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Casa Pública

O Brasil no divã

A psicanalista Maria Rita Kehl e o cientista político e antropólogo Luiz Eduardo Soares discutem os possíveis rumos do país a partir da eleição de Jair Bolsonaro

Casa Pública
23 de novembro de 2018
14:00
Este artigo tem mais de 6 ano

Comandada por Marina Amaral, co-diretora da Agência Pública, a entrevista a seguir discutiu a atual conjuntura do país, os fatores que levaram à nomeação de Jair Bolsonaro (PSL) à Presidência e os rumos políticos do Brasil a partir das eleições.

Sob uma perspectiva psicanalítica, social e cultural os entrevistados avaliaram os motivos que levaram o Brasil a dar essa guinada à direita. Para Maria Rita Kehl, uma parte desse conservadorismo se deve ao atraso do país em reconhecer direitos básicos, como os direitos humanos. Kehl, que integrou a Comissão Nacional da Verdade (CNV) – instituída pelo governo brasileiro para investigar os crimes cometidos por agentes do Estado na ditadura militar – atribui a falta de reconhecimento da sociedade em relação a violação direitos humanos à instauração tardia da Comissão. Segundo ela, o fenômeno que acompanhamos hoje é um retorno do recalcado – termo utilizado por psicanalistas para descrever condutas reprimidas que foram “expulsas” da consciência ou do comportamento, mas que voltam a aparecer.

Para Luiz Eduardo Soares, antropólogo e cientista político, essa relativização se dá porque a ditadura brasileira não teve um desfecho. De acordo com Soares, essa história continua aberta por causa da natureza autoritária do desenvolvimento do país. Na percepção do antropólogo, essa falta de reconhecimento acontece porque o país não passou por uma “revolução democrática”.

Marina Amaral entrevistou Maria Rita Kehl e Luiz Eduardo Soares

Marina Amaral – Qual é a sua sensação diante da conjuntura política atual?

Luiz Eduardo Soares – Acho que é uma insegurança ontológica que gera um pavor, a perda de referências, e a reação passa a ser muitas vezes violenta. A diarista que me ajuda em casa é uma fiel da Igreja Universal. Ela me mandou, por ocasião das eleições, para justificar o voto dela, um videozinho e disse: “Agora o senhor vai compreender por que eu estou certa. Quem sabe o senhor se sensibiliza”. E o videozinho era de um exorcismo, que é uma prática regular na Igreja Universal. Nesse exorcismo o demônio se manifesta: “Não, não é possível que certa pessoa vença, porque serei expulso do país, serei expulso deste território”. “Mas que pessoa é essa?”, pergunta o pastor. E a pessoa possuída diz: “Eu preciso que o pessoal do barbudo que está preso vença, o outro não, porque ele vai me expulsar do Brasil”. Até que o pastor forçou tanto que a possuída pronunciou, não em vão, o nome do seu candidato, nosso presidente eleito, Jair Bolsonaro. Então, não haverá o demônio entre nós. Isso significa tantas coisas, mas, entre elas, é curioso como isso promove uma circunscrição do mal, porque está ali, naquela cena. Ele é identificado, ele elege, pode ser, inclusive, editado. É um ritual de expiação usual. Nos rebanhos, você escolhe a ovelha a ser sacrificada, e ela, então, concentra em si todo o mal da comunidade e pode ser, portanto, expulsa daquele convívio. Nós estamos numa guerra muito mais ampla, profunda, multidimensional e mitológica do que aquela mais imediata que se apresenta para nós.

Marina Amaral – Você fala que o problema não é o ódio, não é o fato de se viver o ódio, mas é você não ter como trabalhar o ódio politicamente. Aí chega a falar em psicopatia do país. Queria que explicasse um pouco essa ideia.

