No início da noite de quarta-feira, a sala da Casa das Pretas estava ocupada majoritariamente por mulheres negras para o encontro ‘‘Jovens negras movendo as estruturas’’. O evento ainda não havia começado e eu tinha duas opções, sentar bem na frente ou no fundo do salão. Resolvi sentar na última fileira ao lado esquerdo, de costas para quem chegava. Ao sentar, uma das organizadoras surgiu ao meu lado, na entrada do salão principal. Seu semblante para uma outra mulher indicava que a casa estava lotada. No microfone, o aviso de que o evento começaria em alguns minutos. Só faltava Marielle chegar da Câmara.
Até aquele momento da noite quente de março, tudo estava bem. As mulheres na minha frente conversavam e as que chegavam se abraçavam. Quando Marielle chegou, por volta das 19h, rapidamente se formou um grupo de mulheres negras atrás de mim. Fiquei observando todas ali e avisei uma amiga de outro estado: ‘‘Olha, ela é a Marielle’’. Falamos muito dela nos últimos dias. É a tradução mais próxima que temos de ‘‘mulheres negras na política’’. O evento começou, cinco jovens negras contaram as suas ações cotidianas e movimentos de resistência. Marielle foi uma delas.
‘‘O mandato de uma mulher negra, favelada e periférica precisa estar pautado junto aos movimentos sociais, junto à sociedade civil organizada, junto com quem está fazendo’’, disse Marielle. ‘‘Para nos fortalecer naquele local onde a gente objetivamente não se reconhece, não se encontra, não se vê, a negação é o que eles apresentam como nosso perfil’’, continuou.
Nesse momento, lembrei de um dia em que a vi em ação. Era 23 de novembro de 2017, eu estava na Câmara Municipal do Rio em uma votação contra a dupla função dos motoristas. Basicamente só havia parlamentares e jornalistas na parte de baixo do auditório, a maioria brancos, enquanto os rodoviários, a maioria negros, estavam nas galerias.
Além da cor da pele que a diferenciava dos outros e a aproximava da minha, Marielle, a única vereadora negra, tinha muitas cores no vestido, nos brincos e no turbante. Meus olhos brilharam naquele dia. Ela estava vibrante. Quase que concordando com o meu pensamento, mas agora em um espaço de conforto para ela, sua voz continuava ao fundo. ‘‘O nosso corpo que fala, a nossa cor que fala, a nossa raça que fala, o nosso gênero que fala.”
A escritora Ana Paula Lisboa estava na mesa. ‘‘Faz oito meses que não moro no Brasil, moro em Luanda, e hoje cheguei e estou me sentindo mais em Luanda, todo mundo preto’’, disse arrancando uma risada da plateia. Contou sobre não querer ser convidada para falar só sobre dor e sofrimento e apresentou o Querendo Assunto, um webprograma de entrevistas só com mulheres negras, algo que para nós é bem novo. É difícil ver mulheres negras nesses espaços. Fui embora por volta das 20h, quando as falas se encerraram e começaram as perguntas. Duas horas depois, olho o celular: ‘‘Marielle foi executada.”
Nesse instante é como se tudo que eu tivesse construído não fosse verdadeiro. Me atingiu em cheio. ‘‘Cada disparo atingiu uma pele. A pele da mulher negra. A pele da quinta vereadora mais votada. A pele da socióloga. A pele da favelada. A pele da defensora de direitos humanos. Foram muitos assassinatos de uma vez só’’, resumiu Flávia Oliveira em um comentário em rede social. Ficamos todas com um sentimento de impotência. ‘‘Ela fez tudo certo, estudou, foi eleita democraticamente, parece que temos que sempre fazer mais e mais’’, desabafou Juliana.
Glória, uma amiga de 19 anos, ao acordar na quinta-feira e saber da notícia, lembrou das palavras da mãe sobre conquistar mudanças: “Vão ficar com raiva de você, vão querer te matar”. “Depois que acordei e parei para ler sobre a morte de Marielle, eu chorei. Confesso que o medo passou perto dos meus sonhos’’, disse Glória. “Marielle morreu por mim, morreu pelas pretas, faveladas, pobres e lésbicas”, ela continuou. ‘‘Mesmo que essa execução seja para dizer ‘parem’, nossa resposta tem que ser a luta e a resistência contínua.”
