A conversa foi na Casa Pública, no Rio de Janeiro, e contou com Marco Aurélio Canônico, da Folha de S.Paulo, Eugênio Bucci, colunista da revista Época, Joana Varon, diretora da Coding Rights, e Ivana Bentes, pesquisadora da UFRJ. A condução da entrevista foi de Natalia Viana, codiretora da Pública.
Natalia Viana – O Eugênio Bucci me falava há pouco que decidiu nunca entrar no Facebook. Por que, Eugênio, você nunca quis entrar no Facebook?
Eugênio Bucci – Por um motivo político, que discuto abertamente, inclusive com as pessoas do Facebook. Considero o pacto que o Facebook nos propõe um pacto desleal. No Facebook, o usuário, que se acredita o beneficiário dos serviços, é o operário, a matéria-prima e a mercadoria. É um nível de acumulação e de produção de valor em uma escala que a gente não conhecia na história do capitalismo. Quando uma pessoa conta as suas histórias mais íntimas e as histórias que mais a mobilizam emocionalmente, afetivamente, ela está inserindo dados e mais dados em um sistema que vai transformar aquilo em valor econômico. A matéria-prima vem da biografia de cada pessoa. Quem digita, fotografa, edita e abastece também é essa mesma pessoa, e o que vai ser vendido é essa história e essa biografia, e a gama de desejos, as demandas que ela traz. Algumas pessoas falavam: “Como você pode dar aula em uma faculdade de comunicação se você não tem Facebook?”. Eu posso estudar, se for o caso, mas não preciso ter. É um pacto desleal, é um monopólio global, que atravessa fronteiras nacionais e que, para servir à democracia, terá que negociar com a democracia.
Natalia Viana – Abrimos com uma crítica forte ao Facebook, mas será que outras empresas, que também têm no seu modelo de negócios a venda de dados, como o Google, não são a mesma coisa?
Ivana Bentes – Eu ia perguntar se o Eugênio parou de ver televisão também porque a televisão vende audiência. Em menor escala, enfim, todos os grupos de comunicação trabalham de certa maneira com esse público. É claro que a dimensão do Facebook é distinta, mas queria lembrar, só para a gente também não demonizar o Facebook, o fato de não ter transparência nos algoritmos, no que aparece no meu feed de notícias. Não me parece que o Facebook seria uma novidade tão grande dentro das contradições do capitalismo e desses modelos, em relação a esse assujeitamento, que a gente vai encontrar em todos os muitos outros modelos de negócio de comunicação. Por isso, perguntei se você parou de ver TV também.
Natalia Viana – Em 2010, 2011, o Facebook, as plataformas ajudaram vários movimentos a se comunicar. Movimentos de rua, movimentos de ocupação. Naquele determinado momento, estar na internet, estar nessas plataformas, representava a liberdade, representava um mundo novo, representava a democratização da comunicação. De lá para cá, o que mudou? Por que hoje em dia a internet virou uma grande ameaça à democracia, sendo que menos de dez anos atrás ela era a grande salvadora da democracia?
Ivana Bentes – Eu acho que o que mudou foi justamente o uso, e aí, sim, um uso absolutamente assimétrico. Basta a gente ver o escândalo da venda dos dados, o uso dos dados para construir opinião pública artificial, o uso de robôs. Ou seja, uma série de usos que colocam em risco a democracia como a gente pensa. Você acha que a opinião pública está sendo construída de uma forma “espontânea”, e ela está sendo produzida, como o caso do “Queer Museu”, a gente viu as análises da FGV com 10% de robôs reproduzindo os tuítes e mensagens. Ou seja, a construção da opinião pública usando o aplicativo como o Voxer, como o MBL fez, automatizando discursos de ódio, massificando e difundindo mensagens de ódio, discursos absolutamente assujeitantes que colocam em risco essa ecologia da diversidade. A meu ver, isso realmente entrou em um outro patamar.
Natalia Viana – Só lembrando o que foi a questão do Voxer. O Voxer era um aplicativo usado pelo MBL em que os seus usuários permitiam que o MBL publicasse nos seus perfis em nome deles. Ou seja, aparecia um post que era escrito por um profissional do MBL como se eu tivesse publicado. Então, ele poderia escrever o discurso que fosse, calunioso, de ódio etc., sem passar pela aprovação do próprio usuário e do próprio perfil.
