A polícia hondurenha tem dois cárceres em Amapala. Um é usado como armazém. O outro quase sempre está vazio. Nessa ilha vulcânica no Golfo de Fonseca, a vida se move devagar. Em paz. Uma verdadeira ilha – também no sentido metafórico em um dos países mais violentos do mundo. Mas ali nada acontece. “A maioria dos casos que atendemos é de bêbados ou de violência doméstica”, diz a comandante da polícia. “Há pouco trabalho.” Nem mesmo roubo? Ela olha para dois de seus colegas agentes designados para a ilha há três meses. Todo mundo ri: “Não, nada. Isso aqui é um pouco chato”.
Enquanto a taxa de homicídios em Honduras fechou, no ano passado, em 60 por 100 mil habitantes, em Amapala ninguém nem lembra direito quando foi o último assassinato. Segundo a polícia, foi há três anos, quando um sorveteiro que veio do continente matou um pescador embriagado. A comunidade concorda em relação ao fato, mas alguns acreditam que isso se passou há quatro anos ou mais. Eles falam sobre assassinatos anteriores como se fossem lendas passadas de geração em geração: um marido ciumento que matou um estudante da escola naval que foi pego com sua esposa; um homem com deficiência mental que jogou uma pedra na cabeça do seu irmão, “que o incomodava muito”. E ninguém se lembra de mais nenhum caso.
Em todo o município, que também se chama Amapala e inclui a maior parte de Zacate Grande e outras pequenas ilhas hondurenhas no golfo, a polícia registrou dois homicídios em 2015. Nenhum no ano passado. Amapala é o município menos violento de Honduras. Nesta ilha, nada acontece.
A letargia da tarde só é quebrada pela passagem de um bando de araras sobre nós. Aves vermelhas e bonitas que gritam com um descaramento que seria suicida em Tegucigalpa ou San Salvador.
A ilha seria idílica não fosse a decadência da cidade, a miséria de seus habitantes e os montes de lixo que se acumulam na praia, na entrada das casas. O carro do lixo não vai além do centro.
Há apenas um bar e restaurante em toda a ilha; restam as barracas de praia que oferecem frutos do mar preparados ao lado de casas sem esgoto que despejam urina na areia. A maioria das casas não tem serviços de saneamento, e a água se acumula durante semanas em piscinas fétidas onde as crianças brincam disputando o lixo com os urubus.
Uma estrada de quase 20 quilômetros rodeia o vulcão. Apesar da pequena população e poucos turistas, um bando de mototáxis circula durante todos os dias, muitos vazios, outros carregando mercadorias. Alguns transportam moradores de áreas rurais que vão à cidade para ir à igreja, fazer compras ou receber remessas no banco. Como não há postos de gasolina, alguns velejadores aproveitam para vender combustível aos motoristas de táxi.
Há apenas um caixa eletrônico que não funciona há meses; nem mesmo o hotel mais caro da ilha aceita pagamentos com cartão, e, quando acaba a energia elétrica, algo frequente, toda a atividade econômica é paralisada. Fora da pequena cidade, que se dedica à burocracia e a fornecer serviços básicos aos turistas e àqueles que vivem na base naval, os amapalenses vivem de uma economia de subsistência: pesca rudimentar para alimentar a família, roças semeadas em pequenos terrenos. Há casas feitas de tábuas entrecruzadas, deixando brechas por onde entra a chuva no inverno. É uma ilha pobre. Mas aqui o governo hondurenho e um grupo de estrangeiros com ideias radicais planejam um experimento do qual nada sabem os moradores de Amapala.
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Durante uma visita recente a Washington, o presidente de Honduras, Juan Orlando Hernández, tuitou uma foto do encontro com alguns congressistas norte-americanos. Pode-se ver, sentado na parte de trás da sala, um homem de meia-idade careca. Se chama Mark Klugmann. É americano e assessor do presidente Hernández. Nenhum outro membro da delegação hondurenha conhece tão bem alguns dos escritórios visitados na turnê, que incluiu reuniões com o secretário de Estado, Rex Tillerson, e o vice-presidente, Mike Pence. Três décadas depois de ter trabalhado nesses escritórios, Klugmann retornou como membro de uma delegação hondurenha.
