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Agência de jornalismo investigativo
Entrevista

Como surgem as teorias conspiratórias da direita?

Em entrevista, pesquisadores falam sobre as teorias mais disseminadas pelos principais apoiadores de Bolsonaro e Olavo de Carvalho

Entrevista
7 de junho de 2019
16:06
Este artigo tem mais de 5 ano

Globalismo? Climatismo? Marxismo cultural? Em março, a Casa Pública recebeu a socióloga Sabrina Fernandes, do canal TeseOnze, o pesquisador Marco Antônio Perruso, do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFRRJ, para um debate sobre teorias da conspiração, mediado pelo jornalista da Piauí Herald Roberto Kaz. Aqui, alguns trechos dessa conversa:

Roberto Kaz: Boa tarde. Tenho aqui a honra de estar ao lado da Sabrina Fernandes e do Marco Antônio Perruso. A Sabrina é criadora do canal TeseOnze, formada em sociologia no Canadá, e também tem mestrado e doutorado na área, pela Universidade de Carlton, em Otawa. O Marco Antônio é professor da Federal Rural, também na área de sociologia, com mestrado e doutorado pelo IFCS, da UFRJ, e com pós-doc em ciências políticas pela USP. Ele é especialista sobretudo em pensamento social brasileiro, também marxismo e globalização, entre outros temas. A Sabrina vai começar falando um pouquinho das origens dessas teorias conspiratórias da direita e da extrema direita, e o Marco Antônio continua falando sobre como isso tem repercutido aqui no Brasil. Abro aqui a palavra para a Sabrina.

Sabrina Fernandes: Olá a todos! Teoria de conspiração geralmente é coisa que você não consegue provar. Então, quando se fala assim: “há uma conspiração para tornar o Brasil comunista”, eu falo: “quem dera”. Não é a situação atual. E o que eles falam normalmente são deturpações que têm muito interesse em criar pânicos morais, pegar aquelas pessoas que não conhecem muito bem o tema, que às vezes já têm um certo medo, um certo receio, e criar uma história de bicho-papão na cabeça delas. “Vai destruir a família”, “estão vindo atrás das crianças”. Teorias como essas que são levadas a cabo pelo Olavo de Carvalho e outros teóricos mais recentes e pessoas que estão no YouTube que têm uma ideia de já chegar demonizando o que é a esquerda, o que é marxismo, o que é comunismo. Se pegam elementos fora de contexto e traz para por medo nas pessoas. E isso não é uma coisa recente. O Olavo de Carvalho é um plagiador. Várias coisas que ele fala, que as pessoas aqui pensam “nossa, o Olavo desvendou o marxismo cultural, o gramscismo”, ele está copiando um cara dos Estados Unidos chamado William Lind. Se você colocar um texto do William Lind ao lado de um texto do Olavo de Carvalho sobre marxismo cultural, você vai ver que o Olavo pegou trechos inteiros. E o William Lind já era famoso por ser um grande falsificador. Ele colocava coisas na boca de Gramsci, de Marcuse, que não eram verdade, que não tinha como comprovar. E a implicação que ele tinha com o Herbert Marcuse, que é um dos teóricos que eu mais estudo, marxista, era muito forte porque o Marcuse, além de ter sido um teórico famoso na época nos Estados Unidos, era militante também, protestou contra a Guerra do Vietnã, então ele irritava muito essa classe intelectual conservadora nos EUA. E escolheram Gramsci porque Gramsci tem um potencial transformador muito grande. Se você consegue demonizar o que é Gramsci logo de cara, você vai e descarta tudo que tem a ver com Gramsci depois disso.

Roberto Kaz: E eles usavam o termo “marxismo cultural”? Ou é um termo contra?

Sabrina Fernandes: É um termo contra porque não faz sentido falar em marxismo cultural. Marxismo é material, é materialismo histórico. Você tem que mudar a realidade, você tem que mudar as estruturas, só que se trabalha, por exemplo, na noção de consciência de que o Gramsci fala, é que você tem uma consciência prática e uma consciência teórica. Você pode estar todo alinhado, entendendo sua exploração, mas, se a ideologia dominante está disfarçando essa exploração para você, a gente tem um problema. Então, o objetivo, na verdade, é desmarcar e transformar a realidade – o que não tem nada a ver com o marxismo cultural que eles falam, que é atacar a família tradicional, tirar os valores que mantêm a sociedade unida, que na verdade é uma resposta conservadora a muitas coisas que não são nem os marxistas. Às vezes é simplesmente um movimento de direitos humanos ou um entendimento liberal de empoderamento, de dar voz às pessoas, que irritam os conservadores, que não são necessariamente do pensamento marxista.

Roberto Kaz: Marco Antônio, você quer continuar? Falar de alguma dessas definições?