Marco Aurélio Canônico – Acho que mudou a escala, certamente. Eu concordo com o Eugênio: o grande duopólio da internet, Facebook e Google, vive de pegar as informações que a gente dá. Tem uma frase célebre sobre isso: “Se você não está pagando, você não é o cliente, você é o produto que eles estão vendendo”. A gente foi entrando nesse processo cada vez mais e abrindo mão de mais informação pessoal. Com isso, as pessoas também foram ganhando mais consciência. Hoje você entra no site e consegue ver tudo o que o Google tem de você, todos os passos que você deu. Eles foram se tornando cada vez melhores nisso, e a tendência é aumentar. Eles estão lançando assistentes pessoais, por exemplo, o Google tem, a Apple tem, o Facebook por acaso não tem. Eu me lembro de que, em 2010 ou antes, eram comuns reportagens do tipo você levantar tudo o que você podia dizer de uma pessoa só com o que estava na internet. E a pessoa não se dava conta. Acho que essas foram as principais mudanças.
Joana Varon – Concordo com todo mundo, acho que a gente não está discordando totalmente. Tem esses dois lados, tanto do Facebook quanto de outras redes sociais, de teoricamente aumentar o alcance de conteúdos que você produzia antes. Mas, olhando a história da internet, também a gente sofreu, a gente começou movimentos de direitos digitais pensando em Creative Commons, acesso ao conhecimento, a internet como essa potência para a gente poder encontrar tudo, e era um movimento feliz. Teve aquele filme Remix Manifesto, que a gente tinha o Ministério da Cultura aqui bombando com o Gil, com Pontos de Cultura. Cultura digital era a palavra. E aí Snowden, vigilância, depressão, distopia. E agora? A internet é a ferramenta da vigilância e da manipulação de mentes.
Natalia Viana – Você marca o escândalo do Snowden como um momento em que mudou essa visão?
Joana Varon – Acho que um pouco sim, porque deixou bastante clara a conexão das empresas, do capitalismo e da vigilância. Mais gente começou a falar mais de privacidade, desenvolvedores mesmo, ali no nível da arquitetura da rede. A internet foi criada para conectar, as páginas antes eram HTTP, não tinha criptografia nem nas páginas, agora tem tudo HTTPS. Esse “S” é o cadeado e é uma mudança no nível do código que faz com que o trânsito seja criptografado. Então, as pessoas começaram, no nível dos protocolos, a pensar em segurança e privacidade e a debater mais. “O que essa manipulação de dados pode trazer?” Era claro que isso estava sendo usado para marketing direcionado, publicidade direcionada para venda de produtos. A Cambridge Analytica deixou claro que isso também é usado para fins políticos. A gente tem hoje esses monopólios, e concordo que a gente vive um colonialismo digital pelo poder dessas grandes plataformas, que foram criadas com a lógica do Vale do Silício, com a lógica do homem branco puritano americano.
O Facebook foi criado dentro de Harvard para fazer ranking das meninas mais bonitas, e foi daí que surgiu essa plataforma. Concordo que a gente tem esse momento e esse problema que essas plataformas são um monopólio. E, por outro lado, a gente tem que buscar alternativas de plataformas que têm, no seu desenvolvimento, na sua concepção, outros valores e outras tropicalidades.
Natalia Viana – Eu entendo que tenha uma corrente que diz “vamos buscar outras plataformas”. Por outro lado, essas plataformas estão aí: o Facebook tem 2 bilhões de usuários. Dá para conter o Facebook? O mundo caminha para conter não só o Facebook como o Google? Caminha-se para uma regulação dessas empresas? O que vai acontecer?
Eugênio Bucci – Acho que existe a pauta desse debate. É interessante, talvez você saiba mais disso, o que vem acontecendo na União Europeia, porque pode parecer difícil de visualizar, para nós, o que eu vou dizer agora. Facebook e um pouco o Google – “um pouco” porque há diferenças – são grandes negócios supranacionais, eles são globais, se estruturam como monopólios que detêm os seus mercados através e por cima das fronteiras nacionais. O que isso significa? Uma legislação nacional não dá conta de abraçar esse objeto e regulá-lo. Não dá conta de proteger direitos.