Em meados dos anos 1980, ele fazia parte da equipe que elaborava os discursos do presidente Ronald Reagan. Especialista em estratégias políticas, passou décadas trabalhando com a direita da América Central, prometendo elevar os índices de popularidade dos candidatos e presidentes através de medidas sensacionalistas e radicais.
Em El Salvador, foi assessor do presidente Armando Calderón Sol e, durante a administração do presidente Francisco Flores, se tornou alvo de um escândalo quando o efemelenista Schafik Hándal denunciou que a Cepa (Comisión Ejecutiva Portuaria Autónoma) o havia contratado por quase US$ 30 mil por mês “para modernizar os portos” do país. O presidente Flores explicou, em seguida, que esse montante era para pagar a equipe presidida por Klugmann, “um consultor especializado em projetos de modernização”.
Em algumas entrevistas, Klugmann definiu-se como “jornalista”. Mas à La Prensa Gráfica, em 2007, ele afirmou ser “consultor de campanha política.” Em Honduras, trabalhou para Porfirio Lobo em duas campanhas: a que perdeu contra Manuel Zelaya, em 2006, e a que ganhou, após o golpe, em 2009. Em El Salvador, de acordo com aliados do presidente Francisco Flores, também atuou como consultor na campanha eleitoral e depois para melhorar os índices de popularidade do presidente. Uma de suas contribuições foi o Plano Mano Dura, projetado para aumentar a popularidade de Flores, atingido pela perda de maioria de seu partido, a Arena (Aliança Republicana Nacionalista), nas eleições parlamentares.
Na Guatemala, ele assessorou a campanha de Otto Pérez Molina, cuja mensagem central também era a promessa de uma linha dura contra o crime, depois que o assessor se estabeleceu em Honduras, onde permaneceu no governo de Lobo. Hoje, assessora Juan Orlando Hernández – ele o convenceu de que uma de suas principais promessas para conseguir a reeleição é endurecer as penas contra o crime.
À frente de um grupo de libertários de direita norte-americanos – entre os quais o filho de Reagan –, e com a aprovação de seus clientes/presidentes hondurenhos, Klugmann tem autoridade legal para autorizar uma polícia própria em áreas inteiras do território hondurenho; ali a lei do país não estará em vigor, nem os impostos previstos para o resto do território. O esquema, conhecido como Zona de Emprego e Desenvolvimento Econômico (Zedes), foi apresentado pelo governo de Honduras como um modelo para atrair investimentos estrangeiros com condições legais e de segurança pública fora dos padrões nacionais. Em outras palavras, um território feito para os investidores.
“Trata-se de zonas francas com extraterritorialidade fiscal, com autonomia da alfândega e jurisdicional”, diz Octavio Sánchez, principal promotor dos Zedes.
O porto de Amapala é a única Zede conhecida até agora, e não há concessionários ainda. Honduras deve se tornar o grande receptor de carga regional no Pacífico, como parte de um megaprojeto logístico que inclui também um canal para o transporte de produtos secos para o Atlântico.
Juan Orlando Hernández, um populista de direita com políticas – e com um discurso – que lembra o ex-presidente salvadorenho Antonio Saca, disse que Honduras se tornará uma alternativa ao canal do Panamá; e essa alternativa começará em Amapala. “Nosso objetivo é capturar não menos de 5% do transporte de mercadorias de um oceano a outro”, disse Hernández na Assembleia Geral da ONU em 2014.
Essa Zede, projetada pela agência de cooperação coreana KOICA, inclui também um porto seco na cidade de Alianza, que faz fronteira com El Salvador, para centralizar o recebimento e a distribuição de contêineres que chegam a Amapala, além daqueles que chegam por terra a partir de El Salvador, Nicarágua e Guatemala. A cerca de 35 quilômetros a leste de Alianza, em Nacaome, os coreanos sugerem a criação de um centro de logística e habitação para atender às necessidades do porto e dos milhares de funcionários que virão.
Na ONU, Hernández anunciou que seu governo está construindo uma via expressa que permitirá a transferência de contêineres de Alianza a Puerto Cortes, no Atlântico, em menos de seis horas. As autoridades de Honduras dizem que mais de 80% da estrada está concluída. Nos outros três projetos – Amapala, Nacaome e Alianza –, ainda não se colocou uma única pedra.
