Quando chegou à Universidade Federal do Pará, em Altamira, na tarde de domingo, dia 18 de novembro, Dom Erwin Kräutler foi abraçado aos montes pelas pessoas que ali aguardavam a abertura do encontro “Amazônia: Centro do Mundo”. O bispo emérito do Xingu, de 80 anos, retribuía os cumprimentos com sorrisos e não negava os pedidos de foto. Seu comportamento cordial ganhou traços de seriedade quando, horas depois, subiu ao palco para dar início ao evento, que reuniu indígenas, ribeirinhos, pescadores, lideranças de movimentos sociais, ativistas e pesquisadores. “Em consequência da nossa fé, da nossa religião e do evangelho, temos a obrigação e a missão de defender a vida, e quando falo em vida não falo apenas da vida humana, mas da fauna e flora da Amazônia”, disse.
Nascido na Áustria, Dom Erwin escolheu o Brasil como casa há 54 anos – 34 deles como bispo do Xingu. Ex-presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) de 1983 a 1991, é hoje vice-presidente da Rede Eclesial Pan-Amazônica (Repam) e foi figura fundamental no Sínodo da Amazônia, realizado em Roma há dois meses. Indicado pelo papa Francisco como um dos 13 membros do conselho pós-sinodal, que tem o papel de monitorar a aplicação das resoluções do encontro, Dom Erwin conversou com a Agência Pública em duas ocasiões: em novembro, em Altamira, e na última semana, por telefone.
Na entrevista, o bispo emérito afirmou existirem duas visões de Amazônia: uma para a qual se trata de um “campo de exploração, província, onde se busca e não coloca nada”, e outra que a considera lugar de vida – “a minha visão”, explica. Segundo o bispo, se a primeira perspectiva prevalecer, a Amazônia desaparecerá, o que causará “um prejuízo total para o Brasil e o mundo”, já que tem função reguladora do regime de chuvas.
O religioso falou também sobre a usina de Belo Monte, cuja última turbina foi inaugurada na semana passada com a presença do presidente Jair Bolsonaro. “Você está diante de um megaprojeto construído sem termos sido consultados, imposto e definido em Brasília e em outros cantos, menos aqui”, critica. Embora a usina seja “fato consumado”, o bispo afirma que segue a luta “pelos direitos humanos e pela dignidade dos povos que vivem ali”. Indagado sobre o que o governo Bolsonaro planeja para a Amazônia, o bispo responde: “Ele não conhece a Amazônia, então como pode ter uma visão? O que não se conhece não se ama, pode anotar. Como posso amar algo que não conheço?”.
A seguir, os principais trechos da entrevista.
Na última semana, quatro pessoas da brigada de Alter do Chão foram presos sob acusação de provocar incêndios na floresta. O presidente Jair Bolsonaro já havia responsabilizado ONGs pelas queimadas na Amazônia em agosto. Como o senhor avalia esse discurso?
É arbitrário, injusto, não tem fundamento ou base. Quando a gente acusa, você tem que ter evidências, mas não tem evidência nenhuma. É inaceitável um presidente da República falar desse jeito sem provas, sem evidências. Acho que as prisões são arbitrárias. Até a WWF [World Wide Fund for Nature/Fundo Mundial para a Natureza] já se manifestou. Essa entidade apoia a ONG Saúde e Alegria. O próprio governador do Pará fez um pronunciamento dizendo que temos que ser muito cautelosos.
Segundo o Inpe, entre agosto de 2018 e julho de 2019, o desmatamento em terras indígenas cresceu 74% em relação ao mesmo período do ano anterior. A terra mais desmatada é a Ituna/Itatá, na região da Volta Grande do Xingu, no Pará, onde vive um povo indígena isolado. Qual o perigo para os indígenas que ali vivem?
Povo isolado, como já diz a palavra, é um povo sem contato com a sociedade não indígena. Acabando com a terra, se acaba com o próprio povo. O meio ambiente é o habitat dos povos, o desrespeito a essa terra implica seu extermínio físico e, com certeza, cultural. O povo não tem como sobreviver tirado de seu chão sagrado, isso é uma agressão ao coração de um povo. Hoje existe, a partir da Presidência da República, uma campanha anti-indígena – se quer rever, inclusive, os parâmetros institucionais, os artigos 231 e 232 da Constituição [que garantem os direitos indígenas sobre sua terra tradicional, organização social, costumes, línguas, crenças e tradições].
Isso significa um retrocesso ao período anterior à Constituição, o tempo dos anos 1930, na época de Getúlio Vargas, quando se falava que os indígenas têm que ser incorporados à sociedade nacional – em outras palavras, têm que deixar de ser índio, perder sua identidade para se tornar, desculpe a expressão, “um brasileiro comum”. Ele não tem nenhuma prerrogativa por ser indígena, é como qualquer cidadão ou cidadã brasileiro. Aí é o perigo. Um povo cuja terra é usurpada e a cultura é desprezada desaparece. Para mim, isso equivale a um etnocídio.