A contradição que essa situação do Facebook nos coloca é uma contradição entre o poder do capital em um grau nunca alcançado e a privacidade individual. Privacidade é necessária para a constituição do sujeito, não há subjetividade se não houver privacidade. Nós aprendemos a pensar a proteção da privacidade contra o Estado. Nós temos hoje um grau de invasão dessa privacidade, promovido por uma indústria e por uma tecnologia, que passa por cima das proteções individuais. Porque a legislação nacional não consegue encarar esse objeto e não consegue regulá-lo. Se a legislação nacional não consegue, o que pode fazer frente a isso? Em parte, entidades como a União Europeia ou, em parte, acordos multilaterais. A democracia pautou esse debate, ele vem ficando mais forte, mas depende de acordos internacionais para se fazer acontecer, e acredito que poderá acontecer. Eu queria fazer uma comparação rápida, se a Natalia me permitir. Mas o que houve com a televisão e com o rádio? O rádio, a televisão, quando aparecem… por exemplo, na Europa, a televisão era um meio de comunicação de empresas públicas. A maior parte dos canais da França, Inglaterra, Reino Unido, Alemanha, Espanha, Portugal, Itália em parte, Suíça, eram emissoras públicas, que não faziam comércio. Não faziam comércio com os dados. Nos Estados Unidos, a televisão é muito forte, mas ela nasce fortemente regulada pela FCC, que é a Comissão Federal da Comunicação. E, também nos Estados Unidos, surgem emissoras de TV públicas. Elas estão em sintonia com as exigências da democracia. Por quê? Porque estão tratadas, regulamentadas, organizadas. Por que há três redes de televisão nos Estado Unidos? Porque foi uma determinação legal. Isso, estou falando dos anos 1950, 1960.
O que acontece hoje com esses conglomerados gigantescos, cujos valores se aproximam de US$ 1 trilhão? Agora mesmo estava comentando: talvez no próximo período, a Apple, que é hardware, mas também é software, se aproxime do valor de US$ 1 trilhão. Esses conglomerados passam à margem de qualquer legislação. Então, a democracia está percebendo isso, mas ainda não dispõe dos instrumentos para regular e para enfrentar esse objeto.
Joana Varon – O que acontece também é que o modelo de negócio do Facebook e do Google caminha em paralelo com a agenda internacional americana. Então, mesmo nos fóruns internacionais, a posição dos Estados Unidos para qualquer regulação mais ampla que pegue essas plataformas vai estar alinhada com a visão dessas empresas; inclusive, representantes dessas empresas vão nas delegações americanas da ONU e botam mesmo o que elas querem. A União Europeia pode fazer frente, sim, e eu acho que depois do escândalo da Cambridge os Estados Unidos vão ter uma pressão para ter uma Lei de Privacidade mais forte. O Brasil não tem uma Lei de Privacidade até hoje, uma Lei de Proteção de Dados. E uma lei assim é importante, mesmo que as empresas sejam de fora, para que a gente tenha alguma capacidade de jurisprudência.
Ivana Bentes – Acho que a gente tem que incluir nessa discussão da segurança os dados dos governos. Porque, primeiro, a venda de dados não começou com a internet. A gente sabe hoje que a Serasa tem todos os nossos dados. Os cartões de crédito sabem tudo o que nós consumimos. Vocês acham que esses dados não são passados para lugar nenhum? Os bancos de e-mails, o telemarketing que invade o seu celular, que a gente recebe telefonema sábado, domingo, vendendo coisas. De onde vem esse acesso? Não foi nem do Google nem do Facebook. Acho que a gente tem que ampliar essa discussão. De novo, há muito tempo eu deixei de ser nacionalista, acho que tem lutas que são globais e que atravessam de maneira transversal. Então, a questão da segurança de dados, a questão da governança, inclusive, dessas plataformas, a meu ver, está para além da discussão “eles” e “nós”, porque efetivamente esse tipo de ação acontece cotidianamente pelos governos. Vocês têm confiança com os nossos dados recolhidos pelo IBGE? Fico imaginando agora, nesse governo bastante complicado, o que é possível fazer, inclusive eleitoralmente, com esses dados. Esses dados sempre foram usados. De forma política, nas políticas públicas.
É muito recente a questão da transparência, a lei de transparência de dados, do acesso aos dados do Estado, mas o Estado sempre teve acesso absoluto aos nossos dados. Então, acho que há uma inconsciência da sociedade em relação à questão da segurança dos seus dados. A carteira de identidade agora digitalizada, ou seja, uma quantidade gigantesca de dados em uma mesma plataforma. Então, toda e qualquer plataforma, independente de Google, Facebook, governo, que concentra nossos dados, dados privados, dados de dívidas, econômicas, de vacina, é absolutamente problemática.
