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Em entrevista à Pública, advogada que participou da entrega da denúncia contra Bolsonaro explica que decisão partiu da necessidade de proteger as populações indígenas

Entrevista
29 de novembro de 2019
14:55
Este artigo tem mais de 5 ano

“O presidente Bolsonaro caminha a passos largos para ocupar seu lugar na história ao lado das figuras mais deletérias que já governaram países”. A afirmação é da advogada Juliana Vieira dos Santos ao explicar a petição que pede a investigação do presidente Jair Bolsonaro no Tribunal Penal Internacional (TPI) em Haia, na Holanda.

Santos é integrante do Coletivo de Advogados em Direitos Humanos (CADHu) que, junto com a Comissão Arns, conjunto de entidades que reúnem juristas e acadêmicos, protocolou nesta semana uma denúncia à instância internacional sobre violações contra os povos tradicionais por responsabilidade do presidente do Brasil. Os acusadores defendem que medidas propostas por Bolsonaro fortalecem e intensificam um processo de genocídio das etnias indígenas no país.

Em entrevista à Agência Pública, a advogada explica as razões que levaram os defensores de direitos humanos entrarem com o pedido. O TPI é uma corte permanente e independente que processa e julga indivíduos que cometem violações dos direitos humanos, como genocídios e crimes de guerra, ou apresentam ameaças contra a paz e a segurança internacionais.

De acordo com Santos, a corte também tem como papel coibir as violações de direitos humanos. “O Tribunal vem julgando, ao longo dos anos, muitos casos graves de situações de conflitos, como extermínio de etnias, países em guerra. O que a gente está pedindo nessa comunicação é que se comece a atuar nessa esfera preventiva”, diz a advogada.

O TPI foi planejado em 1998 na Conferência de Roma e atua desde 2002 em Haia, quando o Estatuto de Roma, que regula suas competências e diretrizes, foi ratificado. Atualmente, 122 estados são signatários do Estatuto, inclusive o Brasil — o país se incorporou por meio do Decreto nº 4.388, de 25 de setembro de 2002, dois meses depois do estatuto entrar em vigor internacional.

A corte já julgou casos como o do ex-ditador líbio, Muammar Kadafi, que chegou a ter prisão decretada pela repressão aos protestos contra o seu governo em 2011. Antes de Kadafi, a primeira ordem de prisão emitida pelo Tribunal contra um chefe de Estado foi contra o ex-presidente do Sudão, Omar al-Bashir, em 2008, acusado de genocídio pelos crimes cometidos na região de Darfur.

Na conversa por telefone, a advogada também defendeu o papel de instituições como o Ministério Público Federal e o próprio Congresso Nacional contra medidas que caracteriza como “processo de desdemocratização’”, como a expansão da Garantia da Lei e da Ordem (GLO) para se aplicar à reintegração de posse no campo.

Os autores da petição em coletiva de imprensa; da esquerda para a direita, Juliana Vieira (CADHu), José Carlos Dias (Comissão Arns), Eloísa Machado (CADHu) e Belisário dos Santos Jr

Confira a íntegra da conversa.

Do ponto de vista do conteúdo, o que sustenta essa petição contra o presidente Jair Bolsonaro no Tribunal Internacional Penal?

A gente apresenta uma série de ações, omissões e discursos do presidente que geram uma situação de incitação ao genocídio e crimes contra a humanidade por conta de violações de direitos dos povos indígenas e tradicionais no Brasil. A gente cita neste documento quais são as ações concretas, como o desmonte das políticas públicas de proteção de direitos socioambientais e das estruturas de fiscalização ambiental no Brasil.

Os exemplos são: as sucessivas tentativas de esvaziamento da Funai [Fundação Nacional do Índio]; a transferência do serviço florestal para o Ministério da Agricultura; a própria reestruturação do Conama [Conselho Nacional do Meio Ambiente], com a redução de 22 para 4 conselheiros que representam a sociedade civil; o contingenciamento de verbas do Ministério do Meio Ambiente para a Funai; a criação de núcleos do governo para rever multas ambientais já aplicadas; perseguição e exoneração de funcionários de públicos de órgãos socioambientais que contrariem essa política de desmontes; a medida provisória que prevê uma licença para desmatamento caso o órgão ambiental não responda em um prazo específico… Enfim, uma série de medidas. Isso tudo cria uma situação real de degradação ambiental.
E depois vem o discurso sistemático do governo de desautorização da aplicação das leis protetivas do meio ambiente e de completo desapreço, tanto em relação aos povos indígenas quanto à participação da sociedade civil. O nosso objetivo é demonstrar que o discurso do presidente e suas medidas concretas têm consequências.

