Desde julho do ano passado, a gestão das praias pode ser feita pelas prefeituras municipais. A mudança, autorizada por uma portaria do presidente Michel Temer, deve trazer mudanças significativas nos próximos anos. As praias brasileiras pertencem à União, e até então quem geria comércios e o uso privado do território da orla em todo o Brasil era a Secretaria do Patrimônio da União (SPU). Quando havia eventos, o município tinha que ter autorização e pagar uma taxa de uso do espaço ao governo federal.
A partir de agora, municípios poderão gerir suas praias urbanas por um período de 20 anos, prorrogáveis indefinidamente. Eles precisam encaminhar um pedido para ser aprovado pela SPU.
Até março deste ano, segundo a SPU, foram feitos 65 pedidos de municipalização, dos quais 37 foram aprovados – incluindo cidades como Santos (SP), Ubatuba (SP), Balneário Camboriú (SC), Fortaleza (CE), Niterói (RJ), Maceió (AL), Angra dos Reis (RJ), Ilhéus (BA), Recife (PE) e Guarujá (SP). (Veja aqui todos os nomes).
Houve três pedidos negados porque nos municípios de Apicum-Açu (MA), Caravelas (BA) e Icapuí (CE) não existem praias urbanas, de acordo com a SPU. Os demais seguem em análise.
A grande vantagem para os municípios é que eles vão poder ganhar dinheiro com o aluguel de praias para eventos, sem nenhuma restrição sobre como ele será gasto, já que a receita não é vinculada a nenhuma área específica.
Por outro lado, serão agora as prefeituras que vão fiscalizar o uso inadequado da orla, como construções sobre a faixa de areia, fechamento do acesso ou a privatização das praias.
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A Pública procurou todos os 37 municípios que receberam a concessão para saber quais os planos das prefeituras. Recebeu 15 respostas.
A maioria das prefeituras afirma que a gestão será mais fácil e ágil, sem ter que passar pela aprovação da SPU para lidar com questões como concessões para quiosques e eventos. E muitas responderam que esperam arrecadar mais.
Na pequena Capão da Canoa, no Rio Grande do Sul, a prefeitura diz já ter aumentado sua arrecadação no verão 2017-2018. “Com a medida, a gestão de bares e restaurantes, bem como da orla, ficará a cargo do município, o que gera uma economia de R$ 500 mil a R$ 800 mil por ano”, disse a assessoria de imprensa. A prefeitura prevê a possibilidade de “realizar ações na faixa de areia, como a divulgação de eventos”.
Thaís Margarida, secretária de turismo do Guarujá, município que conta com 27 praias e é o segundo mais frequentado do litoral paulista, diz que a nova lei trará uma liberdade maior, e destaca a verba obtida com casamentos na praia, que poderá ir para o fundo municipal de turismo. Ela faz as contas: “Um casamento com seis bancos e um pergolado, cobramos uma taxa de R$ 1.500. A cada sábado, podemos ter dois, três casamentos por praia”.
A cidade de Fortaleza, no Ceará, está bastante adiantada com os planos de exploração econômica da orla. A prefeitura diz que já tinha a necessidade de gerir a sua praia, “já que em toda a sua extensão possui diversos serviços e atividades de comércio e realiza shows e eventos”. Há cinco anos, o município iniciou a construção de um polêmico aquário à beira-mar que foi alvo de protestos populares. Até hoje não foi concluído, apesar de ter consumido mais de 130 milhões de reais, e deve ser entregue à iniciativa privada.
Agora, a prefeitura da capital cearense quer ainda mais empreendimentos turísticos: “Os espigões da praia de Iracema e da avenida Beira-Mar receberão intervenções, como a roda-gigante de 60 metros de altura e heliporto em diferentes pontos. A roda-gigante é uma das iniciativas do programa de concessões e parcerias público-privadas (PPPs). A empreitada já possui investidores de empresas locais e do estado de São Paulo interessadas no projeto. O espigão do Náutico ainda terá um barco viking, carrossel e um café, incluídos na concessão”, explicou o governo municipal, por e-mail.
Para a prefeitura de Maceió, capital do Alagoas, a fiscalização será mais fácil, sendo possível até mesmo demolir ocupações irregulares. “Além de evitar a degradação ambiental, proveniente da edificação de obras em desacordo com a legislação pertinente, e redução dos problemas ocasionados pelo excesso de barracas, quiosques e outras construções que possam restringir o acesso à praia, ou causar poluição visual”, disse a assessoria de imprensa.
Maria Heloísa Beatriz Cardozo Furtado, da Secretaria do Meio Ambiente do Balneário Camboriú, em Santa Catarina, concorda: “A expectativa é de uma melhor ordenação e fiscalização dos espaços e usos da faixa de praia respeitando as características de cada uma delas”.
