nós não imaginávamos que no dia seguinte haveria um crime tão bárbaro como esse”, diz Frigo.  “É a segunda maior chacina no campo brasileiro nos últimos vinte anos”, relata o presidente do CNDH.

De 2007 para cá, os assassinatos motivados por disputas de terras mais que dobraram, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Eles vêm crescendo continuamente desde 2013, com alta nos últimos anos: em 2016, 58 assassinatos foram registrados pela Pastoral – crescimento de 23% em relação aos casos registrados em 2015. Neste ano, já foram contabilizados 36 assassinatos por conflitos agrários, segundo a CPT.

Como foi a visita à fazenda Santa Luzia?

Foi muito problemática a visita. A perícia [da Polícia Civil paraense] foi até o local, não quis que houvesse um acompanhamento de todo mundo [da delegação do Conselho], há vários locais de crime e até o momento não se sabe como aconteceu, o que aconteceu… O resultado a gente sabe, mas como isso aconteceu a gente não sabe. Imagine você entrar numa fazenda que não tem mais gado, o capim tá um, dois, três metros de altura, e você sair andando dentro desse mato. Grande parte desse acampamento está nessas áreas de mata fechada. Você só chega lá por uma estrada de chão e só encontra alguns lugares onde você pode circular até o local. A perícia foi em alguns lugares, só que a gente acha que eles só foram parcialmente até os lugares onde aconteceram as coisas. Então foi uma coisa muito ruim do ponto de vista do que se esperava em termos de ter elementos para recolher ou pelo menos [para] entender o que aconteceu lá no local. Isso revela um pouco o que tá acontecendo aqui. A Polícia Civil e [a Polícia] Militar montaram uma linha de investigação para simplesmente encerrar o inquérito como um auto de resistência. O Ministério Público abriu um procedimento investigatório criminal; são três promotores de justiça que estão trabalhando na investigação. Nós estamos aqui também com a Polícia Federal, e o Conselho Nacional está fazendo esse processo de articulação e fiscalização para que as instituições funcionem fazendo uma investigação isenta. Eu e a Deborah Duprat [titular da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão] viemos para acompanhar. Nós criamos esse grupo de ação urgente na terça-feira em Brasília em um evento do Ministério Público Federal com duzentas pessoas de todos os movimentos do campo. Nós criamos esse grupo como reflexo da chacina de Colniza e do ataque aos Gamela no Maranhão, mas nós não imaginávamos que no dia seguinte haveria um crime tão bárbaro como esse que aconteceu aqui em Pau D’Arco.

Inicialmente, houve a informação de que a polícia teria ido até lá cumprir uma reintegração de posse. Posteriormente, a Secretaria de Segurança Pública do Pará afirmou que os policiais teriam ido até lá cumprir mandados de prisão por conta do assassinato de um segurança da fazenda. O que de fato aconteceu?

Essa ação da Polícia Civil foi, sim, para cumprir mandados de prisão e busca e apreensão. Eram mais de dez mandados judiciais [16 ao todo]. O processo está em sigilo de justiça. Agora, indo ao local, é muito difícil você imaginar como a polícia poderia cumprir aqueles mandados judiciais às sete horas da manhã, num lugar onde quem teria a capacidade de se defender em um eventual confronto seriam os trabalhadores porque eles estão no meio do mato. Eles estariam em vantagem. E isso [a reação armada dos trabalhadores] não aconteceu, não há nenhum policial ferido. Então o que aconteceu lá é uma interrogação que o Conselho se faz até o momento. Como pode ter havido um confronto onde os trabalhadores atiraram nos policiais onde você só tem feridos e mortos de um lado? Se você considerar que havia um obstáculo para se cumprir os mandados, o que é apenas um procedimento para se investigar um assassinato, você vai ver que tem algo aí que não fecha como um todo. O resultado é que a Polícia pode ter ido além nos procedimentos para cumprir esses mandados. A pergunta que a gente se faz é se não foi uma ação de vingança tendo em vista a morte do segurança da fazenda há poucos dias no local [no último dia 30 de abril, o vigilante Marcos Batista Montenegro foi assassinado a tiros quando patrulhava a fazenda Santa Lúcia; a Justiça responsabilizou os posseiros pelo crime]. Como você vai explicar tanta violência, tantas mortes?

Foram apreendidas armas no local. A imprensa falou até em um fuzil apreendido. Segundo a polícia, essas teriam sido as armas com as quais os posseiros teriam reagido ao cumprimento dos mandados. Como o senhor vê essa acusação?