Maria Rita Kehl – Então, interessante que o Luiz Eduardo foi mais psicanalítico do que eu… Eu estava aqui pensando em dados históricos: o atraso do Brasil, a escravidão, a resistência, como continua existindo uma casa-grande e senzala. E você foi no inconsciente. Eu acho que a questão não é o afeto. Freud diz que a gente não reprime os afetos. A questão é o que você faz com o seu afeto. Todos nós temos ódio de alguém, de alguma situação. Casais que se odeiam [por exemplo] e depois deixam de se odiar e [depois] se odeiam de novo. Enfim, o afeto a gente não impede. O que acontece, o que a cultura faz, o que a política faz, o que a chamada civilização, quando ela funciona, faz é promover destinos onde esse afeto possa se tornar uma potência de ação, e não de destruição. Quer dizer, o meu ódio nesta eleição serviu para eu tentar fazer campanha, serviu para eu tentar mobilizar, mudar pessoas. Não deu muito certo, mas enfim. Então, o problema não é você sentir ódio. Historicamente tem coisas detestáveis no Brasil. Nós fomos o último país, tirando Cuba, que acho que era uma colônia, a abolir a escravidão. Então, é um país que perpetua a sua injustiça, a sua desigualdade, a sua irresponsabilidade com os próprios brasileiros que tiveram menos condições.

A sociedade brasileira se formou sempre com um enorme pé no atraso, e o atraso de que eu estou falando aqui é, especificamente, em relação a direitos humanos.

Acho que, em parte, essa onda obscurantista que a gente está vivendo agora – em parte, estou dizendo das coisas que eu ouvi na rua – tem a ver com o trabalho da Comissão da Verdade, porque o Brasil não teve Comissão da Verdade assim que acabou a ditadura e foi o único país que fez uma anistia para os dois lados.

Ficou a impressão de que a ditadura fez mais ou menos a mesma coisa que a esquerda na época. Durante a Comissão – e como a Comissão de vez em quando aparecia na televisão –, às vezes vinha alguém, na fila do metrô, do cinema, e me reconhecia: “Ah, vi a senhora [na] Comissão da Verdade”. Bom, dessas pessoas que me reconheceram 10% falaram: “Que legal, bom trabalho”. Os outros falavam assim: “E o outro lado, vocês não vão investigar?”. Aí eu falava: “Mas que outro lado?”. “O lado das pessoas que a esquerda assassinou.” E eu falei [que] isso não precisa ser investigado, que isso foi tornado público e as pessoas, mesmo quem não matou ninguém, toda a esquerda que tentou militar, pegar em armas, foi presa, torturada e alguns já foram punidos com pena de morte, sendo que no Brasil não tem pena de morte. Mas a pessoa não queria ouvir.

O que eu quero dizer é que, de lá para cá, é uma espécie de horroroso retorno do recalcado – para falar um pouco de psicanálise, já que [o evento é] “Brasil no Divã”. Coisas que nós pensávamos que nunca mais iríamos ouvir – principalmente alguém dizer em público, principalmente um candidato, principalmente um governante – voltaram, e voltaram com pouca reação de indignação da sociedade brasileira. Então, acho que a gente está num momento de retorno do recalcado do pior tipo.

Marina Amaral – Você vê essa ligação, Luiz Eduardo?

Luiz Eduardo Soares – Acho que a Maria Rita está certíssima. Esse é o ponto decisivo. O Mandela falava em verdade e reconciliação. Nós passamos para a reconciliação, como se isso fosse possível, varrendo a verdade para baixo do tapete e não olhando nos olhos da barbárie, que é responsabilidade nossa, nacional, claro que implementada pelo poder militar. Se chama civil-militar. Eu continuo com o “military”, porque o “civil” está sempre presente. Mas as barbaridades, as covardias todas… o passado está absolutamente presente, formando essa sensibilidade. Eu vi um pequeno relato de um pequeno documentário de YouTube em que o sujeito da cidadezinha que votou no maior número relativo pró-Bolsonaro dizia assim: “Tortura, houve tortura, sim, mas devem ter merecido, né?”. Coisas desse tipo, que informa, que autoriza a prática do genocídio dos jovens negros e pobres nas periferias nossas até hoje. “Devem ter merecido, receberam o castigo que importa.” Eu digo: “[que] Bom, você não pode tolerar isso, mas caso tolere e pondere você dirá ‘não, mas esse sujeito não estava envolvido com absolutamente nada, tava vendendo pizza’. “Ah, tá, você quebra alguns ovos para fazer omelete.” E eu costumo dizer aos secretários de Segurança, que reiteram sempre essa frase absurda, desde que os ovos não sejam os seus filhos. Isso é uma coisa difícil de compreender, se nós não reconhecermos exatamente o fato de que são esses valores que continuam em curso. Uma sociedade escravagista, tão profundamente racista, desigual em tanta profundidade, e que não fez ainda a sua “revolução democrática”.