Marco Antônio: Sim, eu acho importante, a partir do que a Sabrina começou a colocar sobre que teorias conspiratórias são essas, a gente se perguntar também qual é a efetividade e o que nos assusta nessas teorias. Nos assusta porque, de alguma maneira, elas estão tendo um encaixe significativo na sociedade, estão tendo uma audiência significativa. A gente tem em conta que as ideias podem ser manuseadas de várias maneiras. Elas podem ser manuseadas de um modo que envolve convicção íntima das pessoas, mas podem ser manuseadas enquanto propaganda de modo premeditado, enquanto cálculo. Então, a gente já fica com pé atrás em relação a acreditar que essas pessoas simplesmente acreditam em teorias da conspiração tão linearmente, tão generalizadamente assim. O que eu quero dizer com isso? A gente pode pensar teorias da conspiração como uma manifestação do que seria o racionalismo. Então, nós temos o mundo da razão, que sustenta e ajuda a estruturar a sociedade moderna, contemporânea, onde vivemos, e uma racionalidade. No entanto, torna-se senso comum que a razão substitui um tanto linearmente a falta de razão. Essa é a visão tradicional dos iluministas, dos liberais. Então, a gente conquista a razão, e cada vez mais nas sociedades os indivíduos estão emancipados, como diria Kant – estão transparentes, capazes de usar a razão. Essa é a narrativa tradicional do progresso, ou seja, é uma narrativa que inaugura a sociedade moderna. Outras teorias, inclusive a marxista, problematizam bastante essa linearidade, porque a sociedade que a gente vive, como sociedade capitalista, é generalizadamente fundada em contradições, e não necessariamente os indivíduos, os grupos sociais vão acionar o tempo todo a razão nesses processos de contradição, de conflito social. O marxismo é a teoria principal fundada na conflituosidade social. A gente tem que lembrar, portanto, que irracionalismo é um fenômeno mais longo. Ele não está colocado para trás. O irracionalismo é sempre uma possibilidade colocada na modernidade. É só pensar, por exemplo, o Brasil que elegeu Bolsonaro. É um Brasil com o maior nível de instrução educacional do que o Brasil de anos anteriores. Pequeno exemplo para a gente pensar que não necessariamente educação nos liberta com tanta facilidade assim. Se a gente pensar o racionalismo como presente o tempo todo na modernidade, a gente tem um monte de outros exemplos. Horóscopo. Tem uma galera que gosta de horóscopo. Eu não desgosto, inclusive, mas para uma leitura iluminista rígida, é puro irracionalismo. Aí vai entrar um debate de ciência ocidental. Isso tudo está na nossa sociedade. Então, olha como já tinha irracionalismo antes. É que agora o irracionalismo está configurado como arma de guerra política e cultural. Então, a gente já consegue ver com mais cuidado isso, por que essas teorias que a Sabrina começou a contar têm tanta audiência social. Essas teorias, na falsidade delas, autênticas no sentido da convicção de cada um, calculadas no sentido de quem propagandeia, porque a gente sabe que um monte de gente que propagandeia essas baboseiras não acredita nessas teorias, óbvio, mas por que que elas conseguem ter tanta audiência no Brasil contemporâneo? Essa é uma questão que eu acho que a gente tem que enfrentar, porque de fato o que parecia algo que estava num gueto de lunáticos tem uma disseminação social maior. Como a Sabrina colocou, o Olavo de Carvalho, a gente achava que era um pirado e, enfim, parece que chegou no poder. É uma boa questão se as ideias do Olavo de Carvalho chegaram ao poder ou se essas ideias são usadas como alegoria para o poder. Talvez as ideias do Paulo Guedes é que estejam no poder.

Roberto Kaz: É diferente das teorias de inimigos de, sei lá, da época da Guerra Fria? Como os inimigos comunistas de agora são diferentes do comunismo que havia antes de fato na União Soviética e tal? E uma segunda pergunta: e esse ciclo de extrema direita que se apresenta é um ciclo que no fundo, com o tempo, vocês acham que vai ser um ciclo apenas dessa direita que a gente conhece, mais militarizada e tal, ou vai continuar sendo esse ciclo das teorias conspiratórias?

Sabrina Fernandes: É diferente. Eles gostam de falar que é a mesma coisa, que o marxista de hoje é que nem o marxista da época. Só que é diferente porque naquela época eles tinham um Exército Vermelho, tinham todo um poder material que estava tomando territórios; Cuba estava forte, para representar a América Latina, que é bem diferente do que a gente tem materialmente hoje. A gente não tem materialmente, hoje, nem um centésimo da força que tinha a União Soviética na época, só que eu gosto de falar assim: a Guerra Fria não acabou. Ela não acabou, ela muda de etapa. Eles conseguem derrotar, através da globalização, do capitalismo, todo esse processo, mas eles pretendem manter mais baixa possível a possibilidade de uma revolução. Então, você mantém as mesmas teorias da conspiração. A teoria da conspiração da época da Guerra Fria é a mesma de hoje, que os comunistas vão comer as criancinhas. E aí hoje há pessoas como, por exemplo, o Jordan Peterson, que era um cara da autoajuda lá nos EUA, agora fica falando “não, porque o feminismo gayzista marxista pós-moderno” – o que já não faz sentido nenhum – “eles vão fazer coisas horríveis, vão destruir os valores ocidentais”. Então tem essa coisa do valor ocidental, que está muito forte também, que, na mente colonizada dos nossos governantes, no Brasil, é: “vamos proteger o Ocidente”. A gente tem que lembrar: a gente não é Ocidente. A gente é Brasil, que foi colonizado, que sofreu com escravidão e que até hoje não teve nenhuma reparação desse processo. A gente não é Ocidente. Acho que isso meio que vai ao encontro com o que o Marco estava falando em relação ao que é esse valor de progresso iluminista e tudo o mais, porque é muito relacionado ao Ocidente isso. E aí meio que o tiro sai pela culatra, porque tem uma galera que está tão disposta a preservar só o racionalismo ocidental que vêm os conservadores ocidentais e se aproveitam disso para virarem pessoas anticientíficas, para rejeitarem, como é o caso do negacionismo climático, e a gente fica rindo dos terraplanistas, mas a coisa está pegando porque o terraplanismo é um sintoma de uma ideia de que nós devemos questionar autoridades intelectuais. “Vou seguir meu guru, Olavo de Carvalho, vou chamá-lo de filósofo e de professor porque o diploma não vale nada.” E isso é algo para a esquerda manter em mente também, porque aí o que acontece? Teve um período em que a esquerda achou que um diploma valia mais coisa do que valia, então ficava muito na academia o debate, muito na teoria e não saía, e parou de se conectar com a realidade das pessoas. E é aí que eu falo: Gramsci é sensacional. E é por isso que eles gostam de deturpar Gramsci, porque ele é o cara que falava: você pode ser um intelectual tradicional, falar coisas muito acertadas, mas você não vai mudar a realidade se você não for um intelectual orgânico. Então, o diploma não vale tudo isso que a esquerda achou que valia. Mas, também, o jeito que a direita conservadora tem essas teorias da conspiração para negar qualquer conhecimento, validade e argumento, num ponto que uma pessoa fala uma coisa qualquer e fala “hahaha, tá refutado”, você tira a lógica de argumentação, isso é muito perigoso.

