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Polícia Civil de Rio Maria trabalha com duas linhas principais de investigação para a morte com sinais de execução de Carlos Cabral; nossa reportagem esteve lá e conta como os conflitos de terra fazem da região a líder de chacinas no país

Reportagem
13 de junho de 2019
12:06
Este artigo tem mais de 5 ano

Em silêncio, trabalhadores rurais sentados em um arco de cadeiras de plástico evitavam olhar o caixão colocado no meio da sala de reuniões do Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Rio Maria (STTR de Rio Maria), município que fica na região sul do Pará, localizado a 960 quilômetros da capital Belém. A salinha de piso de concreto batido em tons amarelados e forro de plástico branco esburacado era o palco do velório de Carlos Cabral Pereira, 58 anos, presidente do sindicato, morto a tiros na última terça-feira, com claros sinais de execução, segundo a Polícia Civil. Aos poucos, a sala foi se enchendo. Alguns carros de som circularam pelas ruas do município durante todo o dia seguinte após a morte convidando a população a despedir-se de Carlos no velório realizado nesta quarta-feira, 12 de junho. Em um dos momentos mais emocionantes, familiares e amigos entoaram orações e cânticos em memória do sindicalista.

Carlos — ou Cabral, como era conhecido — foi baleado à queima roupa com dois disparos na cabeça e um no braço, em uma rua transversal à rodovia PA 155, que corta Rio Maria ao meio, no bairro Planalto, já quase na saída da cidade. Segundo relato de testemunhas à Polícia Civil de Rio Maria, os tiros foram disparados por dois pistoleiros que chegaram em uma moto preta. Ele morreu a poucos metros da casa onde morava com a esposa e as duas filhas de seu segundo casamento. Até o fechamento desta reportagem, os executores não haviam sido localizados.

Desde 1986, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) contabiliza 39 episódios de assassinato, tentativas de assassinatos e ameaças de morte em Rio Maria contra 15 vítimas diferentes. Cabral é o terceiro presidente do STTR de Rio Maria a ser assassinado desde 1986. Os outros dois — João Canuto e Expedito Ribeiro, também mortos a tiros — são figuras tidas como simbólicas por movimentos e organizações ligados à luta pela reforma agrária no Pará.

A Polícia Civil de Rio Maria recebeu o reforço de policiais da Delegacia de Conflitos Agrários (Deca), do município vizinho de Redenção (PA), e dos núcleos de Apoio à Investigação (NAI) e de Inteligência Policial (NIP) para investigar a morte do sindicalista. Por enquanto, existem duas linhas principais de investigação: a primeira é que a morte de Cabral poderia estar relacionada a denúncias feitas por ele à gestão anterior do sindicato e a segunda se refere à relação do sindicalista com uma ocupação de trabalhadores situada dentro da Terra Indígena Apyterewa, em São Félix do Xingu (PA).

Amigos e familiares se reúnem no cemitério municipal de Rio Maria para acompanhar o sepultamento de Carlos Cabral, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Maria

Mortes impunes — Luzia perdeu o pai, dois irmãos e o ex-marido, executados

Até 1982, os lavradores sindicalizados do município de Rio Maria eram representados pelo Sindicato de Trabalhadores Rurais (STR) de Conceição do Araguaia. No final dos anos 1970, a entidade era comandada por Bertoldo Lira — um fazendeiro e “presidente biônico”, termo usado para caracterizar gestores empossados por determinação expressa dos militares. Em 1980, a primeira morte: o líder da oposição sindical do STR de Conceição do Araguaia Raimundo Ferreira Lima, conhecido como “Gringo”.

Carlos Cabral Pereira, 58 anos, presidente do sindicato, morto a tiros na última terça-feira (11/06), com claros sinais de execução, segundo a Polícia Civil

Em 1982, Rio Maria ganha um sindicato de trabalhadores próprio. Três anos depois, o presidente da entidade, João Canuto, é morto com 14 tiros disparados por dois pistoleiros. O ano era 1985, quando ainda no governo Sarney fora aprovado o primeiro Plano Nacional de Reforma Agrária e as ocupações proliferavam no sul do Pará. A morte de Canuto gerou uma condenação ao Estado brasileiro na Organização dos Estados Americanos (OEA). Em 1990, o dirigente do STTR de Rio Maria Braz Antônio de Oliveira e seu sócio Ronan Rafael Ventura também foram mortos a tiros. No mesmo ano, três filhos homens de João Canuto: Orlando, Paulo e José foram sequestrados. Os dois últimos foram executados por pistoleiros que se passaram por policiais. Orlando fugiu.