Além disso, a degradação ambiental não caminha sozinha. Ela cria um ambiente de impunidade para permitir ataques de grupos armados, de mineração ilegal, de expansão de agronegócio sobre a floresta e terras demarcadas. Tudo isso são fatos que forçam as comunidades tradicionais a deixarem suas terras ou viverem em uma situação de completa precariedade, que é traduzida pela fome, por assassinatos, pelo aumento da violência, pelo confinamento nas reservas. Isso tudo vem crescendo.
A gente traz ao Tribunal a questão ambiental como pano de fundo para mostrar que, se essa situação continuar nessa escala e com essa gravidade, a gente vai chegar sim aos crimes de genocídio.

E quais são os trâmites de uma denúncia no Tribunal Penal Internacional?

A petição foi apresentada em inglês na quarta-feira à noite para a procuradora-chefe do Tribunal Penal Internacional. Nosso documento é um pedido de abertura de investigação do presidente Jair Bolsonaro. Ele não é propriamente a denúncia, mas um pedido de abertura de inquérito. A procuradora vai analisar esse documento, entender se existem elementos suficientes para a abertura desse inquérito e daí ela pode ouvir o governo brasileiro, testemunhas, contratar peritos e fazer todo o processo investigativo para depois pode apresentar a denúncia.

É como se fosse um inquérito que estamos pedindo que ela instaure. Depois, ela oferece a denúncia para o Tribunal e se inicia, então, um processo [que é] como um julgamento, com direito de defesa e todas as prerrogativas de um processo criminal. No Tribunal Penal, a procuradora pode levar essa denúncia. Funciona como se fosse nosso Ministério Público: entendendo que há elementos suficientes de cometimento de crimes da competência do Tribunal, ela pode oferecer a denúncia. Não existe a necessidade de um Estado, como funciona nos casos da ONU [Organizações das Nações Unidas] ou do sistema interamericano. No Tribunal Penal é diferente porque não são os estados que são julgados, mas o indivíduo.

A petição é justificada dizendo que aqui, no Brasil, a gente não teria um caminho eficiente para fazer esse tipo de denúncia, para apurar essas questões. Então, qual o objetivo de se levar essas denúncias a uma instância internacional?

Eu acho que essa questão é importante porque o presidente Bolsonaro tem demonstrado pouco ou nenhum apreço à independência das instituições. Isso fica comprovado pelas sucessivas interferências na Polícia Federal; com mudança de liderança na investigação de seu próprio filho [o senador Flávio Bolsonaro]; ou mesmo na nomeação de um procurador-geral da República [Augusto Aras] completamente alinhado a suas ideias, em total desrespeito à lista tríplice que a instituição providencia. Então, é por conta dessas questões que a gente entende que seria importante uma investigação independente e imparcial, feita pela comunidade internacional.

E o que, de fato, o Tribunal Penal Internacional pode fazer? Quais são as sanções e punições possíveis?

Instaurado o inquérito e com o entendimento de que existem elementos para a denúncia, o processo criminal no Tribunal Penal termina, se houver condenação, com uma sanção de prisão, que pode ser até 30 anos ou mesmo prisão perpétua, dependendo da gravidade do caso; mas também existe previsão de advertência ou perda de bens. O artigo 77 do Estatuto de Roma que define essas penas, sendo essas as mais graves: prisão e prisão perpétua.

O que é o Estatuto de Roma?

O Estatuto de Roma é o documento internacional ao qual o Brasil é signatário, ou seja, o Brasil participa deste tribunal com a promulgação interna desse documento. Então, é lei aqui no Brasil a gente participar internacionalmente dessa instância.

E é também um documento assinado por todos os países em que se entendeu que existia uma preocupação internacional em relação aos direitos humanos. É um sistema internacional de proteção aos direitos humanos que quase todos os países aceitaram e assinaram para que se evite o cometimento de atrocidades, como aconteceu na Segunda Guerra, por exemplo, de crimes de genocídio e contra a humanidade. Então, o tribunal tem essa competência para olhar para todos os países e entender se, em cada país signatário, está acontecendo algum crime que justifique alguma atuação internacional.