Nós não vimos as armas apreendidas. Curiosamente, nos disseram que eram dez armas, o que pode indicar que a polícia reuniu uma arma para cada vítima. Pelas fotos, são armas típicas de camponeses – espingardas velhas, danificadas, pelas fotos que a gente vê. Se eles tivessem armas de grosso calibre, como se falou, eles teriam uma vantagem diferencial muito grande porque eles estavam no meio do mato. Essa tese não se sustenta até o momento pelas informações que a gente recebeu. Tem uma informação que é muito grave: há sete pessoas de uma mesma família que foram assassinadas.

Isso indica a execução dessas pessoas por conta do conflito agrário?

O Conselho ainda não tem uma conclusão sobre o que realmente ocorreu. Nós estamos até agora tentando ouvir as testemunhas. Até hoje [quinta-feira, 25 de maio], ao meio-dia, não havia nenhuma informação de que outras pessoas haviam sobrevivido ou pudessem falar. Agora há pouco nós encontramos uma testemunha hospitalizada, baleada na nádega. Ela já fez a cirurgia, deu depoimento agora há pouco para o promotor. Ela falou que só lembra que ficou baleada no local da ocupação de um dia para outro até chegar uma pessoa no local procurando e aí ele foi atendido, foi levado até o hospital. Nós soubemos que a Polícia Civil entrou no meio do caminho dessa história e foi ao hospital e disse a funcionários do hospital que eles não poderiam dar informação para ninguém sobre a existência dessa testemunha. Nós entendemos isso como uma ameaça. Como nós encontramos a ambulância no meio da estrada, soubemos por acaso que essa pessoa havia sido socorrida e aí essa primeira testemunha nós ouvimos agora há pouco. Ela falou um pouco a respeito dessa situação dos tiros, mas não conseguia dizer muito a respeito porque estava saindo da cirurgia e não tinha maiores informações. Nós estamos em busca de [mais] testemunhas. Mas nós achamos que, sim, tudo isso que aconteceu é por conta do conflito agrário ter se arrastado por muito tempo, mas pode haver um elemento de envolvimento de outros interesses como, por exemplo, empresas de segurança, já que poucos dias atrás morreu um segurança da empresa Elmo. A pergunta a ser respondida é: foi uma ação de agentes públicos realizando uma vingança privada? Essa é a pergunta que tem que ser respondida. Uma vingança por causa da morte e por causa dos interesses desse grupo latifundiário [o dono da fazenda Santa Lúcia é Honorato Babinski Filho]. Aqui na oitiva de testemunhas, uma pessoa falou que o seu marido também foi assassinado em uma das fazendas desse Honorato Babinski Filho. E essa morte continua impune.

Outra questão é a morte do policial militar Edemir Souza Costa [no dia 1o de maio passado]. Ele morreu carbonizado com outras três pessoas, incluindo o filho dele. O crime foi em Santa Maria das Barreiras, longe daqui. Bem longe. Mas esse policial era ligado a um batalhão daqui. Então, veja: esses são alguns elementos que o Conselho está levantando para poder entender o injustificável resultado da morte de dez pessoas nessa ação da Polícia Militar. É injustificável que você vá cumprir um mandado que é pra tirar a liberdade de uma pessoa ou para realizar uma parte de uma investigação criminal e você tire a vida das pessoas. Então esse caso a gente acha que pode ter relação, mas o caso da empresa Elmo a gente acha que, com certeza, tem relação [com as mortes]. A gente não sabe. Outra questão é que foram três delegados ao local. O delegado que estava coordenando a operação [Valdivino Miranda, da Delegacia de Conflitos Agrários], o pessoal falou aqui que ele já tem um histórico de violência. Nós estamos também vendo esse detalhe.

A Liga dos Camponeses Pobres (LCP) falou em 11 mortos e não dez como vem sendo noticiado. O senhor confirma essa informação?

São dez mesmo. Essa outra pessoa que se falou que teria morrido provavelmente era a testemunha que foi baleada e estava no hospital.

Qual seria a motivação de assassinar sete pessoas de uma mesma família? Por que essa família especificamente?

Se uma pessoa percebesse a aproximação dos policiais e se afastasse cinco a dez metros, os policiais não saberiam onde ela estaria. Então uma hipótese é que as vítimas foram pegas de surpresa dentro de suas casas. E, em uma delas, estaria esta família. Outra hipótese que foi levantada é que alguém que conhecia muito bem o local guiou a polícia na ação, levou pelos caminhos. Era muito difícil chegar no local. Hoje foi levantada essa hipótese de que alguém pode ter guiado a polícia e usado desse elemento surpresa [para a prática de execuções sumárias]. Essa família era o casal Jane Julia de Oliveira e o seu Antonio Pereira Milhomem, dois filhos e três sobrinhos. Pode ser que eles estivessem próximos. Essa é uma dúvida que nós queremos elucidar: por que essa família foi assassinada.