Em uma entrevista no GloboNews um general que acabara de passar para a reserva – não me lembro seu nome –, entrevistado por Miriam Leitão, que foi torturada e o reconhece publicamente, diz: “Mas tortura no Brasil? Você chama de ditadura, mas tortura… Não sei tortura…”. “Mas como não, general?” “Não, pode ter havido um ou outro desviante aí que praticou por sua conta e risco, mas isso não fez parte absolutamente da estratégia do Estado”. “Mas, general, eu fui torturada. A presidente Dilma foi torturada.” Aí ele responde assim, na frente de milhões de pessoas: “Isso ela diz”. Se é possível, na televisão, essa desfaçatez, esse cinismo – e isso sendo autorizado e naturalizado –, nós estamos no inferno. É claro que essa história continua aberta e, dessa maneira, nós não nos livramos desse passado, seja pela natureza autoritária do nosso desenvolvimento, em que as transições democráticas se dão por acordos por cima, seja pela forma pela qual tudo isso se passou. Para concluir, sinto um gosto, um sabor de ressentimento, de revanche no ar. O racista que não se denominaria racista estava no armário. O elitismo mais deflorado estava no armário, era feio. Não era de bom tom, durante muito tempo, que isso viesse à tona, e essas pessoas se sentiam deslocadas, mas se calavam. Elas agora podem falar, saíram do armário todas as aberrações. Nada mais constrange. E nós perdemos esse parâmetro. Portanto, a questão do Estado democrático de direito é muito mais complexa e profunda do que as instituições na sua formalidade.

Maria Axel Hardi [plateia] – Minha questão diz respeito ao valor da palavra nos tempos de hoje, mais especificamente entre o primeiro e segundo turno. Me chamou muita atenção um mecanismo: os bolsonaristas, os eleitores do Bolsonaro, com toda a sua heterogeneidade, claramente pareciam não acreditar no que de mais violento e impactante ele dizia.

Maria Rita Kehl – Na psicanálise, acho que o que ficou mais divulgado, todo mundo sabe, um mecanismo de defesa, é a repressão. Não quer ouvir, não quer saber, reprime. Mas tem um mecanismo que é mais ambíguo, que é o que se chama de denegação, que está mais ligado à perversão do que à neurose. Quem investiga isso é o Freud, que estabelece o conceito de denegação, mas quem sintetiza desse jeito é o Lacan. O sujeito diz: “Eu sei, mas mesmo assim”. Então, é como se eu dissesse “tudo bem, eu sei que não posso ser racista, mas olha que cara fedido que está do meu lado no metrô”. Isso é típico de um perverso. “Eu não posso mais ser… Eu vou discriminar só este hoje, porque eu estou com vontade, porque eu sou mau, porque no fundo sou racista.” Então, esse mecanismo acho que tomou conta do Brasil nesta eleição. Por que caminhos eu não sei. Primeiro, porque autoridades deram o exemplo disso. E aí é muito grave.

O meu medo, no Brasil neste momento, não é o que o Bolsonaro vai fazer, é o que a pessoa que me olhar na rua – não gostou da minha cara ou me viu numa entrevista falando mal do Bolsonaro –, vai fazer comigo, com vocês, com meu filho, com meu vizinho, com o guarda da minha rua, que é um puta cara bom…

Eu tenho medo é disso, entendeu? Dessa perversão pequena, cotidiana, que acho que vai degradar muito mais o laço social – muito mais, não, proporcionalmente à perversão de quem vai comandar o país, que é uma figura perversa.