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Dois estadunidenses com carreiras muito diferentes disputam a paternidade das Zedes. Um deles é Klugmann. O conceito, porém, teria surgindo em um escritório na Universidade de Nova York, criado pelo professor Paul Romer. Foi batizado por Romer como Ciudades Charter, centros urbanos que seriam construídos em áreas despovoadas e convertidos em uma grande zona livre com administração e legislação internacional. Era a solução, disse ele, para atrair investimentos para países subdesenvolvidos.
Logo após a posse do presidente Porfirio Lobo, Romer conheceu Octavio Sánchez, um jovem graduado de Harvard que havia subido meteoricamente ao poder em Honduras, tornando-se um dos principais assessores do Lobo. Honduras tentava normalizar sua situação política e econômica duramente atingida pelo golpe de 2009. “O golpe nos isolou internacionalmente e não veio investimentos”, diz Sánchez. “Estávamos à procura de projetos que poderiam atrair o investimento e, em seguida, encontramos Romer.”
Em um Ted Talk, Romer explicou que seu projeto tinha como base a ideia de que alguns países não conseguem se desenvolver por causa de regras e condições políticas que impediriam um ambiente positivo para o investimento. Tendo Hong Kong como modelo, Romer imaginou que esses países poderiam atrair o capital se funcionassem sob regras diferentes das nacionais. Em teoria, isso atrairia investidores para desenvolver a infraestrutura (energia elétrica, estradas, portos, escolas etc.) na região, construindo cidades e instalando seus negócios. Isso faria com que muitas famílias mudassem para viver e trabalhar lá. Em teoria. “Este não é um novo colonialismo, porque não há coerção ou concessões especiais”, disse Romer em sua palestra. O que o ingênuo professor não percebeu foram as razões para que esses países sejam menos desenvolvidos. Não é por falta ou excesso de regras, mas pela forma como são usadas. Ou seja, por causa do tráfico de influência e corrupção endêmica nesses países, praticado até mesmo por empresas do chamado Primeiro Mundo. Essa tem sido a história de Honduras e, em última análise, a razão por que Romer desistiu de implantar seu projeto no país.
”Eles não devem deixar acadêmicos soltos em terras selvagens”, disse o professor Romer, em tom de brincadeira, em sua apresentação. Foi exatamente o que aconteceu. Romer saiu escandalizado do projeto de Honduras.
Buscando uma entrevista formal, trocamos alguns e-mails no ano passado. Em um deles ele escreveu: “Eu me distanciei do projeto [em Honduras] porque da última vez verifiquei que estava indo em uma direção que eu não apoiava. Especificamente, eu temo que ele possa ser usado de uma maneira que acho intolerável, que se torne um caminho para um pequeno grupo de pessoas com acesso ao poder em Honduras distorcer a voz democrática indefinidamente”. Logo após essa troca de e-mails, o professor foi nomeado economista-chefe do Banco Mundial. Um de seus assistentes cancelou a entrevista afirmando que: “Tenho a impressão de que [por causa das novas funções, Romer] não vai querer discutir esse projeto no momento”.
O que aconteceu? Justo o que Romer disse em seu discurso que não aconteceria: antes mesmo de as Zedes entrarem em funcionamento foram concedidas concessões especiais. E logo outros norte-americanos embarcaram no projeto através dos escritórios de Mark Klugmann.
Klugmann assume a paternidade das Zedes e acusa Romer de plágio. Ele disse que, devido ao “sucesso imediato” do projeto, “um professor proeminente nos meios de comunicação” inventou uma versão alternativa da autoria do projeto. (Embora Octavio Sánchez tenha ido pessoalmente convencer Romer para trazer sua ideia das cidades-modelo a Honduras.) El Faro tentou falar com Klugmann de várias maneiras, mas ele nunca respondeu.
“O modelo de Zedes nascido da minha experiência no mundo real, ajudando os países a realizar reformas econômicas”, Klugmann escreveu em uma revista financeira nas Ilhas Cayman. Mas, para que esse projeto fosse convertido em lei em Honduras, a nação teve de enfrentar outros episódios traumáticos.