Questionada sobre possíveis usos econômicos, ela é taxativa: “Já existe exploração econômica nas praias. A transferência para o município da gestão já está permitindo maior controle e fiscalização desses espaços comercializados”.
Confusão e falta de fiscalização
Alguns dos especialistas e secretários ouvidos pela Pública demonstraram que a nova regra ainda traz muitas dúvidas.
“Essa coisa de praia urbana tem de ser por interpretação, há praias que têm estrutura de água e eletricidade, mas não entra carro, só barcos. A gente pode fazer uma interpretação e outro órgão ter outra interpretação”, diz Mário Reis, secretário de Meio Ambiente de Angra do Reis, município do Rio de Janeiro que possui mais de 2 mil praias, entre as quais “cerca de 20” se encaixam na nova legislação, nas suas palavras.
As incertezas não param por aí. “Há muitas dúvidas processuais ainda, como se existirá algum controle da SPU sobre esta implementação, sua eficiência”, diz o oceanógrafo Leopoldo Gerhardinger, que participa da rede Ouvidoria do Mar.
Gerhardinger explica que membros da sociedade tiveram apenas uma pequena participação das discussões sobre a portaria no Grupo de Integração do Gerenciamento Costeiro (GI-Geco), subordinado à Comissão Interministerial para Recursos do Mar. “O que nós conseguimos – que é o mínimo – foi que para poder ter essa concessão o município tem que ter o Projeto Orla. Queriam que passasse mesmo sem adesão ao Projeto Orla”.
O projeto Orla prevê um plano de ordenamento urbano das praias e estabelece a gestão com participação da sociedade civil e atuação de órgãos municipais e estaduais através de um Comitê Gestor da Orla. Seu papel é monitorar o uso que está sendo dado para as praias – ampliando a fiscalização e a participação da população.
As prefeituras têm até três anos para se adequar.
O prazo é longo demais na visão do arquiteto Luciano Roda, que é ex-coordenador de Gestão Patrimonial e ex-diretor de Destinação Patrimonial na SPU. Para ele, a “folga” pode permitir que abusos se tornem permanentes. “A regulamentação deu um enorme espaço de tempo para a elaboração dos planos de gestão, permitindo que absurdos se consolidem e perdendo a oportunidade ímpar para a implantação do Projeto Orla”.
É a mesma preocupação da procuradora da República Gisele Porto, que atuou na discussão da portaria. “Pelo visto alguns municípios estão assinando e ponto final. Não estão se preocupando em dar início ao cumprimento das exigências que levam tempo e têm prazo”, diz. Ela adverte ainda que “no momento existe uma grande pressão para que a SPU mude o termo e retire a exigência da implementação do Projeto Orla, que tem início no município”.
“Mas isso seria um escândalo”, completa.
A procuradora do MPF alerta que atividades permanentes que privatizem a praia continuam proibidas por lei.
Porém, não existe ainda nenhuma definição sobre como a SPU vai monitorar se as prefeituras estão cumprindo o seu papel e gerindo bem as praias, mantendo o uso público e o livre acesso como prioridade.
Procurada pela Pública, a SPU afirmou que irá “elaborar indicadores e metas básicas para acompanhar a situação das praias cuja gestão foi transferida aos municípios”, mas não indicou quando. A secretaria estuda ainda criar um grupo de trabalho para acompanhar a implementação da nova regra, mas não explicou como ele vai funcionar. “Suas atribuições e composição serão definidas na portaria que o instituir”, diz a nota.
Interesses privados
Outra das preocupações da sociedade civil é que a nova portaria incite um boom de privatização nas praias.
Para o secretário de Mário Reis, de Angra, isso não será um problema, já que grande parte dos condomínios que impedem o acesso às praias não está em áreas urbanas. “Nós, em Angra, combatemos a privatização de praias há anos, inclusive porque somos cobrados pelo Ministério Público. Vários condomínios antigos aqui tiveram que se adequar e, por uma ação do MP tiveram que fazer um TAC [Termo de Ajustamento de Conduta] e permitir o acesso público à praia.”
No entanto, ele admite que condomínios e hotéis que usam a praia como se fosse uma área privada vão, sim, entrar na nova lei. “Na Praia Grande, o acesso à praia é depois das propriedades, que são pousadas, restaurantes, o próprio hotel que limita e faz uma frente para si. Nesse caso, a nossa gestão vai ser com relação ao uso da praia, se o hotel vai poder botar espreguiçadeira, se vão poder botar mesas e cadeiras, se vai poder ter atividades esportivas, eventos.”
Na visão do arquiteto Luciano Roda, o principal risco é a falta de transparência. “A gestão sem o controle social pode gerar empreendimentos prejudiciais que gerem impactos e contrariem os interesses da maioria da população. Sem a pressão, a participação da sociedade e a transparência da gestão, com espaços definidos para a participação, a pressão do poder econômico corre fácil, possibilitando os abusos.”.