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12 dias após afastamento da ex-presidente, ministro José Serra enviou guia para diplomatas apoiarem Michel Temer e defenderem impeachment, que só foi concretizado três meses depois

Reportagem
30 de abril de 2019
15:15
Este artigo tem mais de 5 ano

“Cumpri instruções”. Assim começa uma série de correspondências escritas por diplomatas brasileiros no exterior. Da representação do Brasil em Washington ao embaixador na minúscula e paradisíaca ilha de Santa Lúcia, no Caribe, oficiais brasileiros obedeceram à ordem clara e rigorosa do Ministério das Relações Exteriores do recém-iniciado governo de Michel Temer (MDB): rechaçar qualquer questionamento ao processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) vindo de outros diplomatas, de órgãos internacionais ou mesmo da imprensa estrangeira, além de manter informado o governo Temer de onde partiriam eventuais críticas.

A ordem partiu do também recém-empossado ministro José Serra (PSDB), no dia 24 de maio — apenas 12 dias após o afastamento inicial de Dilma pela Câmara dos Deputados. As informações estão presentes em mais de cem comunicados transmitidos pelas embaixadas do Brasil entre maio e setembro de 2016, aos quais a Pública teve acesso através de pedidos pela Lei de Acesso à Informação. Segundo os documentos, era crucial aos embaixadores brasileiros rebater qualquer afirmação sobre erros de conduta durante o julgamento, que citasse “jogos de interesse” ou apontasse de manobra política no processo. Termos como “golpe de Estado” e “manipulação política” também constaram nos exemplos de “posturas equivocadas”.

O embaixador brasileiro em Cuba, Cesário Melantonio Neto, foi rápido em cumprir as determinações do chanceler tucano. Em nota enviada ao Itamaraty em maio de 2016, o diplomata afirmou ter conversado “com diversas autoridades locais para corrigir percepções errôneas sobre o processo de impeachment e evitar manifestações incorretas no tratamento de temas da realidade brasileira”, disse. No texto, Neto afirma que o afastamento de Dilma “observa estritamente os ditames e ritos previstos na legislação brasileira” e diz ter se encontrado com representantes do governo cubano para os quais argumentou que as violações à lei orçamentária configurariam crime de responsabilidade. ”Creio que as autoridades locais entenderam a argumentação”, finaliza.

O diplomata também acompanhou a VII Cúpula da Associação dos Estados do Caribe, realizada em junho na ilha cubana. Na ocasião, relatou Neto ao governo brasileiro, os presidentes de Cuba, Raúl Castro, Venezuela, Nicolás Maduro, e o vice-presidente da Nicarágua, Omar Halleslevens, criticaram duramente o afastamento de Dilma.

Já o embaixador do Brasil na Organização dos Estados Americanos (OEA), José Luiz Machado e Costa, utilizou a sua representação para questionar países que haviam se manifestado contra o impeachment. “Ao final da sessão ordinária do Conselho Permanente ocorrida ontem, 7 de setembro, pronunciei intervenção pela qual rechacei críticas ao processo de impedimento da Presidente Dilma Rousseff”, resume o diplomata. Na carta, ele comemora: após sua fala, as delegações da Bolívia, Equador, Nicarágua e Venezuela, contrárias ao impeachment, não tiveram apoio. México, Estados Unidos, Argentina, Chile e Colômbia se posicionaram a favor do embaixador brasileiro e endossaram o argumento de Costa, que o julgamento “conduzido de modo totalmente pacífico pelo Congresso Nacional observou o devido processo legal e os valores e princípios do Estado Democrático de Direito”, afirmou.

Costa foi nomeado representante permanente do Brasil na OEA em 2015, com apoio do PSDB de Serra e do Democratas e após o preferido de Dilma, Guilherme Patriota, ser rejeitado pelo Senado.