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Às sete da noite de 12 de dezembro de 2012, três contingentes do Exército hondurenho cercaram o Congresso Nacional em Tegucigalpa. O presidente da Assembleia, Juan Orlando Hernández, convocou uma sessão especial para discutir um assunto sério: a demissão de quatro juízes da Câmara Constitucional. Câmeras de televisão transmitiam ao vivo a chegada de militares e deputados. Três anos depois de um golpe de Estado, Honduras estava novamente sob tensão.
O Legislativo, em conluio com o Executivo, estava para demitir quatro juízes incômodos. O pretexto: uma resolução que declarou inconstitucionais as provas de polígrafo aplicadas aos policiais durante um processo.
A 1h30 da madrugada, Hernández abriu o debate: “É uma conspiração e somos obrigados a discutir esta questão. Alguns de nós trabalhando, expondo-nos… e outros conspiraram contra aqueles que estão fazendo para recuperar a paz e sossego! Devemos continuar trabalhando para encontrar a instância responsável por esta conspiração”.
O resto da sessão, que durou várias horas, foi mera formalidade. Mais de três horas de intercâmbios e acusações entre os deputados. Gladys Aurora López, a atual vice-presidente do Congresso e presidente do Partido Nacional, no poder, disse na reunião que o momento da demissão era apropriado porque o país não havia ainda aplicado “outras sete leis chamadas de inconstitucionais”, incluindo as Cidades Modelo.
Ali mesmo foram substituídos juízes, e logo depois o projeto Cidades Modelo foi renomeado como Zonas Especiais de Emprego e Desenvolvimento, as Zedes, através de uma emenda constitucional convertida em lei pelo mesmo Congresso, pouco mais de um mês depois, em 30 de janeiro de 2013.
Então, depois de meses de campanha pública do Legislativo e Executivo, os juízes demitidos começaram a sofrer ameaças e ataques armados.
“Sim, havia ameaças. Alguém das Forças Armadas chamou o juiz [José Francisco] Ruiz Gaekel e ele nos disse para deixar o país porque estavam atrás de nós”, diz Rosalinda Cruz Sequeira, uma das destituídas. “O Congresso nos alertou para deixarmos nossas casas. Eu fui ao magistrado [José Antonio] Gutiérrez Navas, porque sua esposa é espanhola.”
Os quatro juízes tinham uma carreira notável. Na Corte Suprema da Justiça viveram (e tacitamente aprovaram) o golpe de 2009 contra o presidente Manuel Zelaya; Gutiérrez Navas também foi o chefe da equipe de advogados litigantes em Haia na disputa com El Salvador; e Rosalinda Cruz Sequeira é filha de um presidente hondurenho que também foi presidente da Corte Suprema (Ramón Cruz Ucles).
As ameaças, diz Gutiérrez Navas, começaram no dia em que decidiriam sobre as Cidades Modelo, em 22 de agosto de 2012. “O presidente Lobo e Juan Orlando Hernández chegaram à Corte para pressionar no sentido de que não era inconstitucional. Ele [Lobo] nos ameaçou, dizendo que estávamos sofrendo as consequências. Em 12 de outubro, em uma recepção, encontrei-me com o presidente Lobo. Ele disse: ‘Você vai ter de deixar o país, mas não terá problemas porque sua esposa é espanhola’”. Gutiérrez Navas deixou o país. O então presidente do Congresso, Juan Orlando Hernández, foi acusado publicamente de conspirar com o crime organizado
Cruz Sequeira denunciou a tentativa de sequestro de uma de suas filhas e disse que duas patrulhas dispararam tiros em sua casa.
Os quatro juízes demitidos documentaram as ameaças e as denunciaram na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Nem sequer ex-juízes confiam no sistema judicial de Honduras.
O quinto membro da Câmara Constitucional, aquele que votou a favor de todas as alterações declaradas inconstitucionais, é o único que permaneceu no cargo, e agora é o procurador-geral de Honduras, sob a presidência de Juan Orlando Hernández.
As emendas constitucionais grassaram sob os novos juízes. Armando Urtecho, diretor-executivo do Conselho Hondurenho da Empresa Privada (Cohep), deixa de lado o protocolo quando se fala sobre isso: “Desculpa ser tão franco. Mas só em Honduras declararam a Constituição inconstitucional”.