Marco Antônio: O que eu queria chamar atenção nesse caso, também, é como, de certa maneira – e aí a minha sugestão é restrita ao Brasil porque meu foco é mais no pensamento brasileiro, na sociedade brasileira –, a impressão é de que essa nova direita, muito mais extremista, radical, que aparece, copia em boa medida o repertório dos movimentos considerados de esquerda, os movimentos sociais, os movimentos sindicais. Isso faz sentido se a gente pensar que teve uma hegemonia política desde a década passada significativa do lulismo, do Partido dos Trabalhadores, que tem uma origem de esquerda. Tem um debate, também, se é de esquerda hoje ou não. Esse é um debate em que não dá para entrar aqui, mas efetivamente ainda é considerado de esquerda. Nesse quadro, é claro que, chegando a um quarto governo do lulismo, que foi o segundo da Dilma, o desgaste na gestão do capital chegaria mais cedo ou mais tarde, a não ser que acreditemos numa outra teoria da conspiração, de que é possível gerir o capitalismo na periferia sem ter acirramento dos conflitos sociais, que era a proposta dos governos do PT. Não vamos mexer na propriedade de terra, vamos apoiar as grandes empresas, mas a gente vai fazer políticas sociais que distribuem isso. A gente não vai brigar com ninguém de cima. E nesse quadro de desgaste de governos de esquerda, ou identificados como de esquerda, essa nova direita se coloca efetivamente como antipolítica, o que é estranho porque na verdade o papel de ser contrário à política tradicional é o papel da esquerda. Então, a gente tem uma dimensão de autocrítica da esquerda. Nós estamos correndo risco, hoje, de sermos defensores da política institucional. É algo meio fora do lugar para a esquerda fazer isso. Em vez de estar no trabalho de base, está defendendo/acreditando no Estado democrático de direito, no capitalismo periférico, em que a sociedade é originada na escravidão. Se isso não for uma teoria da conspiração, em que a gente tende a acreditar, não sei o que é. Agora, a gente vê uma cópia dos repertórios nas ações de rua que eles fazem, por exemplo.

Roberto Kaz: Mas e sobre a pergunta que eu fiz, você acha que esse futuro é conspiratório ou é um futuro linha-dura?

Marco Antônio: Veja bem, os cientistas sociais, os historiadores, eles não são bons profetas do futuro, só para colocar isso. A gente erra bastante porque, enfim, a ciência que a gente tenta fazer é do que acontece, não necessariamente do que vai acontecer, embora a gente possa ver elementos do que vai acontecer. Mas eu acho que tem uma disputa no governo. Acho que os estratos sociais, os quadros políticos do governo Bolsonaro que se alavancaram, se visibilizaram socialmente com as teorias da conspiração, a impressão que eu tenho é que eles não são capazes de gerir políticas públicas, que mal ou bem o Estado tem que fazer. Não são capazes nem de gerir a do desmonte das políticas públicas, que é o que o governo Bolsonaro está fazendo em grande medida. Acho que se vê um pouco disso no caso do MEC, que o ministro [ex-ministro Ricardo Vélez Rodrígues] é o chamado ministro nem-nem. Ele nem fez uma pós-graduação numa universidade importante nem foi professor em universidade importante nenhuma. Ele é essa figura, para usar o linguajar americano, é um loser no campo acadêmico. E, no entanto, assim como vários outros do bolsonarismo, foi alçado ao andar de cima. Só que a burocracia, a tecnoburocracia, como bem a escola de Frankfurt foi construindo junto com outros autores, é algo em que exige um conhecimento, um embasamento científico administrativo grande. Então, acho que, em boa medida, esses quadros do bolsonarismo que trabalham em cima da teoria de conspiração, fake news, tendem a ficar num papel mais agitador fora do governo. A meu ver, é um quadro, assim, péssimo, um político burguês tradicional, um cara que passou 30 anos encostado no Estado como político profissional e está falando de mercado, abrir empresas, empreendedorismo… Não é o mundo dele. Então, a impressão que eu tenho é que tem mais chance de ter um viés tecnocrático esse governo autoritário, antipopular, do que esse viés de realmente querer ganhar mentes massivamente via Estado.