No velório, na quinta-feira passada, mulheres negras compartilhavam dor e abraço nas escadarias da Câmara. Na sexta, Yasmin Thayná sintetizou em uma postagem o que ela viu nas ruas: ‘‘No Rio, a vida segue, aparentemente, igual. Não tanto para as jovens negras que se identificavam com Marielle Franco. Nossos olhos estão como nossa Conceição Evaristo já escreveu: olhos d’água… Vai ser duro continuar na caminhada com a suspensão de uma das existências mais importantes pra nós, que acabamos de começar’’. Na marcha do último domingo, na Maré, percebi que os laços entre mulheres negras estavam mais fortes. Os abraços, mesmo que entre mulheres negras desconhecidas, eram constantes. As expressões e as falas demonstravam que sim, morremos um pouco também. Na segunda, na PUC-Rio, na mesma universidade em que Marielle estudou, pude ver abraços de consolo entre nós.
Em 15 meses, Marielle ocupou a Câmara não só com a pauta racial e de gênero, mas com negros e mulheres. As pautas dela eram as minhas pautas. Mas não eram só próximas a mim, ou a mulheres negras. Ela foi uma mulher negra que soube ser representativa, porque mulheres negras têm esse poder, felizmente ou infelizmente. ‘‘Existe um conhecimento particular que vem do sofrimento’’, lembrou uma outra amiga, Lua Fonseca.
Não é fácil se ver sempre dentro do pior dado das pesquisas de feminicídio, homicídio por intervenção policial entre mulheres, ver semelhantes chorarem nas capas dos jornais a morte dos seus filhos. Não estar no grupo das melhores notas do Enem, dos melhores salários e cargos de decisão. Os desafios enfrentados no Brasil são maiores para o maior grupo demográfico brasileiro, mas há 130 anos ser mulher negra significava uma vida muito pior. Avançamos muito, e Marielle conseguiu colaborar para isso.
A vida dela sempre esteve em perigo. Ela não precisaria falar para estar em situações desconfortáveis ou inseguras. Marielle não foi assassinada por ‘‘falar demais’’, foi assassinada por ser uma mulher negra com voz. Não coincidentemente, Marielle passou os dias anteriores falando da violência na cidade. No Twitter, questionou a ação da Polícia Militar. No Facebook, disse que “precisamos gritar para que todos saibam o que está acontecendo em Acari”. Marielle foi executada por denunciar o genocídio da população negra [a história dos três crimes que Marielle Franco denunciou antes de morrer]. É justamente isso que causa o medo e a dor, não poder falar por nós mesmas, sermos silenciadas de uma maneira tão cruel.
‘‘Quem matou a Marielle não calculou que o tempo mudou’’, e a resposta das ruas seria grande, mas quem matou ou mandou matar Marielle já entendeu que mulheres negras são uma força política. Apesar de Marielle ser um alvo mais fácil de violências do que qualquer outro, ela representou uma novidade na estrutura e por isso foi alvo da violência. A única vereadora na Câmara Municipal de Niterói, Talíria Petrone, do PSOL e amiga de Marielle, já recebeu ameaças por telefone na sede do partido e nas redes sociais. “Essas bandeiras que levantamos mexem muito com as estruturas da sociedade, são consideradas uma afronta por muitas pessoas”, disse em entrevista a O Estado de S. Paulo.
‘‘O que vai acontecer se eu fizer cinema para modificar alguma coisa?’’, Juliana, uma amiga, me perguntou. Muitos corpos negros tombaram neste país sem que até hoje conseguissem saber a autoria. Esses corpos não conseguiram chegar na Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro, lembrou uma outra amiga, Ana Carolina. Nenhum lugar no Brasil é confortável para mulheres negras, nenhum lugar no país é seguro para mulheres negras. Mataram a Marielle, levaram uma parte de cada uma de nós, mas não determinaram um limite aonde mulheres negras, 27% da população brasileira, podem chegar.
Precisamos encarar o desafio de construir espaços seguros para mulheres negras. Como resposta, devemos avançar não só na inclusão e participação de mulheres negras em esferas de poder, mas também no debate da segurança política de mulheres, sobretudo de mulheres negras. Ninguém poderia prever que aquele seria o último evento de Marielle. Em vida ela mostrou para quem quisesse que mulheres negras no Brasil estão mudando as estatísticas, jovens negras estão movendo as estruturas. Por Marielle, precisamos gritar para que todos saibam o que está acontecendo em Acari, na sua cidade e no Brasil. Acordei hoje e percebi que ainda dói. Dói saber que somos assassinadas quando chegamos lá, mas aprendemos com as gerações fazer da dor coragem para continuar. Marielle agora é força ancestral.