Depois de discursar na OEA, a peregrinação do embaixador prosseguiu. Em 14 de setembro, Costa passou notas à Organização dos Estados Americanos e à Organização PanAmericana da Saúde (OPAS) sobre o fim do processo de impeachment. Já em 21 de novembro, foi a vez de argumentar com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, para a qual o representante encaminhou informações do governo brasileiro sobre manifestações contrárias ao afastamento de Dilma.

Por sua vez, Mário Vilalva, embaixador brasileiro em Portugal, aproveitou-se do seminário “Investimentos Estrangeiros no Brasil”, organizado pela Câmara de Comércio e Indústria LusoBrasileira (CCILB), para defender o impeachment. Em nota enviada ao Itamaraty em junho de 2016, o diplomata conta que “nos termos das instruções transmitidas por Vossa Excelência” prestou “detalhados esclarecimentos sobre a tramitação do processo de impeachment no Brasil, ressaltando que este observa rigorosamente os ditames da Constituição brasileira”.

Vilalva ainda utilizou o evento para propagandear medidas econômicas adotadas pelo governo Temer “com vistas a conter o aumento dos gastos públicos” e passou informações sobre o andamento dos preparativos para a realização dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos do Rio de Janeiro, “convidando os presentes a visitar o Brasil durante esses eventos desportivos, momento oportuno também para a realização de negócios”, relatou.

Baixadores foram instruídos a defender todo o processo de impeachment que só terminou em 31 de agosto de 2016 em votação no Senado Federal

Itamaraty divulgou ordens a embaixadores cerca de uma semana após afastamento temporário de Dilma

A argumentação dos embaixadores brasileiros seguia a circular “Circtel 101296”, enviada em 24 de maio pelo Itamaraty — 12 dias após o afastamento temporário de Dilma. O texto apresentava “a versão correta” do impeachment, compilava argumentos que a legislação brasileira estava sendo cumprida rigorosamente e afirmava que o Congresso e Supremo Tribunal Federal (STF) sustentavam a lisura do processo. A circular foi novamente citada em setembro, quando nova mensagem do Ministério das Relações Exteriores reforçou: “se consultado a respeito do processo de afastamento da ex-PR Dilma Rousseff por representantes governamentais, diplomáticos, da imprensa ou da academia, Vossa Excelência deverá recorrer aos termos da Circtel 101296”.

A circular do Itamaraty listava argumentos de autoridades governamentais e dirigentes de organismos internacionais que deveriam “ser enfrentados com rigor e proficiência”. A seleção começava pela própria OEA — que em abril havia declarado que o julgamento não se enquadrava nas regras que sustentam o impeachment —, seguia pela Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (ALBA), a União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e incluiu os governos da Bolívia, Cuba, Venezuela, Equador e El Salvador.

No texto original, o julgamento na Câmara dos Deputados de 15 de abril de 2016, marcado pelo votos “por Deus e por minha família” e pela exaltação do torturador Ustra feita por Jair Bolsonaro, é definido como um ato “precedido de exercício extenuante de informação — factual, técnica e jurídica — dos parlamentares brasileiros sobre os fatos denunciados”, diz a circular. Já sobre o Supremo, o texto reafirma o papel da corte de guardiã da Constituição e assegura que o órgão tem realizado “supervisão atenta” do julgamento, “com todo o rigor, como deve ser”.

Na caracterização do processo de impeachment, o documento explica o que é um crime de responsabilidade e o porquê dele não ser uma condenação penal — e, portanto, estritamente político. O Ministério reforça que as instituições estrangeiras têm dificuldade em entender a lógica do crime de responsabilidade, citando como exemplo, um questionamento da Bolívia que não havia crime, logo, o julgamento seria apenas uma articulação política.

No texto, o Ministério das Relações Exteriores se dedica a combater o argumento que o afastamento de Dilma invalidaria o voto de mais de 50 milhões de brasileiros. Na contra-argumentação do ministério, “os votos recebidos por um presidente da república não constituem barreira à instauração de processo de impeachment” visto que “os deputados e senadores brasileiros receberam igualmente milhões de votos para cumprir suas funções constitucionais”.