Em 2009, Juan Orlando Hernández defendeu o golpe de Estado contra o presidente Zelaya sob o pretexto de que ele pretendia fazer uma consulta popular sobre a reeleição, proibida pela Constituição. Menos de uma década depois, Hernández é o presidente de Honduras e se encontra agora em plena campanha pela reeleição, endossada pela nova Câmara Constitucional. Os magistrados foram empossados naquela noite de dezembro de 2012 em que o Exército cercou o Congresso.
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Em Amapala, não importa por onde se anda, sempre é possível encontrar ruínas daquilo que um dia foi esplendor. No fundo da praça, de frente para o mar, está o Cassino de Amapala, inaugurado em 1933. Em seu grande salão, a alta sociedade hondurenha, viajava de Tegucigalpa, San Pedro ou Comayagua para comparecer a bailes elegantes. Agora a metade do teto desapareceu, e a entrada está remendada com tábuas. O cimento desprendeu-se dos balcões e sobrevivem apenas vigas oxidadas pelo sal marinho. Hoje o salão desmoronado virou casa para três famílias que ocupam ilegalmente o edifício há décadas e passam os dias jogando cartas no pátio da frente e as noites dormindo em camas onde antes eram os refeitórios e a cozinha.
A sete quilômetros do cassino, em uma pequena baía chamada Praia Negra, um hotel de 50 quartos permanece aberto por inércia. Não há um hóspede sequer desde o fim de semana passado, quando um casal ocupou um dos quartos, e no fundo da piscina vazia cresce uma relva de plantas. Seus vizinhos na praia são pescadores que vivem em quatro barracões de zinco cercados de lixo
Amapala foi capital de Honduras e também da efêmera República Federal de Centroamérica, em fins do século XIX. Era, até o início dos anos 1970, o principal porto hondurenho na costa do Pacífico. Aqui atracou o presidente eleito estadunidense Herbert Hoover, durante sua viagem de boas intenções pela América Central, depois de ter visitado Cutuco em El Salvador, em 1928. O centro da cidade conserva algumas casas de madeira da antiga colônia alemã dedicada ao comércio, uma das quais hospedou Albert Einstein. Os dias de prosperidade terminaram há muito tempo. Mas o presidente Juan Orlando Hernández promete que eles vão voltar.
O prefeito de Amapala, Santos Alberto Cruz Guevara, visitou a cidade de Busan no ano passado, junto com os prefeitos de Alianza e Nacaome, convidados pelo governo sul-coreano. “Pudemos ver como um país devastado pela guerra pode se reerguer em 50 anos”, disse. Mas não é claro qual será seu papel se o porto terminar sob o marco legal de uma Zede. “Não nos disseram nada sobre isso. Suponho, pelo que vimos lá, que o porto estará no mar, flutuante, mas não há clareza.” O prefeito não sabe se lhe tocará lidar com o lixo gerado por um porto dessas dimensões, nem com a população extra de trabalhadores. “Nem sequer tenho claro se esse porto será de meu município, nem até onde chegará o território de minha jurisdição”, disse.
O governo hondurenho lhe disse somente que este é um momento ideal para aproveitar o golfo de Fonseca (e o fracasso do porto de Cutuco, em El Salvador) e ampliar a capacidade de recepção de carga marítima no Pacífico. “[O porto da] A União não vai dar conta”, disse Ebal Díaz Juárez, chefe do gabinete de governo de Hernández. “Honduras não renuncia à possibilidade de um megaporto, e a Nicarágua também necessita de um.”
Mas é muito difícil imaginar uma Busan em Amapala. Para os moradores, já estaria de bom tamanho a construção de uma ponte que una a ilha ao continente para que o comércio flua, para que cheguem os ônibus, os carros dos turistas, os caminhões-pipa de gasolina. Esse é o sonho deles.
Mark Klugmann conheceu Octavio Sánchez na Casa Presidencial de Lobo. Sánchez lhe atribui uma manobra estranha que terminou tirando o professor Romer do jogo. De acordo com essa versão, Klugmann convenceu o presidente Lobo a outorgar uma Zede a um empresário estadunidense chamado Michael Strongman, para fundar em Honduras um parque de alta tecnologia. Strongman é, como Klugmann, um libertário de direita.
