Após alguns meses de tentativas de diálogo com o Governo do Rio de Janeiro, a deputada federal Talíria Petrone (PSOL-RJ) tem ido a público pedir proteção. Escoltada em Brasília por agentes do Departamento de Polícia Legislativa (Depol), ela quer segurança também em seu estado de origem. A preocupação se deve a ameaças de morte que circulam na deep web, o submundo virtual, das quais foi informada em abril pelo próprio Depol, acionado, por sua vez, pela Polícia Federal do Rio.
No fim de abril o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), enviou ofício ao governador Wilson Witzel solicitando a medida pela primeira vez. Em nota à imprensa, o governo respondeu que se trata de “pleito na esfera Federal” e encaminhou a demanda à Superintendência da PF do Rio, que, até o fechamento da reportagem, não havia respondido nem ao governo, segundo seu núcleo de imprensa, nem ao pedido da Pública por informações. Enquanto isso, a parlamentar se sente vulnerável: “fui eleita para exercer meu mandato plenamente e hoje isso não tem sido possível.”
Talíria faz parte de um grupo de pelo menos seis deputados que contam com escolta da Polícia Legislativa devido a ameaças – a Pública tentou confirmar oficialmente o número, mas a Câmara declarou que qualquer informação sobre o assunto é sigilosa “em razão da própria natureza do serviço”. Entre os parlamentares ameaçados, estão dois de seus companheiros de partido, Marcelo Freixo e David Miranda, ambos do Rio de Janeiro – este passou a ser protegido mais recentemente, depois de receber e-mails com “ameaças de morte a ele e à família”, de acordo com sua assessoria. Miranda é casado com o jornalista Glenn Greenwald, fundador do site The Intercept Brasil, que tem publicado reportagens sobre trocas de mensagens entre o ministro da Justiça, Sérgio Moro – a época, juiz – e procuradores da força-tarefa da operação Lava Jato em Curitiba. Somam-se a eles Rodrigo Maia, por chefiar a Casa, e Eduardo Bolsonaro, graças a determinação do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República, que gerencia a segurança do presidente e sua família. Isso faz dessa a legislatura com o “maior número de deputados com escolta”, destacou Sérgio Sampaio, diretor-geral da Câmara, ao jornal O Estado de S. Paulo.
O grupo de deputados escoltados não é formado apenas por parlamentares de esquerda: metade dele vem do PSL, partido do presidente Jair Bolsonaro. Carla Zambelli (SP), a líder do governo na Câmara Joice Hasselmann (SP) e Alê Silva (MG) também circulam por Brasília com proteção do Depol. Zambelli disse ao Estado suspeitar que as ameaças contra ela e o filho tenham origem na deep web, e Hasselman denunciou pelas redes sociais, em novembro do ano passado, ter recebido por correio um pacote no qual havia uma cabeça de porco, uma peruca loira e um bilhete com a mensagem “puta judia, vai sofrer”. Já Silva afirma ter sido ameaçada de morte pelo ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, após denunciar às autoridades esquema de candidaturas laranja na própria legenda, supostamente comandado por Antônio.
Para Talíria, o fato de a maioria dos deputados ameaçados ser mulher não é aleatório. “Há a construção de uma lógica patriarcal em nosso país que produz o entendimento de que nosso lugar não é na política e, se a ocuparmos, podemos ser vítimas de violência”. A deputada defende ainda que “o ataque a mulheres eleitas é um ataque à democracia, seja de qual espectro político for”.
Em que contexto se deram as ameaças que motivaram a sua escolta em Brasília e o pedido de proteção também no Rio de Janeiro?
