Gente muito diferente subiu ao palco na primeira edição do Festival 3i – Jornalismo inovador, inspirador e independente, que ocorreu nos dias 11 e 12 de novembro no Rio de Janeiro. Articulistas, repórteres, podcasters, executivos de plataformas e diretores de sites inovadores compartilharam suas angústias, reflexões e discordâncias. E também brindaram o público com ousadia, sonhos e soluções adotadas no dia a dia das redações independentes. No fundo, todos tinham uma coisa em comum: sabem que o jornalismo está vivíssimo.
Foi a primeira vez que oito organizações nativas digitais – Agência Pública, Nexo, Ponte, Lupa, Brio, Repórter Brasil, Nova Escola e Jota – se uniram ao Google News Lab para fazer um festival a fim de discutir questões que rondam quem está montando novas iniciativas jornalísticas.
A mesa que encerrou a noite de sábado resume esse espírito. Um ator, um jornalista tradicional e duas mulheres negras, que têm orgulho de ser ativistas, discutiram os limites do engajamento na produção de notícias. Pedro Dória, colunista do Estadão e da CBN e editor da newsletter “Meio”, abriu o papo se dizendo “o mais radical de todos”. Para ele, jornalismo e ativismo “são duas coisas absolutamente distintas”. Ele chamou à “responsabilidade” quem escreve artigos: “Quando se opta pelo ativismo, o jornalista torna-se um ator político, atuando politicamente em nome de algum objetivo. É preciso ouvir todos os lados, com ceticismo, mas todos os lados”. O pior, para ele, é que esse tipo de comunicação não é eficaz em uma sociedade polarizada como a brasileira. “Você não convence ninguém. Jornalismo ativista é um jornalismo que alimenta a polarização.”
Dríade Aguiar, do coletivo Fora do Eixo, subiu ao palco declarando-se “um pouco diferente dos outros que vieram aqui falar” e afirmando que o Mídia Ninja faz, sim, jornalismo. “É tecnicamente impossível que um veículo seja imparcial. Todo jornal, mídia, tem uma parcialidade.” Para ela, o papel do Mídia Ninja é dar visibilidade a pessoas que, na cobertura da imprensa tradicional, são invisíveis. Sua fala foi pontuada de aplausos da plateia. Cecília Oliveira, do The Intercept Brasil, concordou: a pauta nunca é imparcial. “Todos somos jornalistas ativistas. A pergunta é de que lado você está? Se você está em silêncio, você tem um lado também.”
A mesa esquentou quando o assunto foi a cobertura dos protestos de 2013 e 2014. Pedro Dória lembrou a morte do cinegrafista Santiago Andrade, da Bandeirantes, atingido por um rojão em 2014. Naquele ano, Dória era editor executivo de O Globo, jornal que estampou na capa a manchete “Lei mais dura leva 70 vândalos para presídios”, duramente criticada por organizações de direitos humanos. Para Cecília, grande parte da animosidade contra jornalistas foi alimentada pela própria imprensa, que defendeu a repressão policial contra manifestantes. A resposta de Pedro foi contundente: “O que bateu no meu ouvido foi uma profunda relativização. Não podemos esquecer que houve incitação real de violência contra jornalistas”. Silêncio na plateia.
Gregório Duvivier, ator e colunista que comanda o primeiro jornal televisivo satírico do país, ponderou, ao final, que não acredita no “mito da imparcialidade”. “Mas tenho medo que a gente jogue fora o bebê junto com a água da bacia. E, junto com esse mito, a gente jogue fora fact-checking, jogue fora os fatos. É o que o MBL faz.” (assista aqui)
Horas antes, o festival foi aberto com uma mesa sobre modelos de gestão e negócio diferentes do tradicional. Paula Miraglia, diretora do Nexo, contou que no jornal digital a lógica é outra; a publicidade não faz sentido quando o número de cliques no conteúdo não importa. O foco ali é explicar e contextualizar as reportagens, e, por isso, viram como melhor forma de financiamento o plano de assinatura para os leitores. No Nexo, os jornalistas não sabem a audiência do veículo e quantos cliques recebem. “Não queremos que esse seja um modelo de pressão”, disse. Já Federico Amigo, do semanário Tiempo Argentino, uma cooperativa tocada pelos próprios jornalistas, que elegem a sua direção e os editores, explicou que o modelo de negócios surgiu depois de uma crise na empresa. Hoje, o Tiempo Argentino trabalha com assinaturas e venda em bancas: são 30 mil assinantes e 15 mil exemplares vendidos avulsos toda semana. (assista aqui)
Facebook explica por que está derrubando o alcance de páginas
“A gente começou a cercear esses sites dentro da plataforma para que um conteúdo de mais autenticidade, mais qualidade pudesse ter mais visibilidade”, disse Cláudia Gurfinkel, líder de parcerias de mídia para a América Latina no Facebook e Instagram. Ela respondia ao filósofo Pablo Ortellado sobre a queda abrupta de alcance de páginas como Folha Política e O Cafezinho.