Devido às controvérsias geradas pela possível concessão de uma Zede de forma arbitrária e sem processos, Strongman não pôde investir em Honduras. Apesar disso, Klugmann ficou à frente de um grupo desenhado para arbitrar tudo o que concerne às Zedes.
O chamado Comitê para Adoção das Melhores Práticas (Camp) foi criado por decreto executivo em janeiro de 2014 e posteriormente convertido em lei pela Assembleia Legislativa. Entre suas funções está produzir uma lista de nomes de juízes especializados em direito britânico, ou seja, ao menos em princípio, estrangeiros, para que o Conselho da Judicatura escolha quem aplicará as leis britânicas nos tribunais instalados pelas Zedes.
O Camp está composto por 21 membros nomeados pelo presidente Lobo e ratificados pelo Congresso. O decreto que oficializa sua nomeação parece a lista de convidados de uma reunião de libertários na Califórnia ou nas Ilhas Cayman. Dos 21 membros, somente cinco são hondurenhos, entre eles Octavio Sánchez, o chefe de gabinete Ebal Díaz e o ex-presidente Ricardo Maduro. Os demais são todos estrangeiros, trazidos por Klugmann. E todos libertários de direita. Entre eles está Michael Reagan, o filho do ex-presidente estadunidense, e Grover Norquist, veterano do escândalo Irã Contra, colaborador próximo do republicano Newt Gringich e fundador da organização Americans for Tax Reform, que se opõe a todo tipo de impostos.
Além disso, estão os igualmente libertários de direita Surse Pierpoint, ex-gerente da Zona Livre de Colón, no Panamá, Lars Seier Christensen, um banqueiro dinamarquês; e Barbara Kolm, acadêmica austríaca cuja nomeação o governo hondurenho precisou defender depois de sua vinculação ao partido nacionalista na Áustria.
Há dois latino-americanos não hondurenhos, libertários também, ambos professores eventuais da Universidade Francisco Marroquín de Guatemala: o peruano Enrique Ghersi; e o argentino nacionalizado estadunidense Alejandro Chafuen, colunista da Forbes e presidente da Atlas Network, uma organização dos Estados Unidos que promove parcerias entre think-tanks de direita; sendo membro de várias organizações desse tipo.
Os libertários acreditam na mínima, quase nula intervenção do Estado na vida dos cidadãos e na eliminação total dos impostos porque estes, dizem, atentam contra os direitos e a liberdade dos cidadãos. Alguns deles são membros da ala mais à direita do Partido Republicano dos Estados Unidos; outros são influentes empresários e lobistas.
Até o final da Guerra Fria, eles eram considerados um grupo extremista e marginal, mas ganharam muita influência nos últimos anos no Partido Republicano, por meio do chamado Tea Party, e, desde o triunfo de Obama em 2009, multiplicaram a sua capacidade de financiamento e influência para resistir à agenda progressista. Têm grande presença na administração de Trump.
Entre seus principais financiadores e líderes estão os irmãos Koch, proprietários da Koch Industries, um dos maiores capitais globais, que lideraram, nos últimos anos, os esforços para impor a agenda libertária na política estadunidense.
Mas o que tantos libertários fazem em Honduras? Octavio Sánchez disse que todos aceitaram de boa vontade formar parte do Camp, atraídos por Klugmann, embora alguns deles nem sequer soubessem o que isso significa. “Esses são os que foram ratificados pelo Congresso, sim, mas nessa lista já há um falecido e outros que nunca assistiram a nenhuma convocatória, de forma que uma nova lista deve ser aprovada em breve”.
A julgar pelas recentes fotografias de Washington, o perfil dos membros do Camp não mudará muito, porque Klugmann continua sendo um homem muito próximo ao poder. Foi Klugmann quem os convidou a participar desse projeto, no qual se combinam todos os elementos defendidos pelos liberais: impostos mínimos ou nulos e mínima intervenção do Estado, apenas na figura do Camp, que são justamente eles.