Desde o início, enquanto figura pública, são muitas ameaças e violências de diferentes formas. A última se insere nesse contexto, que vai desde ameaças nas redes sociais – lamentavelmente cada vez mais comuns – com injúrias raciais, como “negra nojenta, volta para a senzala”, e outras como “você merece uma 9 milímetros na nuca” ou “as milícias vão te matar que nem Marielle”, até ameaças concretas no Rio de Janeiro. Tivemos muitas ligações para a sede do PSOL com ameaças de morte por parte de um homem que inicialmente foi identificado, mas depois não foi mais encontrado pela polícia; fizemos monitoramento de pessoas armadas no comitê de campanha. Tive escolta por um tempo no Rio de Janeiro, depois da execução da Marielle – escolta inclusive da Polícia Militar, vinculada à Secretaria de Segurança Pública. Quando me elegi deputada, até chegamos a pensar em procurar o Depol, mas não fizemos esse movimento porque não queríamos, é ruim para a vida ter escolta. O que aconteceu foi que, há mais ou menos dois meses e meio, no feriado da Páscoa, eu estava em Brasília e o Depol entrou em contato: a Polícia Federal havia orientado que eu fosse protegida porque havia um risco. Em seguida, fizemos algumas reuniões com a Polícia Federal em Brasília e no Rio de Janeiro, e a informação que a polícia passou – não foi ela quem interceptou, recebeu de um outro órgão que não podia dizer qual – é de que havia na deep web a construção de um plano de execução [contra a deputada], e não posso dar muitos detalhes porque é um conteúdo que está sob investigação. A partir daí, o Depol tomou a decisão de me fornecer proteção em Brasília, até por orientação da PF, e o Rodrigo Maia enviou um e-mail para o governo do Rio orientando que fossem tomadas providências no estado, por um entendimento de que é atribuição do Poder Executivo fazer a minha escolta naquele território. Esse primeiro ofício não foi respondido, e tempos depois foi enviado um segundo, porque continuei cancelando agenda, fiquei um tempo em Brasília sem voltar ao Rio – esse também não foi respondido. Fizemos um terceiro pedido, enquanto bancada do PSOL, mais uma vez sem resposta.
Há um jogo de empurra entre governo do Rio de Janeiro e Polícia Federal para a realização da escolta no Rio de Janeiro?
Isso é muito nebuloso enquanto legislação, e é uma questão de procedimento em segurança pública. Essa semana tivemos, inclusive, uma reunião com o Departamento de Polícia Legislativa sobre o assunto, porque eu poderia, por exemplo, pedir para a minha escolta se estender ao Rio de Janeiro – queria muito registrar que o Depol, desde o início, foi excepcional. Só que o Rio de Janeiro tem características muito específicas, com uma realidade de domínio armado do território por milícias, então há o entendimento de que o Depol não tem essa atribuição e nem pernas para isso; em termos técnicos, o ideal é que fosse alguém do estado. Perguntei à Depol e até ontem não havia nenhum documento formal enviado pelo governo do estado negando a escolta – já que eles foram acionados formalmente, é formalmente que deveriam responder. Responderam à imprensa com uma nota [no texto, o governo diz que encaminhou a demanda à PF do Rio por se tratar de “pleito na esfera federal”] – inclusive demoramos para acionar a imprensa, não queríamos fazer alarde porque não é uma situação confortável para mim nem para minha família. A Polícia Federal, por sua vez, afirma que não é atribuição dela. Havíamos pensado em fazer uma reunião com o Ministério da Justiça e o estado do Rio de Janeiro para pensar uma solução objetiva.
Estou cancelando agenda, estou limitando meu exercício parlamentar, e isso é uma afronta muito grande à democracia. Fui eleita para exercer meu mandato plenamente e isso não tem sido possível. Hoje, estou completamente vulnerável no Rio de Janeiro, porque nenhum órgão de segurança me orienta sobre qual passo dar. É muito grave que só dois meses e meio depois o governo do estado se pronuncie e se pronuncie para a imprensa – não fui eu quem pedi [a proteção], foi o presidente da Câmara. Quem tem estabelecido contato permanente comigo é o Depol, e ontem tivemos, inclusive, uma reunião com a Procuradoria-Geral da Câmara para que possamos dar conta [do problema], porque, depois da negativa do Witzel, se ampliaram muito as brechas nas redes, acabei ficando mais vulnerável, essa é a realidade. Estamos preparando uma peça que inclua esses elementos para ser enviada ao governo do Rio, ao comandante da Polícia Militar no Rio e à própria Polícia Federal. É um documento mais detalhado sobre esse histórico de violência. Nesse momento, não há uma resposta institucional sobre a minha proteção no Rio de Janeiro.
Quando está no Rio, que medidas toma para se proteger, além da restrição do seu cronograma?
Hoje tenho um carro blindado alugado pelo partido e pelo mandato, com a verba parlamentar, e a gente sai com mais militantes, mais assessores. Além de restringir a minha agenda, limito tarefas da minha própria equipe, porque preciso sair com uma equipe maior.
Em poucos dias, a Câmara entrará em recesso parlamentar. Como você se sente tendo que voltar ao Rio sem a garantia de proteção?