Sabrina Fernandes: Mas isso cumpre um papel também, porque a ideia, por exemplo… Se pegar o chanceler e pegar o Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente. Um cara que escreve no blog dele que é negacionista climático e tudo o mais, e vai representar o Brasil lá fora dessa forma, muita gente vai rir disso, vai fazer chacota, porque, que absurdo, como é que o chanceler acredita nessas teorias de conspiração e, na verdade, é um promotor dessas teorias da conspiração? Só que isso traz uma certa legitimidade, um fundamento de consenso para as políticas do Ricardo Salles irem avançando em relação a isso, então não precisa ser o Ricardo Salles, o ministro do Meio Ambiente, falando as baboseiras de negacionismo climático, mas você pode ter um braço do governo que está plantando sementes, que está criando dúvidas na cabeça das pessoas, e que isso vai justificar várias das políticas públicas que vão seguir a partir disso. Eu lembro, assim, que o discurso do Bolsonaro em Davos foi muito claro nesse sentido de que não, a gente ainda tem muito espaço para avançar para cima da Amazônia para poder conciliar o desenvolvimento, porque conciliar o desenvolvimento é sempre mais desenvolvimento econômico, e aí você faz uma preservaçãozinha aqui ou ali. E essa é a lógica. Como é que você sustenta essa lógica quando as pessoas estão começando a ver as consequências da mudança climática? Quando as pessoas estão vendo que, se você desmata demais, diminui a quantidade de chuva na sua região? Você planta dúvidas. Então esse governo, além de ter essa parte da teoria da conspiração propriamente dita, sempre vai ter figuras que estão ali para colocar dúvida na cabeça das pessoas e para elas não irem mais a fundo e tentar compreender o que está acontecendo, e o antiambientalismo do governo Bolsonaro não é só essa parte da teoria da conspiração: ele é parte da tecnocracia também. Eles têm esse objetivo. Você precisa ter um discurso para fora que, para quem não está muito acostumado com aquilo ali, vai justificar alguma coisa.

A professora e socióloga Sabrina Fernandes, do canal TeseOnze, e o pesquisador Marco Antonio Perruso, do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da UFRRJ foram convidados para o debate. A mediação ficou por conta do jornalista Roberto Kaz, da Piauí Herald

Roberto Kaz: O Marco falou da crise de 2008, mas houve outras crises em outros momentos anteriores e que não geraram esse pensamento conspiratório coletivo. O que há a partir de 2008? O que aconteceu nesse momento em que a gente vive, que a última crise pela qual a gente passou, e se é só uma crise econômica ou também se são as mudanças comportamentais? Talvez isso também esteja nesse pacote, que fizeram esse… E digo aí os avanços do feminismo, avanços dos direitos das populações LGBT. Quero entender o que houve para que, a partir dessa última crise, a consequência fosse tão conspiratória.

Marco Antônio: Eu acho que… Tem um elemento que eu já chamei atenção, que é a hegemonia durante quase quatro governos inteiros identificados com a esquerda. Não é à toa que essas teorias da conspiração são todas, ou quase todas, conservadoras, ou de direita. Outro elemento, que aí tem dimensões que não ajudam a explicar só as teorias da conspiração, mas a própria ascensão do Bolsonaro: são movimentações sociais recentes, recentíssimas das conquistas de setores tradicionalmente subalternizados da sociedade brasileira – negros, mulheres, LGBT. O caso do nosso patriarcalismo: se a gente for trabalhar com esse conceito, uma crise tremenda, que é o que se viu aí nesse massacre de Suzano, e assim como de anos atrás, em Realengo, que não ficou nem visível esse link. Existe uma movimentação social muito significativa, que tem várias nuances, mas que envolvem conquistas, uma pressão difusa, pode parecer até tardia, desses setores: mulheres, negros, LGBT, populações tradicionais que são visibilizados. A extrema direita de hoje associa isso necessariamente aos governos do PT, por conta de políticas públicas importantes. Mas eu diria que os avanços são oriundos muito mais dos movimentos sociais desses setores, da ocupação de espaço desses setores. Então, tudo isso envolve o incômodo numa sociedade que é absurdamente desigual, racista, machista, patriarcal, homofóbica etc. Então, esse elemento, que a meu ver é excessivamente ligado aos governos do PT, é muito mais um movimento de base da sociedade, independente de que governo fosse, tanto que a gente pode colocar isso na conta do governo Fernando Henrique, que foram governos neoliberais, mas que a pauta de direitos humanos na época mal e mal avançava, com todos os problemas e críticas que a gente fazia na época. Então, acho que tem esse tipo de movimentação, a gente vê agora. Imagino que quem esteja aqui sejam setores jovens, ou não tão jovens, joviais, como a gente se sente, que têm um alto capital cultural, ou está em vias de ter, mas nosso capital econômico não deve ser lá grande coisa. Essa discrepância é significativa da crise do capitalismo brasileiro, porque o discurso do empreendedorismo e o discurso do conservadorismo bolsonarista vêm dizer: não precisa tanto de educação assim, precisa abrir um negócio e ganhar dinheiro. E esse é um desafio que a gente vai ter que debater. Por que será que o nosso padrão de desenvolvimento capitalista, superextrativista, baseado em soja, ferro e o escambau, precisa de nós, mão de obra tão qualificada assim? Olha o perrengue em que a gente está. Por isso as universidades estão sendo atacadas. Eu vi isso, alunos meus, durante a campanha, o drama dos meus alunos enfrentando as famílias, porque eles voltam para casa, e para que que serve esse diploma maluco aí, de filosofia, de sociologia? Está questionando tudo que eu faço… “E não tem trabalho para você, está aqui em casa torrando meu saco.” Então olha a conflituosidade social latente aí. Mas a gente resolve isso genericamente com mais educação? Que na verdade é uma bandeira dos liberais, eles são tão reacionários no Brasil que é a esquerda que tem a bandeira da educação. É só com a educação ou é com mudanças na estrutura social? Senão, a gente vai continuar produzindo… Isso é um fenômeno claro: excesso de diploma. Veja bem, eu quero cada vez mais diplomas, mas o nosso mercado de trabalho não dá conta dessa mão de obra tão qualificada, crítica, com maior consciência cidadã. E o resultado é que quem não entrou na universidade demoniza a universidade. Eu vejo isso cotidianamente. O primo, irmão, cunhado que é bolsonarista não está na universidade pública, onde a pessoa vai lá e aprende “ideologia de gênero”… Claro que não precisa da universidade para isso, mas acho que essa movimentação, essa irritação, que vem dos setores que não estão crescendo nesse período, mal ou bem, ajuda a jogar como uma boa audiência das teorias da conspiração, porque ele vai escolher um inimigo: o comunismo, a mulher que não dá mole para mim e todas essas coisas horrorosas que a gente vê aí. Tem toda uma animosidade social latente que infelizmente é a legitimidade social do Bolsonaro. A gente só resolve isso com trabalho de base, debatendo esses problemas na sociedade.