O artigo 22 da lei de criação das Zedes é o mais controverso. Adverte que elas “devem estabelecer seus próprios órgãos de segurança interna com competência exclusiva na zona, incluindo a própria polícia, órgãos de investigação do delito, inteligência, persecução penal e sistema penitenciário; assim como a vinculação com a estratégia de segurança do país”.
Isso significa que os concessionários, aqueles que têm poder econômico suficiente para investir em um projeto dessa envergadura, terão não apenas um regime livre de impostos, mas também um sistema político, jurídico e de segurança pública nos seus próprios termos. De maneira “exclusiva”, como esclarece a lei.
Isso em um país onde o grande capital tem graves conflitos com camponeses pela posse da terra, como na zona do Bajo Aguán.
“Não façamos rodeios. As Zedes são uma repetição grotesca do enclave bananeiro”, disse Víctor Meza, ex-ministro do governo deposto de Zelaya e diretor executivo do Centro Hondurenho de Documentação. “Como o enclave bananeiro, porém com mais competências.”
Entre as competências dos concessionários das Zedes está comprar terras privadas para serem exploradas no projeto, podendo expropriá-las, caso se neguem a vender. Quer dizer que, se um concessionário é autorizado a desenvolver um projeto agroindustrial em uma zona povoada, ou cujas terras estão em disputa, o regime especial das Zedes permite que o concessionário obtenha as terras. Comprando ou expropriando.
Os conflitos poderiam estar mais próximos do previsto: de frente para a ilha do Tigre se encontra Zacate Grande, provavelmente a parte do município de Amapala onde é maior a resistência contra o porto. Dezenas de pescadores da comunidade de La Flor mantêm aí um litígio legal contra a família Facussé, uma das mais poderosas de Honduras, que reclama a propriedade das terras. Bertín Osorio, um dos pescadores, nasceu nessa praia, como seu pai e seu avô. Mas em uma noite de 2005, do nada, a polícia veio até sua casa e a de seus vizinhos e deteve 12 pessoas, acusando-as de usurpar as terras da família Facussé.
Um dos líderes da comunidade é Pedro Canales, um homem que consegue superar o visível esgotamento que o conflito tem causado à sua saúde. “Faz 25 anos que os ricos nos tiraram as praias de Zacate Grande sob promessas de desenvolvimento. Hoje resistimos porque não querem nos deixar viver em lugar nenhum. Você viu a maquete do porto de Amapala? Alguém poderia se perguntar: onde vamos viver? Desenvolvimento para quem?”
Por terra, Osorio, Canales e os demais pescadores vivem longe de tudo. Mas, com suas lanchas, navegam por águas de três países distintos. Quando a maré sobe, o mar chega até o murinho da casa de Canales. Hoje há um bando de garças pescando moluscos na praia úmida. Em frente, há uma pequena ilha unida à terra firme por uma ponte de concreto, que a família Facussé mandou fazer quando reclamou essas terras. Antes campo lúdico para as famílias dos pescadores, hoje essa ilha é zona proibida.
“Os moradores têm medo que suas terras sejam expropriadas, e também não sabemos como vai ficar o imposto do município”, disse o prefeito de Amapala, Santos Cruz.
Isso é o que temem também os magistrados destituídos, que creem que sua expulsão só pode ser explicada pela obsessão dos grupos de poder em aprovar as Zedes para se beneficiar.
O governo disse estar consciente dos problemas históricos que levantam suspeitas sobre o projeto. “Os ricos se fizeram ricos à custa dos contratos do Estado”, admite Ebal Díaz, chefe de gabinete do presidente Hernández. “Honduras sofre com a concentração da riqueza em poucas mãos, e necessitamos de uma lei para limitá-la.” Mas essa lei nem sequer foi proposta, ao contrário da lei das Zedes, que já faz parte da legislação hondurenha.
Secretário presidencial, Ebal Díaz assegura que existem várias iniciativas interessadas em obter uma Zede. Ele se nega a dizer quais são. Peço que ao menos me diga de que países provêm esses capitais dispostos a investir em Honduras sob este novo regime. “Os três mais fortes são grupos hondurenhos, donos de terras”.
Reportagem originalmente publicada no site El Faro. Leia aqui o texto original em espanhol. Traduzido por Gabriele Roza.