No primeiro mês do mandato, fiquei mais em Brasília, mas tenho voltado [ao Rio] porque minha vida não pode parar, tenho minha família, meu companheiro, a vida no Rio de Janeiro. Mas isso tem restringido minha circulação pelo espaço público, tenho ficado mais em casa e, quando saio, tento ir acompanhada e voltar rápido. Tem o elemento de não saber de onde a ameaça vem. No Rio de Janeiro, temos muito cuidado em áreas de milícia, mas não saber de onde vem alguém com interesse na minha morte, já que na deep web é difícil a identificação, é algo que me deixa mais vulnerável e com uma gama muito maior de possibilidade de ataques. Sou uma pessoa muito da rua, e antes dessas violências se aprofundarem, ia de bicicleta para a Câmara de Vereadores de Niterói. Eu que sou do espaço público tenho optado por ficar no espaço privado. É uma restrição ao exercício parlamentar e à minha possibilidade de ser quem sou.
Sérgio Sampaio, diretor-geral da Câmara, afirmou que a responsabilidade de proteção de parlamentares é da Polícia Federal e não do Depol, que estaria desfalcado por conta das escoltas. Você sente isso no dia a dia da Câmara?
Estamos vivendo um momento de aumento da violência política. O Brasil já é o país que mais assassina lideranças de direitos humanos no mundo [segundo relatório da organização Global Witness, o Brasil registrou o maior número de assassinatos de defensores de direitos humanos e socioambientais em 2017], e a violência política se ampliou também no meio urbano. A execução da Marielle é um exemplo disso, ela não é vítima de violência urbana, mas de uma execução política no centro de uma capital. Há um clima geral, na minha opinião estimulado pela política do ódio, que amplia a violência política como um todo. E isso aumenta a demanda do Departamento de Polícia Legislativa, que, segundo a direção, não tem agentes para dar conta dessa crescente violência política. Isso reflete justamente o que queremos enfrentar: um retrocesso democrático.
Dos pelo menos 6 deputados federais escoltados pelo Depol devido a ameaças, quatro são mulheres: há você, do PSOL, e mais três do PSL, ou seja, parlamentares de lados opostos do espectro político. Como analisa esse fato? Seu caso tem a ver com os casos de outras deputadas?
Não conheço o caso das outras deputados, mas, de fato, o corpo da mulher no espaço político incomoda muito. Isso provoca ódio em diferentes esferas, ódio esse, queria reforçar, incentivado por uma política de produção de inimigos que é infelizmente um rompimento com o Estado Democrático de Direito. É preciso ampliar a participação de mulheres na política, mas a mulher que o faz é vítima de violência, e isso limita que outras mulheres ocupem a política, então vivemos um ciclo de subocupação desse espaço por nós. Ao mesmo tempo, quem faz essa ocupação fica solitário. Eu gostaria muito que elas [as demais deputadas ameaçadas] se somassem ao enfrentamento à misoginia da qual são vítimas, porque o ataque a mulheres eleitas é um ataque à democracia, seja de qual espectro político for. É muito importante que compreendamos a origem disso: por que mulheres na política provocam tanto ódio? Há a construção de uma lógica patriarcal em nosso país, a lógica colonial não é um detalhe, é muito marcada por violência, é escravocrata, patriarcal, fundamentalista. Ela produz um entendimento de que nosso lugar não é na política e, se a ocuparmos, podemos ser vítimas de violência. É o mesmo mecanismo que leva ao estupro: é o corpo que pode ser tocado. A misoginia está muito explícita nessas violências políticas.
O ex-deputado Jean Wyllys, seu colega de partido, sofreu inúmeras ameaças durante sua trajetória política e renunciou à atividade parlamentar porque não se sentia seguro – deixou inclusive o país. Agora, ele é acusado de ter vendido o mandato a seu suplente, David Miranda, marido do jornalista Glenn Greenwald. Como você vê tudo isso?
O Jean está sendo mais uma vez violentado na sua existência enquanto homem gay e figura pública. Isso é muito grave, é a expressão do atual estágio da democracia brasileira. Ela é jovem, incompleta, não estava amadurecida como em alguns outros países, mas estávamos lutando para radicaliza-la. Me parece que há uma tentativa de interromper essa luta. Um juiz que interferiu num processo que mudou o curso eleitoral, que joga com a parte acusatória, é uma afronta ao Estado Democrático de Direito. Seguimos como se estivéssemos na normalidade, mas isso não é normal; não é normal uma vereadora eleita ter sido executada há quase um ano e meio e a gente não ter uma resposta do Estado. Não é normal um parlamentar eleito viver como o Jean vivia, com as violências que sofria, e não só abandonar o mandato por não ser possível conviver mais com as ameaças, como sair do país – é um parlamentar exilado. A democracia brasileira não está num estágio de normalidade. Temos que interromper esse ciclo antidemocrático urgentemente, e não estamos falando de direita e esquerda, se trata de democracia ou barbárie. É a fronteira perigosa que tem sido rompida pelo presidente da República desde sua campanha com falas que estimulam essa violência.