Sabrina Fernandes: E tem uma questão, também, em relação à gente ter tido avanços de políticas públicas, que vieram de uma pressão de movimentos sociais, mas que não foram acompanhadas da politização necessária ao redor delas. Então, eu bato muito na tecla da questão, por exemplo, do kit gay. Quem dera a gente tivesse tido realmente um kit gay, talvez a gente não estivesse na situação que a gente está hoje, que tem uma teoria de conspiração sobre mamadeira de piroca, porque as pessoas teriam visto o que era o kit da escola sem homofobia e como isso teria um impacto nas crianças respeitando outras crianças e teria sido diferente. Então, a gente, nos governos progressistas do Lula e da Dilma, teve avanços, e os avanços pararam no meio do caminho porque ficaram presos naquela lógica da aceitação da sociedade, e, se a gente tivesse politizado cada um desses temas, talvez o Bolsonaro não teria tido um terreno tão fértil para capinar, plantar e agora colher um governo desses.

Roberto Kaz: E vocês acham que a gente está no início de um longo ciclo de direita? Porque, se for pensar nos últimos 20 anos, e até talvez um pouco antes, a gente vinha num caminho progressista. Se for pensar mesmo, com todos os problemas do PT no Brasil, ou então se for pensar nos Estados Unidos. O governo Obama era um governo progressista. As minorias tendo mais voz e tal. Então é claro que isso gerou uma reação. Essa reação vocês acham que é uma coisa pontual, que, nesse momento, com a vitória do Trump, com a vitória do Bolsonaro, enfim, com o Brexit na UE e tal, é uma reação pontual contra esse novo mundo que se apresenta, que é assustador para muita gente, ou vem aí de fato um longo ciclo de direita?

Sabrina Fernandes: Eu acho que nesse caso a gente tem que pensar um pouquinho na conjuntura política de cada um desses lugares. Por exemplo, por que lá no Reino Unido o Brexit passa, mas meio que não passa. Por quê? Porque o Partido Trabalhista está se reorganizando, o Jeremy Corbyn é um fenômeno, traz a juventude de volta para se envolver com política no Partido Trabalhista, disputa com o campo do Tony Blair, que inventou mil mentiras sobre ele e tudo o mais. Há uma voz, há toda uma estrutura de contraposição ao discurso da direita mais conservadora na Inglaterra. Nos EUA, o Bernie Sanders já anunciou candidatura novamente, aí você já tem umas pessoas bastante combativas ali como a Alexandria Ocasio-Cortez… Então, você vai vendo que a gente está tendo certas figuras. E eu sou mais pessimista em relação ao Brasil, porque eu não acho que a nossa esquerda esteja pronta para ser uma contraposição. Unidade de esquerda é uma visão meio que artificial das pessoas. “A esquerda precisa se unir”, aí o pessoal fala como se fosse assim: “Vamos sentar todo mundo numa sala, e a gente vai entrar em acordos”. Não é assim. A esquerda tem as suas diferenças em relação a tática, estratégia, pensamento, objetivo. Tem gente que quer chegar no comunismo, tem gente que quer humanizar o capitalismo, tem gente que pensa num Estado de bem-estar social mais forte e tudo o mais, e aí eu vou criticar essas pessoas, vou falar: “Olha, a gente está sob o capitalismo dependente, num país colonizado. A gente não vai ter um Estado de bem-estar social feito o da Suécia, que inclusive está sendo desmontado atualmente”. Então, assim, tem essas diferenças, e elas são muito mais complicadas de se trabalhar, mas a nossa esquerda não está nem num ponto básico de ter alguma tática geral de contraposição a esse governo. A gente está perdido, gritando um monte de palavra de ordem de lá pra cá, a gente grita as mesmas palavras de ordem, e não acontece nada. O que que foi o “Fora Temer”, gente? Todo mundo: “primeiramente, Fora Temer”. As hashtags em todos os lugares. Ia para o ato: “Fora Temer”. O Temer ficou lá, ficou lá porque a gente não conseguiu organizar a sociedade para tirar o Temer, porque a gente não conseguiu disputar nem a narrativa do impeachment como golpe. Então, assim, todas essas discordâncias podem ser bastante nutritivas, podem nos ajudar a cozinhar uma receita de algo diferente, ou a gente pode ficar picando legumes numa salada totalmente aleatória, que é o que está acontecendo atualmente.