É interessante visualizar que o Tribunal vem julgando, ao longo dos anos, muitos casos graves de situações de conflitos, como extermínio de etnias, países em guerra. O que a gente está pedindo nessa comunicação é que o Tribunal comece a atuar nessa esfera preventiva, que também está previsto no Estatuto de Roma. E é um desafio para esse sistema de proteção aos direitos humanos lidar com um país que tenha algum grau de democracia.

No nosso caso, um país em ‘desdemocratização’. Toda jurisprudência que a gente estudou dos casos de genocídio, o Tribunal se preocupa em entender a questão histórica: como se chegou àquela situação de genocídio. E quando a gente olha para o nosso caso no Brasil, a gente verifica que um dos elementos fundamentais desses casos é o momento da incitação, da desumanização de uma determinada população. E é isso que a gente está vendo acontecer com as etnias indígenas no Brasil. E por isso a nossa preocupação em levar isso, nesse momento, enquanto a gente entende que ainda tem alguma chance de evitar o genocídio.

Ainda que um inquérito não tenha sido instalado, qual a simbologia de levar o caso a essa instância internacional?

Para nós, é muito triste levar um brasileiro para o Tribunal Penal Internacional. É com pesar que a gente faz isso. Mas o presidente Bolsonaro decidiu destruir a Amazônia e, com ela, os hábitos, os modos de vida dessa população indígena. Esse discurso de desautorização da aplicação das leis ambientais é uma preocupação muito grande para nós. A simbologia maior dessa nossa investida é compreender que o presidente Bolsonaro caminha a passos largos para ocupar seu lugar na história ao lado das figuras mais deletérias que já governaram países. Eu acho que é essa a simbologia.

Você faz parte do Coletivo de Advogados em Direitos Humanos (CADHu), que subscreve a petição. Qual tem sido a atuação do grupo, nesse contexto de ameaça aos direitos humanos?

O grupo é autor, por exemplo, do habeas corpus coletivo [para beneficiar gestantes e mães de filhos com até 12 anos que estejam presas preventivamente] no STF [Supremo Tribunal Federal]. Esse foi um caso bem emblemático que inclusive a Eloísa [Machado, professora da Fundação Getúlio Vargas], que redigiu a ação, ganhou um prêmio internacional por conta dessa atuação. O CADHu é uma organização informal, um grupo de advogados que atuam pro bono. Cada um de nós tem sua militância profissional e sua atuação. Nós nos juntamos sempre que entendemos que há necessidade de uma atuação jurídica que nenhuma organização esteja levando adiante. Ou também atuamos a pedido de alguma organização que entenda que exista alguma violação forte de direitos humanos.

E neste contexto de violações….

Estamos com bastante trabalho.[risos]

Nesta semana, por exemplo, tivemos prisões de brigadistas em Alter do Chão, Pará. É um contexto de ofensiva contra os ativistas em direitos humanos e socioambientais. O que pode ser feito para evitar esse tipo de ameaça aos defensores e ativistas?

Eu participo também de outro projeto que se chama Projeto Aliança que é exatamente uma rede de advogados para atuar na defesa de direitos e liberdades individuais, que é um pouco mais estruturado. A gente contribuiu um pouco na articulação dessa questão dos brigadistas. Então, o que a gente tem feito é isso: formado redes, conectado quem tem a expertise com quem precisa naquele momento. É um trabalho de criar trincheiras para resistir a esses avanços de ‘desdemocratização’.

E como vocês enxergam essas medidas como a expansão da GLO para reintegração de posse no campo, integrantes do próprio governo mencionando uma ideia de AI-5 no debate público. O que significam essas medidas e discursos?

Todas essas medidas de ‘desdemocratização’ têm que ser combatidas imediatamente. Não vai haver AI-5 porque o Brasil tem instituições sólidas. O Congresso, por exemplo, tem se mostrado uma instituição sólida para impedir muitas dessas medidas; o Supremo também, com seus problemas, tem se mostrado uma instituição sólida. O Ministério Público Federal também, com suas questões… O Brasil não é o quintal do presidente e, para isso, essas instituições têm se mostrado importantes e atuantes nessas questões. Então, o presidente está tentando, mas a sociedade civil e as instituições estão segurando e se movimentando para impedir esses arroubos autocratas de Bolsonaro.

(Comissão Arns) / Divulgação

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