“Eu fui baleado, mas consegui escapar pela mata. Eles me procuraram, mas não conseguiram me achar”, relata à Pública Orlando Canuto, presente no velório e sepultamento de Carlos. Ele conta que após a morte do pai, João, ele se aproximou do sindicato. Para ele, sua atuação em defesa dos trabalhadores rurais e da reforma agrária na região motivou o sequestro junto dos irmãos. “Em primeiro de maio de 1990, o Expedito Ribeiro, que assumiu a presidência do sindicato, foi para a Praça da Sé, em São Paulo, denunciar os crimes que ocorreram aqui. Quando foi no primeiro de maio de 1991, eu estava no mesmo lugar denunciando a morte do Expedito”, conta Orlando. Ribeiro foi outro presidente do STTR de Rio Maria a ser executado a tiros. O executor, o pistoleiro conhecido como “Barreirito”, foi preso fora do país, nos EUA, 15 anos depois após ter sido reconhecido por brasileiros que moravam em solo americano. O reconhecimento aconteceu após a exibição de uma reportagem a respeito do caso no extinto programa Linha Direta, da TV Globo.

“Todos esses crimes geraram repercussão nacional e internacional, mas ninguém foi preso. Só no caso do Expedito que teve um pistoleiro que cumpriu pena. Quando o crime é dessa natureza, apurar o crime é muito mais difícil”, conta Luzia Canuto, irmã de Orlando. “Aqui sempre foi complexa essa questão da violência, mas na época era muito mais. Tinha uma organização entre os fazendeiros e listas dos marcados para morrer, programação das mortes”, diz. O próprio Carlos Cabral sofreu uma tentativa de assassinato logo após assumir, pela primeira vez, a presidência do STTR de Rio Maria, em 1991. “Depois de muita morte e muita denúncia, Rio Maria viveu um tempo mais de paz”, conta a professora. Luzia teme que os recentes atos de liberação de posse de armas em propriedades rurais por parte do governo Jair Bolsonaro possam agravar o quadro de violência. “A gente está percebendo um clima muito pesado dos últimos meses pra cá”, diz.

Depois de perder o pai e dois irmãos executados, Luzia lamenta a morte de seu ex-marido Carlos Cabral. Ambos tiveram duas filhas e mantinham uma boa relação. Nas memórias de Luzia, sobram elogios para descrever o antigo companheiro. “Ele era uma pessoa que tinha sonho, pensava nele e nos outros. Principalmente os mais pobres. Do que eu conheci dele, era uma pessoa muito boa, se preocupava sempre em ajudar as pessoas. Essa é a imagem que eu guardo dele”, relembra. “Perdi meu pai, perdi meus irmãos, o Carlos era o pai das minhas filhas. Em nenhum momento eu pensei em vingança. Eu só quero justiça”, desabafa durante o velório.

Orlando Canuto, filho do sindicalista João Canuto, primeiro presidente do sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Maria, assassinado em 1985, ao lado do túmulo do pai no cemitério municipal da cidade

Carlos denunciou gestão anterior do STTR de Rio Maria

Desde 1991, Carlos Cabral teve várias passagens pela presidência do STTR de Rio Maria. Em dezembro de 2005, deixou a presidência do sindicato. Quando voltou ao cargo, em 2012, o sindicalista passou a denunciar a diretoria anterior. O motivo era um convênio firmado pelo sindicato com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e duas construtoras.

O convênio havia sido assinado por Carlos em novembro de 2005 e previa a implantação de 15 km de estradas em assentamentos da região de Rio Maria, mas a execução ficou a cargo da gestão seguinte que assumiu o sindicato. Um acórdão do TCU publicado em 2016 para apurar o convênio concluiu que só 11% da obra foi realizada e que não houve prestação de contas dos recursos recebidos, resultando em um prejuízo de cerca de R$ 1 milhão aos cofres públicos.

Alvo da investigação dos órgãos de controle por ter assinado o convênio, Carlos Cabral se defendia dizendo que não estava à frente do sindicato quando começou a execução das obras previstas no acordo. Ele denunciou a gestão que tomou posse após ele sair da presidência durante os trabalhos de investigação. “Quando ele [Carlos] assumiu em 2012, o sindicato já estava com uma dívida muito grande. E ele estava fazendo um esforço para provar que ele não tinha relação com isso. Ele não aceitava de forma alguma ser responsável”, afirma Regiane Martins, secretária da diretoria do sindicato.

Em janeiro de 2013, ele registrou na Polícia Civil e na Promotoria Estadual de Rio Maria boletins de ocorrência e termos de declaração alegando que estava sofrendo ameaças de morte por causa das denúncias que estava fazendo à diretoria que tomou posse após seu mandato. As ameaças exigiam que ele se afastasse da presidência do órgão. A Polícia Civil investiga se os autores das supostas ameaças relatadas por Carlos podem ter relação com sua execução.