Roberto Kaz: Você acha a autoproclamação do Zé de Abreu como presidente interino um sintoma dessa esquerda?

Sabrina Fernandes: Foi uma piada de mal gosto, na minha perspectiva. Primeiro, despolitizou o que foi realmente o artefato constitucional jurídico que o Guaidó utilizou, que é algo que seria muito bom para a gente criar paralelos em relação ao próprio impeachment da Dilma, como eles se utilizam de coisas dentro da lei para tentar entrar no espaço, e a diferença é que Maduro conseguiu segurar, porque o Maduro tem uma certa hegemonia. A Dilma não convocou um movimento social para a rua. Ela ainda tentou negociar coisas até o último momento, então isso dificultou muito aqui no Brasil, porque muita gente querendo segurar junto com a Dilma, e ela estava lá assinando lei antiterrorismo. Então, isso tornou a situação um pouco mais complicada no Brasil. Mas o que acontece? A gente tem uma cultura, a gente adora meme. O brasileiro adora meme, eu adoro meme. Então, meme é maravilhoso, só que a gente tem que lembrar que meme não vai mudar a realidade. Em certos momentos, um meme politiza, mas, se alguém fosse se autodeclarar presidente, eu não escolheria o Zé de Abreu, porque ele é uma pessoa que gritava “vai, polícia” para cima de manifestante. E aí eu fiquei profundamente entristecida de ver figuras públicas da esquerda que eu respeito muito falando: “meu presidente”. Gente, que porcaria é essa? Então, se a gente vai escolher o humor como uma forma de estar questionando a realidade, vamos selecionar um pouquinho melhor as nossas referências e como a gente vai usar isso, porque o humor é uma ferramenta fantástica, mas tem protagonistas aí que não têm o respaldo político para estarem avançando dessa forma. E, no nosso caso, o que isso ajudou realmente a angariar solidariedade contra o imperialismo na Venezuela? Nada. Virou uma piada constante que não chegou a lugar nenhum e ninguém entendeu realmente o que que está acontecendo de disputa em relação a recursos nacionais, petróleo, a questão das sanções econômicas, toda a questão da Venezuela relacionada à própria crise de hegemonia do governo Maduro, que tem a ver com a crise econômica, que o governo Maduro também tem sua responsabilidade em relação a ela, qual é o horizonte do chavismo… Todas essas coisas que a gente poderia debater não conseguiu debater porque ficou duas semanas presas na piada de “olha meu presidente”. Porque isso provocava o Bolsonaro de alguma maneira. É aquela coisa da gente tentar enxergar quando uma coisa é tática e quando ela vira um escapismo. E eu acho que várias vezes as nossas palavras de ordem, os nossos memes, se a gente não tomar cuidado, vão virar escapismo. Porque, primeiro, ele não vai ter impacto nenhum com quem está fora daquela bolha da internet. Então, se você está num espaço de trabalho, num bar, e fazendo um trabalho com aquelas pessoas, o que elas têm a ver com o Zé de Abreu se autoproclamando presidente? Não vai ajudar elas a entender a Venezuela, porque, quando elas ligam o Jornal Nacional, vão ligar o Jornal Nacional e vão ver falando: “Nossa, tantas pessoas fugiram da Venezuela por conta do ditador sanguinário Maduro”, e aí elas não vão parar para ouvir sobre a questão econômica ali, sobre as sanções, sobre o poder da burguesia e tudo isso.

Roberto Kaz: Bom, mas então no Brasil, em face dessa fragmentação da esquerda, você acha que esse movimento da direita talvez seja mais a médio, longo prazo?

Sabrina Fernandes: Eu acho que a esquerda precisa ralar um pouquinho mais para ter algo de alternativa para oferecer, porque, fora do Brasil, em alguns lugares, eles estão conseguindo formar uma alternativa. Não adianta a gente só combater o Bolsonaro. Ser anti-Bolsonaro é fácil. Eu estou junto até com os liberais da direita em ser anti-Bolsonaro, porque, assim, na hora de bater no Nando Moura, todo mundo vai lá, mas, na hora da gente falar “olha, tem limites essa questão de humanização do capitalismo, olha, essa teoria da ferradura, isso é anticomunista”, eles não aceitam a gente falar. Então para a gente construir alternativas a gente tem um pouquinho mais de trabalho pela frente. Até hoje estamos vendo o desdobramento muito devagar das investigações em relação ao assassinato da Marielle, a esquerda brasileira não tem consenso em relação à prisão política do Lula… A gente não consegue resolver nem as questões básicas, internas nossas, quem diria conseguir apresentar uma alternativa mais coesa… Porque o pessoal vai falar: “Não, realmente esse Bolsonaro não é tudo que eu pensava, mas a esquerda também não presta”.