Luiz Eduardo Soares – Eu estava falando de O. Mannoni, de um livro do início dos anos 1970 chamado Chaves para o imaginário, em que ele discute aquela ideia [de que] não há bruxas, mas que existem, existem. Aquela discussão de que acreditavam os gregos em seus mitos, a forma muito ambígua pela qual a gente lida com as crenças, com as convicções e com os valores. Isso tudo muito diferente do que as pesquisas de opinião, com seu trator uniformizante, fazem crer. Tive um diálogo com uma pessoa razoável da família. “Não, mas o candidato vai mudar a segurança pública. Tem compromisso com isso.” Eu disse: “Mas quais são as propostas? Pensa bem. Vai mudar fazendo o quê?”. “Não, mas essa discussão fica muito teórica. É muito abstrata.” Aí vi que o que está em questão é o performativo, é a agressividade, é a virulência, é a maneira pela qual ele diz o mesmo, porque dá a impressão de que ele está fazendo: ele está agredindo, ofendendo. Sabe aquela distinção entre o constativo e o performativo? O constativo descreve, se refere a, e o performativo realiza aquela ação. Então, se eu digo “eu te batizo”, eu estou te batizando. Eu não estou dizendo que estou batizando apenas, eu estou mesmo batizando. “Eu te prometo”, “eu te amo” são declarações que produzem imediatamente o efeito e realizam aquilo que estão dizendo. Elas não estão se referindo a. O tipo de discurso, quando é ofensivo, agressivo, já é uma realização. Ele já está em briga com os bandidos. Você fica falando enquanto ele já abriu a guerra. Ele está em guerra, é disso que se trata.

Marina Amaral – Eu queria falar da boçalidade. Há uma pobreza de discussão, uma pobreza intelectual muito grande nesse governo e entre os partidários do Bolsonaro. O que acham que a educação tem a ver com isso?

Maria Rita Kehl – Eu sou super a favor da educação, da melhor possível para todo mundo, mas a Alemanha de Hitler tinha uma educação muito boa. O nível escolar que elegeu o Hitler na Alemanha era dez vezes melhor do que no Brasil hoje. Isso em 1930, 1933. Então, acho que educação não garante tudo, não. Não tem um monte de milionário que estudou na Suíça e não está nem aí, não paga empregado nem os direitos que têm que pagar e que se dane? Não é educação, é posição política. A sociedade brasileira pratica mal a cidadania em todos os seus estratos. Sempre praticou. O fato de que as nossas polícias continuam militares depois da ditadura. Polícia não é militar, polícia é civil. O exército que é militar, treinado para proteger a pátria em guerras. A nossa polícia é preparada para a guerra. Contra quem? Contra a população. Eu me lembro, vou contar aqui uma pequena anedota. Quando a Danuza [Leão] tinha uma coluna e veio a PEC das domésticas ela escreveu o seguinte artigo – eu não tenho nada contra ela, mas estou representando um tipo de boçalidade, cegueira, de quem sempre esteve numa certa camada e não se sensibilizou. Ela diz não, mas essa PEC tinha que ser aplicada aos poucos, lentamente. Sendo que aqui trabalho doméstico era basicamente trabalho escravo, ficava à disposição dia e noite, porque mora na casa do patrão… Aí ela diz: “Não, eu tenho um casal de amigos velhinhos que têm o hábito de tomar chá antes de dormir, e, se a empregada for dormir às seis, eles perdem o seu direito de tomar o chá”. Escrevi uma carta, que não foi publicada, dizendo [que] eu acho que a Danuza tem toda a razão, os amigos dela têm direito de tomar chá, então antes da PEC das domésticas valer naquela casa, a empregada deveria fazer um pequeno curso introdutório dizendo onde é a cozinha, qual daqueles móveis esquisitos é um fogão, como se liga o fogo, qual é o ponto de fervura da água e como é que se coloca um saquinho de chá dentro da água. Depois desse curso dificílimo, poderão ficar sem [a empregada]. Ela certamente escreveu isso e não foi cínico. Esse é um exemplo caricato. Esse é o mais boçal que eu já ouvi, mas faz parte da nossa relação [da] elite escravocrata, mesmo quando não tem mais escravo, com os serviçais.

Rodrigo Menezes [plateia] – Qual é a possibilidade de diálogo e de você construir uma contranarrativa com a qual você possa blindar essa proteção que essas pessoas têm à verdade?