Natalia Viana – O escândalo dessa técnica ter chegado à política é realmente tão grande? Ou será que o escândalo já acontecia e só porque não tinha tocado no establishment americano não era discutido? De fato, fake news é a grande ameaça à democracia ou há um pouco de histeria nessa discussão?
Marco Aurélio Canônico – Entendo seu ponto, são duas coisas distintas. Acho difícil a gente calibrar ainda o quanto um é mais problemático que o outro. Que as fake news são problemáticas, não há dúvida disso, e que o uso político de dados, de likes… a partir do like você consegue traçar o perfil e consegue direcionar a propaganda política. Mas não sei se a gente tem como fazer essa métrica agora.
Ivana Bentes – As notícias falsas sempre existiram, as notícias falsas no âmbito eleitoral também são uma tradição no Brasil. Aquela famosa capa da Veja um dia antes da eleição, o boato no WhatsApp dizendo que o doleiro foi envenenado… suspenderam o Bolsa Família. Enfim, uma quantidade gigantesca de informações que já circulam, ou seja, a produção de fake news no Brasil tem uma tradição sólida, larga, e principalmente nesse âmbito eleitoral, com a participação das grandes corporações, mídias em maior ou menor escala. O que acho complicado é a gente só conectar fake news com a rede. Exatamente esse lugar onde todos produzem, eu produzo. Nós temos mídias alternativas. Então, acho que começou a se construir um discurso, me parece, muito problemático: “Notícias seguras somos nós, as mídias corporativas, profissionais, e o jornalismo profissional; as fake news vêm do resto”, ou seja, da sociedade, das outras mídias, dos outros portais. A gente tem que tomar muito cuidado com isso.
Fiquei muito feliz quando, por exemplo, a Globo e o Fantástico entraram no combate às fake news contra a Marielle. Foi o primeiro momento no Brasil em que nós tivemos uma mídia corporativa que entrou pesado desqualificando aqueles memes que a articulavam com o tráfico, e foi muito importante essa associação rede, mídias corporativas. Mas sempre, ao final das notícias, vinha este sermão: “Consumam apenas as nossas notícias, que são as mais verdadeiras e as mais legítimas”. Não é isso. E aí eu volto à potência do Facebook. O problema não é a potência de automação. E acho que as outras mídias e o cidadão devem ter o poder de massificar, de difundir e de automatizar, tal qual as corporações, a sua produção de notícia, de informação e a sua disputa de mundos, inclusive com os robôs. Podemos pensar em “robô-cidadão”, um robô que difunde mensagens de direitos humanos contra o ódio. Ou seja, o problema, de novo a meu ver, não está na tecnologia, mas no uso e na governança que a gente faz dessa tecnologia. Nesse sentido, eu sou superfã de todas as automações, até do Voxer usado para o bem.
Natalia Viana – Marco Aurélio, queria que você falasse se a Folha realmente se vê com essa distinção entre o jornalismo e as redes. E queria que você contasse como foi essa decisão da Folha de sair do Facebook.
Marco Aurélio Canônico – Antes disso, eu ia perguntar para a Ivana, e nem ia perguntar como provocação nem pegadinha, é realmente uma curiosidade: você acha que a definição do que é fake news está clara hoje para o público em geral? Porque eu acho que isso vem sendo deturpado. Por exemplo, o Trump fala muito de fake news para se referir às notícias com as quais ele não concorda, que são contra ele.
Natalia Viana – Vamos fazer um teste: o que é fake news para você?
Marco Aurélio Canônico – Fake news é uma notícia claramente fabricada, uma notícia que nem tenta ser jornalística. É uma fabricação pura e simples. Acho que há notícias que contêm erros – nós erramos, jornalistas erram –, e uma notícia errada – a Folha erra todo dia, como os demais veículos de imprensa – não é fake news. O fato de que a notícia está errada é uma outra coisa. Você errou em uma informação, você pode errar em uma informação. Isso não é o que define fake news. O fato de uma notícia ser contrária ao seu ponto de vista, de estar defendendo um ponto de vista do qual você discorda, também não é o que é fake news. Você pode ter uma entrevista com um candidato que defende um determinado ponto de vista ou defende determinada posição política. E acho que começou a se generalizar o conceito de fake news que é basicamente “fake news é o que eu não gosto”. Eu não concordo. Então, a minha dúvida na verdade é esta: vocês acham que esse conceito do que é fake news está bem compreendido, que hoje a gente fala, entende o que é fake news?