Marco Antônio: Eu olho mais para os movimentos sociais. Nessa década uma movimentação significativa de vários setores, de trabalhadores, de jovens, de mulheres, de negros, de LGBT, que se expressam em dados interessantes, que ficaram visibilizados em 2013, mas ao mesmo tempo, a partir do momento em que a conjuntura começa a pender para a direita, tornam-se invisibilizados de novo. A gente tem figuras importantes que aparecem nesses movimentos, que são assediadas fortemente pela política tradicional da esquerda, eu diria assim, pela política institucional, pelo mundo parlamentar, onde a esquerda em boa medida está, e que envolvem decisões que não estão claras ainda para que direção vão. Quando você pega, por exemplo, uma mudança histórica da esquerda brasileira, que foi o fim da hegemonia do PCB e do trabalhismo, que se dá com o golpe de 64. Aparece uma nova esquerda muito mais avançada e radical politicamente do que é a geração do Lula, a geração do novo sindicalismo, dos novos movimentos sociais urbanos, depois o MST nos anos 70 e 80. Essa geração obviamente nega a anterior. Até dá para entender o porquê. “Vocês fizeram essa lambança aí, propuseram um projeto de conciliação de classe, que tinha avanços, tinha até reformismo maior do que o do lulismo, mas deu isso aí, então vamos fazer algo com outros parâmetros.” Então, o Lula estava em plena ditadura militar propondo o fim do sindicalismo estatal, criticando a CLT. Essa é uma nuance que se perdeu. A gente defende a CLT, foi contra a reforma trabalhista, mas a CLT é aquela que dá, que garante a chancela estatal sobre os sindicatos. Você não pode criar um sindicato sozinho. Movimento social você pode, sindicato tem que pedir autorização para o Estado. Para ter uma ideia, vou botar uma frase do Lula da época em que ele era sindicalista, combativo, radical. No tempo de hoje, a galera mais nova vai achar bizarro. O Lula falava: a CLT é o AI-5 dos trabalhadores porque tirou a autonomia dos trabalhadores. Então ele está brigando não só com a ditadura, mas com o varguismo. Ou seja, na conjuntura da ditadura, essa nova esquerda tinha um programa máximo, tinha um programa radicalizado, combativo em cidade sindical, enfim, “vamos discutir depois, agora é combater a ditadura”. Tinha sua estratégia, que era baseada em ativação pela base da sociedade, trabalho de base, comunidades eclesiais de base, movimento sindical, e sempre se diferenciando do Fernando Henrique, do Brizola, das grandes figuras. E o que acontece hoje? O que acontece hoje é que o que seria a esquerda mais socialista, mais radical – o PSOL, PCB –, eles estão convergindo com a política que, na minha leitura, é a política do errado, com todos os méritos possíveis que foi o lulismo, que, no limite, explica um pouco a ascensão do bolsonarismo pela sua própria crise. E a convergência política da esquerda socialista com a esquerda do Estado democrata, eu não vejo como, porque foi essa política que levou a essa situação atual. A minha geração dos 40, 50 anos, que foi formada no PT e na CUT, essa geração está voltando um pouco na sua origem – eu, pessoalmente, não faço isso, mas enfim –, a maior parte da minha geração faz isso. O que eu acho temerário, porque está deixando de olhar para as novas questões que os movimentos, os diversos movimentos protagonizados pelas populações mais jovens estão fazendo, que questionam, por exemplo, todo o eurocentrismo do pensamento marxista, que querem colocar em diálogo outras questões.

Ismael Germano: As teorias de conspiração assumiram um vácuo deixado pelas instituições educacionais? Se sim, como combatê-las?

Vivian Soares: Você tinha falado que a educação por si só não foi a resposta para a crise da desvalorização da ciência, então como é que nós, educadores e educadoras, podemos ou devemos tentar lutar contra essa coisa toda das teorias da conspiração?

Marco Antônio: Eu diria que não só o papel da educação é disputado, mas que existe não só um senso comum, um certo senso ingênuo, que veio do Iluminismo, que é um dos estruturadores da modernidade, de que, enfim, educação emancipa, educação ilumina, né? A gente passa a usar razão porque a gente foi para a escola, a gente passa a usar razão o tempo todo. Só que essa razão é treinada nos espaços sociais onde você está. Então, se você vai para o mercado de trabalho desregulamentado, a tendência é você racionalizar o sentido da naturalização do trabalho sem direito, trabalho com poucos direitos, o empreendedorismo. O empreendedorismo popular parece uma coisa novíssima, ele é a continuidade contemporânea da tradição, da precariedade do trabalho brasileiro, que não é invenção do neoliberalismo, é estrutural do Brasil. Se pegar o início do século passado, quando aparece CLT, ela só é restrita ao trabalhador urbano industrial. Nunca chegou no campo, só com a Constituição de 1988. Então, a nossa realidade é precária. Como é que se exercita uma razão nesse espaço de trabalho? Nesse mundo do trabalho? Como se exercita uma razão emancipadora num outro… não num espaço do mercado, como esse do trabalho, mas no espaço do Estado, das políticas públicas, em que a tendência é a gente, membros do serviço público, meu caso, se tecnocratizar. Mesmo no espaço do Estado, que nós tendemos, a esquerda, aposta tanto no Brasil, a tendência é reproduzir de novo hierarquia, porque a gente vai se colocar como iluminado naquela concepção espacial de hierarquia social que é a escola, que é a imitação da fábrica. O professor fica no palco, os alunos todos sentados, passivos, que foi um dos elementos que o Paulo Freire foi rompendo. Ou seja, esse espaço também… Inclusive o espaço do Estado, no que tange à educação, esse espaço pode reproduzir cidadãos passivos, porque não é só por ali que vai resolver. Quem elegeu o Bolsonaro foi o Brasil mais educado, então tem alguma coisa contra o intuitivo aí. Aí a gente pode fazer uma separação que é do senso comum: uma coisa é você ser instruído e ter conhecimento, outra coisa é você ter sabedoria para operar, ter capacidade de crítica para operar os conhecimentos, porque não tenha dúvida: quem propaga, quem acredita ingenuamente em teoria da conspiração opera com alguma lógica, por mais bisonha que seja, por mais ridícula que seja. Opera aquilo com alguma autonomia, não é só um robozinho. E esses padrões de educação não são necessariamente emancipadores. No caso do brasileiro, se mostrou com a eleição do Bolsonaro que não são. E qual é a solução? Ninguém vai dar solução concreta aqui, mas veja bem: os grupos sociais constroem os processos de consciência, defendem seus direitos nos seus espaços sociais, onde eles estão com os seus iguais. Então, o movimento sindical, os movimentos sociais, o movimento feminista, o movimento negro, os movimentos LGBT, esses são espaços de educação em que você pode desenvolver uma contra hegemonia. Você pode construir uma outra educação que não vai entrar em contradição com a educação formal. Ela vai oxigenar, ela vai empoderar.