Governo Temer agiu para rebater movimentos sociais e imprensa estrangeira

As correspondências dos embaixadores brasileiros revelam ainda outra preocupação do Governo Federal: reverter ações tomadas durante o governo de Dilma para questionar o processo de impeachment.

O principal exemplo é a “Carta aos Movimentos Sociais da América Latina”, publicada em março de 2016 por uma série de entidades ligadas à esquerda, como a Central Única dos Trabalhadores (CUT), o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e o Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH). O texto foi enviado pelo Itamaraty ainda durante governo Dilma a delegações na África, Ásia e Oceania. Na carta, os movimentos a favor da destituição da presidente são explicados como uma resposta dos partidos derrotados nas eleições de 2014 junto a setores do Judiciário, Ministério Público e Polícia Federal para impor uma agenda de reformas liberais e conservadoras que não haviam sido escolhidas pela população.

Além disso, no governo Temer, os embaixadores brasileiros também atuaram para notificar o Itamaraty de repercussões negativas do impeachment na imprensa.

A TV Venezuela entrou na mira, bem como jornais e sites na Bolívia e Argentina.

Uma publicação de parlamentares britânicos ligados ao Partido Trabalhista no jornal The Guardian despertou o alerta dos embaixadores brasileiros. No texto, publicado na seção de cartas dos leitores no dia 27 de maio, diversos parlamentares criticam veemente o afastamento de Dilma e afirmam que o governo Temer mostrou “suas verdadeiras cores ao empossar um ministeriado de homens brancos, lançando mão de políticas neoliberais que irão ferir milhões de trabalhadores e brasileiros pobres”.

Em resposta, o embaixador brasileiro no Reino Unido, Eduardo dos Santos, exigiu espaço de resposta ao Guardian no qual escreveu ser “inaceitável que o impeachment fosse tratado como manobra política contra a vontade do eleitor”. O texto copiava trechos inteiros da circular 101296, do Ministério das Relações Exteriores.

Jornais da Austrália que haviam publicado textos críticos ao impeachment também foram monitorados pelos embaixadores brasileiros. Um artigo chamado “A vingança da direita brasileira”, escrito pelo professor da Universidade Nacional da Austrália Sean Burges, é citado pelo embaixador do Brasil em Camberra, Manuel Innocencio de Lacerda Santos Jr. Em comunicado ao Itamaraty, o diplomata pergunta se poderia responder ao jornal que leu o artigo com desgosto, visto que se tratava de “uma abundante demonstração de falta de informação” vinda de alguém que, tendo em vista sua posição, “deveria ser melhor informado”. Em uma longa crítica, o Santos Jr. chega a afirmar que a análise do professor australiano transita entre “mal-intencionada ou apenas mera estupidez”.

Já o embaixador do Brasil na Malásia, Carlos Martins Ceglia, informou que o jornal de língua inglesa de maior circulação no país, o “The Star”, publicou na edição de domingo de 22 de maio um artigo de opinião que classifica de golpe o impeachment de Dilma e conclamou o apoio da comunidade internacional para o processo democrático no Brasil. O diplomata questiona o Itamaraty se poderia enviar carta ao editor do periódico para “esclarecer os pormenores legais do processo, à luz da Constituição Federal e com a observância dos ritos estabelecidos pelo STF”. A carta, chamada “processo não é golpe”, foi publicada no dia 28 de maio no mesmo jornal.

Em setembro, o embaixador em La Paz, na Bolívia, relatou que o fim do julgamento de Dilma foi tratado como decisão história na imprensa local, que destacou a decisão do presidente Evo Morales de convocar o embaixador boliviano que estava no Brasil. Segundo o comunicado, internamente, “a convocação do embaixador foi amenizada por políticos oficialistas e criticada por oposicionistas”. O cenário, contudo, era promissor a Temer: de olho na renovação do contrato de mais de US$ 1,3 bilhão de venda de gás natural com o Brasil, o governo boliviano não deveria tomar atitudes mais duras.

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