Natalia Viana – Tem uma pesquisadora americana, a Claire Wardle, que diz que esse conceito não deve ser usado; a União Europeia também diz que não deve ser usado. Porque na verdade existem muitos tipos de desinformação. Voltando à pergunta: você percebe ou você vê que a Folha tem uma visão de que há um lugar do jornalismo?
Marco Aurélio Canônico – Claramente. Vocês devem saber, a Folha contratou a Lupa para, inclusive, fazer fact-checking. Então, a questão do fact-checking e da conferência, isso é uma outra coisa. Evidentemente, há uma série de regras do fazer jornalístico, ele comporta uma série de regras, é uma técnica. Há toda uma maneira de você fazer uma apuração jornalística. Nós somos pautados por uma constituição, no caso o Manual de redação da Folha.
Para dar um exemplo do que eu quero dizer da questão Folha/Facebook. A Folha tem 5,9 milhões de seguidores no Facebook. Disso, a maior parte da audiência da Folha ainda é orgânica, ou seja, não são as pessoas que acessavam na página da Folha, mas são as pessoas que postavam os links e as reportagens da Folha.
A maior audiência que era direcionada para a Folha sempre foi uma audiência orgânica, nunca foi audiência da própria página. Dos 5,9 milhões de seguidores que a página tinha, isso gerava 2%, 3% de audiência. Por que isso? Porque o Facebook tem o algoritmo dele, que você nunca sabe para onde vai, mas que você sabe claramente que está reduzindo o peso das notícias jornalísticas. Isso a gente já vem sentindo desde 2015. Foi em 2015 que teve uma primeira mudança de algoritmo, e de lá para cá a gente já veio sentindo a queda de audiência de notícias jornalísticas da Folha no Facebook. E, paralelamente, a Folha fez essa métrica, estava escrito na reportagem: quando o jornal anunciou a saída do Facebook, a Folha anunciou que fez essa medida.
De outubro a janeiro, a quantidade de interações com páginas de fake news subiu 62%, enquanto a quantidade de interações com páginas de veículos de imprensa caiu 17%. Então, é um problema que já vinha se desenhando. E foi nesse cenário que a Folha decidiu se desligar do Facebook.
Natalia Viana – Desde a decisão da Folha, o que mudou? Mudou alguma coisa na audiência que chega na Folha?
Marco Aurélio Canônico – A audiência diminuiu, mas não significativamente por conta disso que eu disse. A audiência já vinha diminuindo, e a maior parte da nossa audiência é orgânica, continua sendo orgânica, não é desses 5,9 milhões de seguidores que a Folha tem lá na sua página. Quando a Folha tomou essa decisão, um dado que eu posso dar é: o Facebook já era a quarta fonte de audiência online para o jornal. Muito distante das três primeiras. Então, a decisão é multifacetada. Ela tem pelo menos três aspectos principais: tem esse aspecto de “bom, já não é um bom negócio para a gente, a gente não está tendo mais a audiência que a gente tinha porque eles alteraram o algoritmo deles”; tem uma posição política, digamos assim, do jornal, que entendeu que o Facebook passou a ser um lugar que não valorizava o bom jornalismo com a mudança de algoritmo. E há incontáveis declarações do Mark Zuckerberg nesse sentido. Ele foi muito questionado pelos jornalistas do mundo inteiro.
E, por fim, não sei o quanto vocês conhecem do Facebook, mas eles lançaram há uns dois anos o Instant Articles, que é uma ferramenta para carregar mais rápido os textos. Em geral, quem é usuário nem se dá conta disso. Isso é uma coisa que os jornalistas conhecem mais, mas o usuário nem vê. A maior parte dos textos jornalísticos que você vê no Facebook, quando eles carregam rápido, é porque estão dentro do Instant Articles. É uma ferramenta que o Facebook criou e a que a imprensa brasileira aderiu como um todo – a Folha foi a única que não aderiu – para acelerar o carregamento. Isso evidentemente dá mais audiência, a página fica mais limpa, mais clean, carrega mais rápido. E isso faz muita diferença na audiência das matérias jornalísticas online.