Eu tive a informação de que o Ministério Público teria sido impedido de fotografar os corpos no IML de Marabá. O senhor confirma isso?

Isso ocorreu. Houve hoje pela manhã, inclusive, uma cobrança por parte do procurador geral de Justiça do Pará sobre a Secretaria de Segurança Pública do Pará porque eles impediram que os promotores fotografassem os corpos antes da realização da perícia. Isso foi considerado uma atitude estranha, tendo em vista que, em geral, a perícia fotografa os corpos e manda para o Ministério Público para instruir as investigações.Você tem de um lado o fato que os próprios policiais que mataram removeram os corpos do local, isso é muito grave do ponto de vista de você destruir a cena do crime. A destruição da cena do crime neste caso foi muito grave porque os corpos foram retirados do local. Hoje se falou que uma pessoa poderia não estar morta, o que justificaria o socorro, mas os outros sim estavam todos mortos. Aí você vai somando: a destruição da cena do crime, depois você tem a dificuldade de fotografar os corpos do IML. São várias coisas estranhas que vão se somando. Levar os corpos significaria que não houve tanta crueldade assim, porque se tentou prestar socorro. Mas nesse caso não se justificaria porque as pessoas já estavam mortas quando foram trazidas para o hospital.

E qual será o aparato para prosseguir as investigações?

O Ministério Público estadual designou três promotores para a investigação, a Polícia Federal também está acompanhando. Mas a gente sabe que a produção da prova nesse momento fica principalmente a cargo da Polícia Civil. E na região aqui, os deslocamentos são muito longos, a Polícia Militar tem condição de chegar antes aos locais em todos os momentos. E, nesse sentido, uma das coisas que a doutora Deborah vai solicitar é o afastamento dos delegados e dos policiais que estiveram envolvidos nesse episódio para que haja a possibilidade de que a investigação seja feita e não haja nenhum tipo de obstrução das provas. Mas a informação que a gente recebeu no hospital é que a Polícia Civil pediu para os funcionários do hospital para onde foram levados os corpos para que ninguém soubesse nada a respeito da testemunha que estava lá: ou seja, eles quiseram impedir que haja uma investigação realmente isenta e por isso é necessário o afastamento daqueles que tenham interesses nos resultados da elucidação desses crimes para que esse crime não fique impune.

O segurança morto, o Marcos Batista Montenegro, era policial? A gente sabe que muitos policiais trabalham nessas empresas.

Não. A informação que eu tive era que ele era só vigilante. Mas outra coisa que costuma acontecer é que há policiais ligados à direção dessas empresas. Então outra coisa que nós pedimos à Polícia Federal foi saber sobre a situação da empresa, quem são seus donos, se ela está regular, etc. É preciso saber se ela tem relação ou não com os policiais.

No estado do Pará essa chacina só ficou atrás do Massacre de Eldorado dos Carajás, é isso mesmo?

Essa é a segunda maior chacina do Estado do Pará. É a segunda maior chacina no campo brasileiro nos últimos vinte anos.

Podem haver mais vítimas do que foi noticiado até agora?

Além da testemunha que está no hospital, podem haver outras pessoas feridas que não compareceram às oitivas ou ao hospital. Nós só vamos fazer na medida em que nós falarmos com alguma testemunha que estava no local e fugiu porque se fala de 150 trabalhadores que estavam lá. Então não é possível que não haja mais testemunhas. A gente está pedindo para que outros órgãos, como a Polícia Federal, também façam investigações paralelas. A Polícia Federal está, por enquanto, só acompanhando e garantindo a segurança da investigação. Por ora, o que há são muitas interrogações a respeito desse caso.

Há alguma outra informação que você ache importante destacar?

É importante destacar que essas situações estão acontecendo porque o processo de reforma agrária foi paralisado na medida em que o agronegócio tomou conta do Estado brasileiro. O Executivo está na mão do agronegócio, o Congresso Nacional está na mão do agronegócio. Eles paralisaram todas as políticas públicas que visavam garantir direitos de populações indígenas, quilombolas, trabalhadores rurais. Aí você tem o quadro de pressão social que tende a crescer com a crise. Sempre nos momentos de maior desemprego e crise financeira, você tem um aumento dos acampamentos de trabalhadores rurais porque as pessoas vão buscar então uma saída dentro do desemprego. Esse quadro é explosivo. E o resultado que tem sido configurado é esse quadro de chacinas, assassinatos em todo o país, mas sobretudo nessa região do “arco do fogo” da Amazônia. E isso pode piorar na região com a aprovação da MP 759 já que ela amplia a possibilidade de apropriação de terras públicas, a legalização da grilagem. Muitos desses casos vem ocorrendo em ocupações ilegais em terras públicas.

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