Cláudia explicou que a ideia é derrubar páginas que usam a plataforma como caça-cliques. “O principal incentivo deles é econômico”, explicou. “Estamos trabalhando em três pilares, um deles é cortar os incentivos econômicos, mudar o sistema de anúncios para que possam rodar dentro da plataforma. O segundo pilar é o desenvolvimento de produtos, para que esses sites tenham mesmo uma performance pior dentro da plataforma. O que a gente vê é que muitos desses sites são de baixa qualidade, têm uma quantidade enorme de anúncios dentro da página. A gente começou a diminuir o alcance desses sites. E o terceiro pilar é trabalhar com a comunidade para que as pessoas possam identificar uma notícia falsa.” Cláudia garantiu ainda que o Facebook vai permitir que todos os usuários vejam os anúncios comprados por todas as páginas e que as páginas de políticos trarão também quem pagou por cada anúncio.
Marco Túlio, do Google News Lab, reconheceu que um dos problemas que a empresa vê para o futuro da comunicação são as notícias falsas, as bolhas de comunicação e o deserto de notícias em várias localidades do Brasil. Ele apresentou algumas iniciativas da corporação para ajudar jornalistas através do laboratório capitaneado por ele no continente, como o Projeto Credibilidade, realizado pelo Instituto Projor e os selos de fact-checking, que priorizam checagem de fatos nas buscas do Google News – o “Truco”, da Pública, é um dos parceiros. Também houve novas medidas para desestimular a monetização de notícias enganosas, como o AdSense. O Google vê o jornalismo de qualidade como essencial para o seu negócio e sua missão – afinal, ele melhora a qualidade das informações organizadas via buscas, diz ele.
O professor da UFABC e membro do Comitê Gestor da Internet Sérgio Amadeu criticou o poder das duas plataformas. “Concentração não é bom para a democracia em nenhum lugar do mundo”, alertou. “Para ‘melhorar nossa experiência’, o algoritmo quer retirar o inesperado, o incômodo, o oposto. Algoritmos não são neutros”, disse. “Como que a democracia pode sobreviver, sendo que antes a gente lutava pela liberdade de opinião expressão e agora temos que lutar pela liberdade de visualização? Eu tenho que escolher o que eu quero ver!”.
Sérgio Amadeu resumiu sua visão sob aplausos: “O debate público está acontecendo dentro de uma empresa privada e tem mais visualização quem paga. Precisamos ter o direito de visualizar livremente informações de interesse público dentro da plataforma”.
Na plateia, o jornalista Martín Pellecer, da Guatemala, que comanda o site Nómada – uma iniciativa que pretende fazer jovens gostarem de política através do seu “jornalismo cool” –, dividiu sua experiência. Pellecer tomou a palavra para encerrar a mesa com uma angústia compartilhada com jornalistas do mundo todo: por que o Facebook retirou as páginas de notícias do feed dos usuários? O controverso experimento começou recentemente em seis países. Segundo Pellecer, derrubou em 70% os leitores de alguns sites da Guatemala. “Isso não vai acontecer em outros países”, garantiu Cláudia, dizendo que o Facebook faz periodicamente testes para “melhorar a experiência do usuário”. (assista aqui)
Polarização e eleições
Um tema que perpassou o festival – polarização do debate público – foi o centro do debate de encerramento. O pesquisador Pablo Ortellado, que dirige o Monitor do Debate Político no Meio Digital, do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação da USP explicou que o Facebook é, no Brasil, a segunda fonte de informação jornalística, atrás apenas da televisão. Segundo ele, há 5 milhões de usuários de esquerda e 7 milhões de direita – entre os 120 milhões de brasileiros na plataforma – que postam e compartilham conteúdo como se estivessem em uma batalha política. “É ‘Toma, coxinha’, ‘Toma, petralha’. As pessoas compartilham isso como um ato de guerra.”