A Folha não aderiu, e aí, de novo, é uma diferença básica do princípio que o jornal tem, da estratégia digital do jornal, que é: a Folha acredita no pay wall, a Folha acredita que o jornalismo só vai se sustentar na internet com assinantes, com gente pagando. A publicidade não cobre o suficiente do fazer jornalístico, até porque a publicidade está largamente dominada pelo Google e pelo Facebook. Então, a Folha é um jornal que tem pay wall. E o Instant Articles não permite pay wall, ele é aberto, é de graça. O que aconteceu paralelamente? Vocês devem lembrar: o Google lançou uma ferramenta semelhante, o AMP, e a Folha está lá, porque lá ele permite o pay wall.
Natalia Viana – Pelo que você mesmo falou, o impacto da decisão do Facebook para a Folha não foi tão grande. O impacto para a Folha não foi tão grande também porque a Folha não saiu do Facebook, a Folha não deixou de colocar, por exemplo, botões de compartilhamento do Facebook nas suas matérias. A decisão da Folha foi muito mais política, foi um anúncio que é uma discussão que a Folha já faz há muito tempo. Nisso, eu queria voltar um pouco à questão que a Ivana trouxe, que é: também a Folha tem pautado muito a questão do jornalismo profissional, ou do bom jornalismo. Ou seja, “essa plataforma não prioriza o bom jornalismo”. Queria que você deixasse mais claro o que é que você vê. E você também falou que “quem faz jornalismo não tem tanto impacto”, mas queria lembrar, por exemplo, que Mídia Ninja em 2013 teve um impacto gigantesco.
Marco Aurélio Canônico – Não é impacto, é alcance. O alcance varia. Jornalismo ainda continua sendo uma coisa muito cara de fazer. Me parece um tanto um mito – e é a minha opinião pessoal, não é a do jornal – essa coisa de que é óbvio que ficou mais fácil, mais acessível e você consegue divulgar, você não precisa imprimir ou ir para a frente de uma televisão. Qualquer um pode fundar um grupo etc. Mas fazer jornalismo, principalmente jornalismo de âmbito nacional, é uma coisa extremamente cara. Quem são os grupos que estão cobrindo os grandes temas? O que aconteceu foi muita gente cobrindo nicho, cobrindo coisas locais, coisas pontuais, que é o que dá para fazer com uma equipe de cinco, dez pessoas. Porque para você ficar viajando, mandando gente para o exterior, mandando gente para rodar o país etc. é caro. É caro fazer jornalismo de qualidade.
Ivana Bentes – Então, você está falando que bom jornalismo é poder econômico, né? De certa maneira também.
Marco Aurélio Canônico – Não, é possível fazer bom jornalismo em um escopo menor, que é economicamente mais viável. Por exemplo, a Folha é um jornal de ambição nacional, mas não tenho dúvidas de que um jornal de “n” cidadezinhas do interior, ou mesmo da capital, um jornal do Belém cobre o Belém melhor do que a Folha cobre. Se você tem ambições maiores, você não consegue sustentar isso se você não se banca. Ninguém achou a fórmula para se bancar. A gente tem exemplos de gente que está fazendo por assinatura etc., mas o escopo, de novo… Tem muitos bons exemplos de jornalismo sendo feitos em um escopo menor, gente que não cobre cultura, mas cobre Justiça, gente que cobre política, mas não cobre esporte, ou que cobre esporte, mas não cobre outras coisas. O que os grandes veículos de mídia fazem é uma tentativa de você ter um cenário muito mais amplo. É uma cobertura muito mais complexa e muito mais cara nesse sentido, mas a qualidade não está associada necessariamente e diretamente ao poderio econômico.
Ivana Bentes – Claro que, obviamente, fazer bom jornalismo é caro. A gente tem as formas de financiamento das mídias pequenas, tem novos modelos, inclusive, de financiamento, agências, a Pública, o crowdfunding, o próprio usuário financiando, a Ninja etc. Mas, óbvio, a gente lutou durante muito tempo, e perdemos essa batalha da democratização das verbas publicitárias. O governo hoje sustenta as corporações de mídia em partes. As verbas publicitárias milionárias do governo vão para as grandes corporações. Então, a democratização das verbas publicitárias que vão para a grande mídia hoje faria florescer uma quantidade gigantesca de outras mídias. Então, isso é concentração de poder, sim, e essa capacidade de investigação e de bom jornalismo tem, sim, relação com poder econômico. Isso, para mim, é muito claro. Essa democratização das verbas publicitárias é uma discussão que a gente faz.