Roberto Kaz: Bom, gente, a gente está chegando ao fim da nossa conversa, e, para que a gente não saia daqui cortando os pulsos, queria saber se vocês conseguem dizer alguma coisa otimista.

Sabrina Fernandes: Nós não estamos num ponto de fazer a revolução comunista no Brasil, como o Bolsonaro alega. A gente não tem essa força material, mas eu tenho visto que a gente está tendo novas oportunidades de politização. Então, ao mesmo tempo que essas teorias da conspiração se levantam e elegem presidentes, a gente está aqui conseguindo debater e demonstrar “olha, é uma teoria da conspiração”. Então, nós estamos tentando fazer uma mudança material na sociedade, que passa por conscientização, por a gente ser sujeito político e saber o que a gente está fazendo e não ser manipulado. O acesso à informação, ao mesmo tempo que tendo essa faceta de manipulação, manipulação econômica, inclusive, com bots, manipulação de grupos de WhatsApp, correntes de fake news e tudo o mais, a gente está tendo muito acesso vívido a debates constantes, e está podendo às vezes descobrir coisas que não entendia nada no passado e agora entende um pouco mais. Então essa abertura está surgindo.

Marco Antônio: Acho que primeira coisa que a gente tem que fazer é deixar de ser derrotista, porque a gente acaba invisibilizando movimentações importantes de resistência. A gente teve uma greve geral em 2017, em que rolou um quebra-pau bonito lá em Brasília. A gente teve ocupação de escolas, uma coisa massiva, gigante, especialmente em São Paulo. Mas em outros estados também. Primavera feminista, uma coisa colossal. Então, acho importante primeiro visibilizar isso. Segundo, quando a gente fala do “eu avisei”, o nosso estrato social, a meu ver, entrou num certo trânsito no período eleitoral, e a gente inventou uma figura que é o pobre de direita. No entanto, enquanto tiver capitalismo, vai sempre existir pobre de direita. Senão, não teríamos o capitalismo. Tem que ter uma base significativa de membros das classes populares que apoiam a direita, a extrema direita, a centro-moderada. Então, a gente criou esse meme que no limite mostra um não entendimento nosso do funcionamento da sociedade capitalista, e que remete, no caso das ciências sociais brasileiras, a um raciocínio economicista que a ciência política viu demolida pelo bolsonarismo, porque, enquanto o povão estava votando no Lula, estava tudo maravilhoso. Dá política social, o povo, agradecido, vota. Esse é o raciocínio economicista da ciência política mais hard, aquela que nem é muito a nossa praia. Aí aparece uma outra figura que o povo aqui no Rio foi disparado. Povão, os mais pobres, os mais ferrados votaram no Bolsonaro. As pessoas viraram fascistas, porque essa galera era o eleitorado do Lula também. Aí não dá para entender, é um absurdo. Se aconteceu, tem que ter uma explicação. É a premissa básica da ciência: se é do mundo real, tem que ter uma explicação. A gente foi votar com um livro. Maneiro, mas a gente estava fazendo distinção, “nós temos capital cultural”. “Os burros, votando no Bolsonaro, não têm”. Eu diria que não é um bom patamar para a gente dialogar com a classe trabalhadora, com os jovens, que votaram no Bolsonaro. A ideia é dialogar com eles, não é ignorá-los ou, enfim, continuar deixando-os nas mãos do bolsonarismo, que obviamente faz isso com eficiência. A gente tem que tomar um certo cuidado com o nosso pessimismo, no sentido de que tem algum mínimo de privilégio aqui, não adianta cultivá-lo, a gente precisa estar em diálogo com quem ganha esse discurso, se não a gente… Volto a dizer: a gente vai acreditar numa teoria da conspiração, [de] que sempre fazer política social vá garantir o voto do povo sempre. Isso não existe, nenhuma pesquisa da ciência política do mundo aprova isso. Tem alternâncias de governos, e a gente pintar o Bolsonaro como um monstro invencível não nos ajuda. Está tudo horrível, tudo horroroso, é um retrocesso, fim do mundo. O capitalismo brasileiro leva a isso mesmo, né? A gente fala retrocesso no sentido propagandístico, perda de direitos etc. Mas parece que a gente acreditava que ia progredir sempre no capitalismo brasileiro. Não vai. Não adianta só pintar o pior porque, construindo o Bolsonaro só como pior, a gente não entende por que que os trabalhadores votaram, em sua maioria, no Bolsonaro. A gente precisa entender o processo para saber o que combater.

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