Maria Rita Kehl – Olha, eu tenho um problema… Apesar de eu ser psicanalista e tudo mais, eu não sei conversar com fascista. Com a pessoa que vem dizer “eu estou na dúvida” dá para conversar. A pessoa convicta… Deixa ela, deixa. Ela vai ver. Acho que é a única coisa que a gente pode dizer para a maioria… É diferente uma minoria bolsonarista que vai se beneficiar até o fim dele. O resto vai cair de bunda, desculpe, um ano, seis meses depois. Claro que eles podem continuar justificando, é difícil admitir a burrada que você fez, né? Mas acho difícil, quando ele começar a incentivar e a liberar a perseguição a gays, quando ele começar aquela frase deles dos quilombolas, que pesam não sei quantas arrobas, não sei o quê… O meu medo é que, quando começar a cair, ele vai usar cada vez mais da força, né? Eu acho que, num primeiro momento, vamos ver o que acontece. Porque pode ser que ele seja tão inábil que esse apoio enorme a ele não se sustente. Essa é minha única esperança.

Luiz Eduardo Soares – Sou talvez a pior pessoa para responder essa pergunta, porque eu só diria não sei, também vivo essa perplexidade, mas tem um fio de esperança, que é o seguinte: eu “não acredito” em opiniões, elas se desmancham no ar. Opinião é como dor de cabeça: dá e passa. A gente tem a ideia, porque a gente é intelectual, de que a opinião é muito grave, e a gente deve coerência e fidelidade às opiniões, e as mudanças devem ser justificadas etc. Então, para nós, isso é muito difícil. A mudança de opinião é significativa para nós, e temos consciência dela. A própria ideia de coerência é um valor. Dentro do metrô, quando o metrô tinha sido inaugurado, o comportamento das pessoas era completamente diferente do comportamento que você identificava na rua. Então, tem uma história, uma anedota de um amigo meu, professor da UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro] na área de engenharia. Ele acompanhou os colegas, fez doutorado na França. Os colegas vieram aqui ver a história da privatização do metrô e pediram a esse professor que os acompanhasse na viagem. Queriam começar pelo trem da Central, vindo do subúrbio. Naquela época, o trem estava pior ainda do que está hoje, uma barulhada, sujo etc. E, quando eles estavam mais sós, pelo horário, no vagão, um rapaz começou a fazer xixi no cantinho do vagão. Aí o meu amigo chamava atenção dos franceses para a paisagem do outro lado. Ele não sabia o que fazer porque ele estava envergonhado. “Meu Deus do céu, os franceses vão pensar o que de mim, do meu país e tal?” Eles saíram todos juntos, e o rapaz do xixi também, e mergulharam lá no metrô, para a próxima área, e viram lá no saguão do metrô, muito bem cuidado etc., que o rapaz andava com um papel de bala na mão procurando um lixo. Andou uns vinte metros até o lixo para jogar no lixo, o mesmo personagem. Você mudou o palco, mudou o setting, mudou inteiramente esse universo de referência. Todo mundo sabe que na sala de visita, mesmo uma modesta, você não joga lixo. Você introjetou essa regra, na sua casa e na de outra pessoa. Se aquilo é definido como espaço de acolhimento valorizado, você se adapta àquele cenário mobilizando outras regras, outras disposições suas que estão presentes também. Elas não foram anuladas, a solidariedade não está anulada. A perspectiva de autocrítica, de revalorização, não está anulada completamente, mas depende muito de circunstâncias que se criem, que proporcionem esse tipo de mudança.

No dia seguinte a um grande crime noticiado dramaticamente na grande mídia, todo mundo vai ser a favor da pena de morte. O número vai explodir. Se você, ao contrário, apresenta na véspera a história de um criminoso condenado injustamente, e a vida com biografia, com a família, com empatia, a mudança é imediata. Há testes feitos nesse sentido. Então, há muita variedade, e a gente não sabe o que está pela frente; portanto, esse inimigo pode te surpreender. Eu não estou dizendo que isso vai acontecer, mas certamente não vai ser pela persuasão racional. Não vai ser pela nossa conversa. Vai depender muito das circunstâncias que vão se criar, e nós não controlamos esse processo. Nós temos que estar abertos para possibilidade desse processo.

José Cícero da Silva/Agência Pública

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