Eu sou diretora da Escola de Comunicação, sempre fui contra a exigência de diploma para você exercer jornalismo. Jornalismo é importante demais para ficar na mão dos jornalistas. Então, essa disseminação, essa ruidocracia – na verdade, a gente nunca teve uma velocidade tão grande de desmentidos, de correção de notícias feita por usuários. A gente descobriu que, em vez dos cinco críticos d’O Globo ou da Folha de S.Paulo, tinha mil com igual capacidade de repertório, de análise. Achávamos que a Barbara Heliodora, no Rio de Janeiro, era a única capaz de falar de teatro. Descobrimos que tinha mil Barbaras Heliodoras.
Mariana Simões – Voltando para o algoritmo. No início do Facebook, tinha pessoas elegendo quais eram as matérias que iriam aparecer no news feed, até que o robô pudesse transformar aquilo em uma coisa automatizada. Como a gente pode responsabilizar o impacto que esse tipo de modelo de negócio tem na política e na sociedade?
Joana Varon – Hoje a gente vive a lógica do like. Like, share, like, share. E isso é um jeito de consumir pessoas, fatos da vida e interação social que virou padronizado porque um dia veio uma plataforma, te colocou isso na frente, e aí virou a sociedade do like. Não sei muito bem como é ser criança e adolescente crescendo com isso quantificado. E o modelo do jornalismo foi indo para essa lógica, que foram essas plataformas que colocaram, que é do clickbait. Então você vai pensar como publicar as coisas para ganhar mais like também. Em cima disso, cada um está ali na sua bolha, no seu filtro-bolha que a própria plataforma criou, e, no caso do Facebook, vai experimentando com isso. Já fizeram um estudo testando se eles conseguiam mudar o humor dos usuários. Eu não gosto dessa palavra “usuário” porque é uma palavra do Vale do Silício, mostrando justamente que o que eles querem com as plataformas, com os produtos deles, é viciar as pessoas. Pegaram dados dos cidadãos que estão ali e foram vendo se você está deprimido, se você coloca notícias mais assim, se você consegue mudar o humor da pessoa ou não. Eles fizeram esse estudo há uns anos, velado, ninguém sabia que estava sendo cobaia. Já mostra essa intenção de testar como funciona a mente humana na relação com a interface que eles colocam. E aí o que tem por trás disso? Todo esse debate da transparência dos algoritmos, que é um debate difícil porque, por um lado, eles vão falar “mas é um segredo industrial porque todo mundo quer hackear o nosso algoritmo para aparecer mais”. E isso com o Google também, e vários outros. Mas, por outro, você não sabe mais por que você está consumindo, a sua dieta de notícias aparece ali, você não sabe por quê.
De novo, eu não acho que o Facebook e essas plataformas têm solução, e temos que ir para outras coisas com outras lógicas e outras formas de interação que não é like ou share, mudar essa dinâmica. Mas queria dar uma hackeada e perguntar para o Marco Aurélio: a Folha optou por tirar o perfil, mas a Folha continua lá porque todo mundo publica a Folha lá e tem o botãozinho do Facebook. Mas essa mudança o Facebook fez para priorizar “interações significativas” – eles usaram um termo assim. Interações significativas é a sua prima postando um neném, e não a Pública postando sobre intervenção militar no Rio de Janeiro, então vamos priorizar o neném, os gatinhos, que aí, quem sabe, as pessoas vão estar com menos ódio e vão voltar a gostar do Facebook. Acho que isso é que está por trás da cabeça do Mark.
Natalia Viana – Se a algoritmização da sociedade é uma ameaça à democracia, o que nós devemos fazer?