Carlos vivia em ocupação dentro de terra indígena

Em abril de 2007, o governo Lula homologou a Terra Indígena Apyterewa, situada em São Félix do Xingu (PA). Com 773 mil hectares de extensão, a TI foi homologada sobre imóveis antigos de pequenos e grandes posseiros. A criação da TI gerou uma questão até hoje não resolvida pelo governo brasileiro: a desintrusão completa da TI Apyterewa — uma das condicionantes da licença ambiental para a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte. Pela Constituição, as terras indígenas são de uso exclusivo das populações originárias. Portanto, a lei impõe ao Estado a retirada de posseiros e habitantes não-indígenas das terras demarcadas.

No caso da TI Apyterewa, desde 2011 a Polícia Federal e a Força Nacional mantêm a chamada Operação Apyterewa — operações policiais que visam a retirada dos ocupantes não indígenas do local. A retirada não foi concluída: ainda há grupos de pequenos, médios e grandes posseiros ocupando a terra pertencente aos índios Parakanã.

Carlos Cabral mantinha uma pequena posse em uma localidade chamada Paredão, situada dentro da TI Apyterewa. Desde 2016, segundo relatos de pessoas próximas, ele havia se mudado para lá para manter a ocupação junto a outros pequenos posseiros que reivindicam a redefinição dos limites da TI na Justiça Federal por meio de uma associação de pequenos produtores. Os posseiros envolveram-se em conflitos com fazendeiros que mantém grandes propriedades na mesma área do Paredão.

“A gente sabe que os trabalhadores sofreram duas emboscadas lá dentro da área do Paredão, que é uma área que faz limite com a divisa dos índios”, afirma uma fonte próxima a Cabral ouvida sob a condição de anonimato. “Houve troca de tiros. A gente sabe que houve mobilização dos fazendeiros contra ele e outros trabalhadores. Lá é um conflito muito grande.” Todas as fontes próximas a Carlos ouvidas pela Pública afirmam que não havia conflito entre os pequenos posseiros e os indígenas. Outra linha de investigação da polícia paraense apura se os fazendeiros de São Félix podem ter mandado executar Carlos Cabral.

Na última terça-feira, Cabral saiu da área que ocupava em São Félix e veio a Rio Maria para prestar depoimento no Ministério Público do Pará pela manhã. O depoimento era referente a um episódio que envolveu um primo de Carlos conhecido como “Ivan da Marajoara”, de quem Carlos era um desafeto. Dois pistoleiros foram a casa de Ivan em Rio Maria para matá-lo. Segundo informações da Polícia Civil e do MP, os pistoleiros teriam entrado na casa errada e matado dois trabalhadores rurais. Ivan culpava Carlos pelo episódio, mas o ex-sindicalista sempre negou qualquer participação assim como seus familiares ouvidos pela Pública. Cabral foi depor ao MP na condição de testemunha e segundo fontes próximas à investigação, não foi constatado qualquer envolvimento dele no caso pelas autoridades policiais.

Quando voltava para sua casa em Rio Maria, por volta das 16h30, foi executado pelos pistoleiros. Duas testemunhas prestaram depoimentos à Polícia Civil, mas não disseram nada de conclusivo — apenas que ouviram os disparos e viram duas pessoas fugindo em uma moto preta sem placa.

70% dos assassinatos no campo do Pará ocorreram no sul e sudeste do estado

Segundo o levantamento do historiador Airton dos Reis Pereira, da Universidade do Estado do Pará (UEPA), entre 1970 e 2018, mais de mil pessoas morreram em decorrência de conflitos de terra no campo paraense. As mortes, porém, concentraram-se no sul e sudeste do estado: 709 dos 1.010 assassinatos ocorreram nessa região, onde está situada Rio Maria. O levantamento de Airton é feito com base nos dados compilados pela CPT. Essa região também concentra a ocorrência de chacinas em em todo o país. De 1985 a 2019, ocorreram 49 chacinas no campo brasileiro com 229 vítimas — 44% do total no sul e sudeste do Pará.

“É uma região onde você tem um processo de concentração de terra muito grande e onde sempre houve um fluxo migratório de famílias em busca da terra. Esse é um fator”, explica Pereira. “Outro fator é a impunidade: se você pegar desses mais de mil assassinatos em razão da questão da terra no Pará e olhar o número de júris populares relativos que existiram e quem está preso é muito pequeno”, diz Pereira.

Em nota divulgada na última quarta-feira, o Ministério Público Federal do Pará informou que vai acompanhar as investigações sobre a morte do sindicalista Carlos Cabral. Também a CPT divulgou uma nota sobre a morte do sindicalista.

Fotógrafo:

A reportagem é parte do projeto da Agência Pública chamado Amazônia sem Lei, que investiga violência relacionada à regularização fundiária, à demarcação de terras e à reforma agrária na Amazônia Legal. O especial também faz a cobertura dos conflitos no Cerrado, o segundo maior bioma brasileiro.

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