Já a americana Claire Wardle, diretora do think tank First Draft Media, apelou para que as pessoas não usem mais o termo “fake news” – que tem sido usado para denegrir conteúdos jornalísticos verdadeiros por políticos como Donald Trump. O termo não dá conta de explicar o fenômeno que ela chama de “poluição informacional”. Para ela, é preciso que a imprensa reconheça o seu papel nessa poluição – quando uma manchete é escrita para caçar cliques, por exemplo – e incluir também sites satíricos e conteúdos distorcidos. Uma das soluções é mais colaboração entre veículos diferentes. Foi o que o First Draft fez nas eleições francesas, capitaneando uma iniciativa que reuniu 37 sites para fazer o Cross Check, checando conjuntamente mais de 60 conteúdos mentirosos sobre os candidatos. (assista aqui)
Outras vozes
Nos dois dias, o palco do Festival 3i recebeu dezenas de projetos que estão trazendo novos atores para o jornalismo brasileiro. Como Caíque Dalapola, ainda estudante, que é repórter do site Ponte. Seu depoimento trouxe muita gente às lágrimas. Caíque contou como conseguiu, com uma reportagem sua, tirar um inocente – um ambulante – da cadeia, acusado falsamente de ter roubado um tablet em um bairro nobre de São Paulo. O repórter apurou que a suposta vítima era casada com o policial que realizou a detenção. Após manifestações e 32 dias preso, ele foi inocentado. “Jornalismo de impacto é o que tá na quebrada, falando pra quebrada, sobre a quebrada.” Nervoso – foi a primeira vez que ele falou para jornalistas –, Caíque terminou sua palestra lendo um rap do grupo Facção Centro: “O que eles fazem com o rap eu quero fazer com o jornalismo”, disse.
Projetos inovadores foram também apresentados em palestras do tipo “Lightning Talks”, um formato inspirado nas conferências TED. No palco, seis sites latino-americanos e dez brasileiros – estes, eleitos pelo público. O espanhol José Luis Vieiras, do En Malos Pasos, contou que vem viajando por dois anos pelos sete países mais violentos da América Latina para fazer reportagens. Estão na sua rota Brasil, Venezuela, Colômbia, Honduras, El Salvador, Guatemala e México. “Na América Latina, não contamos histórias, contamos mortos.”
A jornalista carioca Gabriele Roza, do Coletivo Nuvem Negra, relatou como através de um jornal o grupo questiona a participação de profissionais negros em diferentes áreas – seja na universidade, seja nas escolas, seja na produção de notícias. Gabriele fez um apelo: “Não dá pra falar de inovação sem incluir a pauta racial, sem incluir negros na conversa”. Outra jornalista negra, Regiany Silva, do Nós Mulheres da Periferia, coletivo de jornalistas paulistanas, deixou claro que a atuação premiada do site veio para ficar. “Nós, mulheres periféricas, ocupamos esse lugar, e isso não tem volta.”
Kátia Brasil, diretora do site Amazônia Real, em Manaus, enumerou os prêmios que o canal tem ganhado ao fazer jornalismo sobre a cidade e a floresta em um local totalmente desatendido pela imprensa tradicional. “A gente resolveu falar de um lado mais especial dessas populações ribeirinhas e indígenas.” Com essa proposta, o site já chegou a mais de 1,5 milhão de leitores em mais de 170 países apenas este ano.
Para encerrar, o jornalista Bruno Torturra apresentou um projeto de monetização de iniciativas independentes que desenvolveu junto com a Open Knowledge Foundation, o Libre. A ferramenta permite que assinantes possam fazer microdoações a uma variedade de organizações apenas clicando o botão do “Libre” nesses sites. “Doar tem que ser tão fácil quanto dar um like”, resume Torturra. (assista aqui)