Eugênio Bucci – Vamos dizer que os algoritmos atuam na distribuição de mensagens políticas. Atuam aí. Isso nós já sabemos. Atuam no estabelecimento de barreiras, impondo um impedimento de acesso de um determinado grupo a uma determinada informação que está do lado de lá, tudo isso matematicamente. O algoritmo, então, é o eleitor? O algoritmo vai votar? O algoritmo vai substituir o cidadão? É evidente que esse tipo de discussão carece de uma checagem objetiva, com métodos próprios e que possam estabelecer um critério mínimo não do que é verdade ou do que é “a” verdade, mas que possam estabelecer parâmetros de verificação de fatos. Hoje está acontecendo uma reunião aqui que tem “x” pessoas, que começou tal hora e terminou tal hora, em que foi falado isso e aquilo, esse tipo de verificação. Nesse sentido, a combinação da presença do algoritmo, que favorece o isolamento de certas opiniões, com a ausência de métodos de checagem universalmente acessíveis, essa combinação corrói, sim senhor, sim senhora, as chances da democracia.
Joana Varon – Acho que a gente está aqui porque também ama a tecnologia, usa, se apropria, se empodera com tecnologia. Na Coding Rights, a gente tem um projeto que chama “o Chupadados”, em que a gente traz histórias em que problematiza essa coleta massiva e a formação de perfis por dados, e como isso pode levar à segregação. Mas, também, ter uma visão de algoritmos, de inteligência artificial que seja só distópica, acho que é triste. Mas o que a gente tem que pensar? Os algoritmos são processos matemáticos, mas são concebidos por humanos. Então, se você for me perguntar “qual é o algoritmo da Joana de manhã?”, ah, vai vir meu gato, vai bater no meu nariz, eu vou acordar, ou vai tocar o despertador e eu vou tomar café e tomar banho. Se eu pegar o meu algoritmo e passar para você e você tiver alergia a gato, você já morreu com o meu algoritmo de manhã, porque o gato vai espalhar na sua cara. Então, a gente tem que pensar que os algoritmos vêm com valores, que é o caso do Facebook. O algoritmo foi concebido e os valores que estão embutidos ali não são apenas valores matemáticos, mas são valores éticos, humanos, desumanos…
Então, a resposta da pergunta da Natalia não é uma resposta imediata, não dá para conectar “algoritmos vão acabar com a democracia”. Eles podem ajudar a democracia, depende de que valores você vai embutir aí.
Marco Aurélio Canônico – Você não acha que isso vai ficar cada vez mais sofisticado? Porque hoje as fake news são muito primárias. É uma coisa que basicamente com bom senso e educação você consegue discernir. Isso vai chegar a um nível em que você não vai conseguir discernir realmente o que é real, e a coisa vai começar a ficar perigosa.
Joana Varon – Em defesa dos algoritmos, da matemática, da ciência, a gente pode pensar algoritmos para limpar o lixo, depende da finalidade. Se for pensar algoritmo para enganar as pessoas, que isso aqui é falso ou verdadeiro, pode fazer também. Mas é o que eu estou falando: não é essa ferramenta e essa tecnologia em si o problema. É a intenção.
Eugênio Bucci – A questão aqui não é o algoritmo ou não. Tem gente que diz, como você acabou de dizer, que os algoritmos estão na natureza, são sequências de decisões. Mas você falou “o meu algoritmo de manhã”, com seu gato e tudo.
Joana Varon – Sou eu com as minhas decisões que se repetem. Que não estão na natureza, estão na minha cabeça.
Eugênio Bucci – Isso, são decisões que você toma. Mas tem gente que diz que os organismos vivos são algoritmos. É uma discussão que não vem ao caso. Mas o que eu queria lembrar é uma coisa que tem tudo a ver com a nossa discussão de hoje. Não se trata do algoritmo bom ou mau, trata-se antes de um algoritmo completamente fechado. Esse é que é o problema. Você precisa acreditar em alguém que está dizendo que ele vai ser empregado para o bem. Mas nós não sabemos o que é o bem na cabeça dessa pessoa, e o algoritmo não é transparente, ele é código completamente fechado. Então, este é o problema da democracia: nós não temos acesso às regras matemáticas que estão determinando o fluxo das mensagens e das informações. Então, nós não podemos discuti-las. Essa é que é a questão. Porque é claro que um algoritmo pode ser empregado para apressar diagnóstico em uma doença crônica em uma determinada sociedade, ele pode limpar o lixo, melhorar o trânsito, aumentar o tráfego aéreo em eficiência e tudo mais. Mas, em todos esses casos, a sociedade democrática precisa entender como ele está sendo feito. Então, o algoritmo tem um dono, e o que isso quer dizer? Que os nossos movimentos informacionais estão governados por leis que nós não dominamos e que nós somos submetidos a elas. Essa é que é a questão.