Por que a região da Volta Grande do Xingu é alvo de desmatadores?
Eles se sentem amparados pelas autoridades, então tocam para frente e não têm fiscalização, fazem o que bem entendem. Grileiros e todo esse tipo de gente que não tem responsabilidade com o bem comum, só se preocupam com seu próprio bem. A ganância está por trás de tudo isso. Não se respeita indígenas, quilombolas e ribeirinhos.
Na semana passada, a última turbina da usina de Belo Monte foi posta em funcionamento, apesar do protesto dos povos do Xingu nos últimos anos, dos relatos de impacto negativo sobre suas vidas e das discussões sobre falhas de planejamento. Quais as perspectivas a partir de agora para as populações afetadas pela construção da hidrelétrica?
Para lutar contra Belo Monte é meio difícil porque já é fato consumado, mas nós vamos lutar pelos direitos humanos e pela dignidade dos povos que vivem ali. Você está diante de um megaprojeto construído sem termos sido consultados, imposto e definido em Brasília e em outros cantos, menos aqui – simplesmente fomos confrontados com a decisão de fazer esse megaprojeto. Agora surgem de novo questionamentos – inclusive, no encontro do qual você participou falaram sobre isso –, o povo não está quieto, continua exigindo o respeito pelos direitos humanos, à dignidade humana e ao meio ambiente. Não sei como será o futuro, não temos o apoio maciço das autoridades, porque para muita gente, especialmente para elas, o índio é um impedimento para o tal de progresso. Essa visão perpassa todas essas mentes de ruralistas, agronegócio, mineradoras, madeireiros: para eles, índio é obstáculo. Nós lutamos exatamente contra isso, por isso também somos hostilizados.
O senhor já recebeu muitas ameaças e por anos teve que andar escoltado. O Pará é um dos estados com maior número de defensores de direitos humanos protegidos no país. Com o acirramento da crise socioambiental, qual a perspectiva para quem luta pelo direito à terra – inclusive indígenas e quilombolas – na Amazônia?
Aqueles que lutam hoje não vão deixar de lutar, porque têm uma visão de Brasil diferente, de que a Amazônia deve ser respeitada como habitat de tantos povos. Ninguém vai pendurar as chuteiras, vamos continuar. A resistência continua, sempre resistência pacífica da nossa parte. O Brasil é um Estado de direito, então exigimos os direitos e o respeito à dignidade humana de quem quer que seja. Até hoje estou sob escolta, estão lá fora agora; vou sair para um compromisso e eles vão junto, sempre, e tem vários outros que estão nessa mesma situação. Não é porque a gente quer, não fomos nós que pedimos, a decisão veio naquele tempo, inclusive, da Presidência da República, quando vieram as ameaças bem claras e evidentes.
O senhor ainda sofre ameaças?
Não vou dizer que tem ameaças todos os dias, mas a situação é perigosa porque a gente não sabe o que estão pensando, eles agridem mesmo. A única coisa é que eu sou bispo, então eles pensam três vezes antes de fazer um serviço, porque a repercussão seria muito grande.
Como avalia os trabalhos e resultados do Sínodo da Amazônia?
O sínodo tem duas perspectivas que, no fim das contas, se tornam um objetivo: se trata da Igreja na Amazônia e de novos caminhos para a Igreja. E, quando procuramos novos caminhos, estamos dizendo que os caminhos passados precisam ser renovados, atualizados. A segunda dimensão é a ecologia integral, que não é uma visão da ecologia lá e nós aqui, nós fazemos parte dela e sem o meio ambiente não sobrevivemos. A Amazônia está ameaçada, a ameaça se concretiza cada vez mais e, se não se dá um freio nisso, se não se acaba com a destruição programada, a Amazônia vai desaparecer, gerando um prejuízo total para o Brasil e o mundo. É cientificamente provado que a Amazônia tem uma função reguladora do clima planetário, então, ela não mais existindo, as consequências são nefastas. As chuvas do Sudeste e do Sul vêm daqui, e, se você tira toda a vegetação, não se produz mais água e as chuvas ficam ausentes. Sem chuvas, o que vai acontecer? Vai desertificar. Esse é o grande perigo. Não estou imaginando ou colocando uma fantasia, isso é cientificamente provado. Você não pode mais dizer “isso não me interessa”, porque é o interesse das futuras gerações.
De que forma a ecologia integral defendida pelo papa Francisco deve ser aplicada à Amazônia pela Igreja Católica, em sua opinião?
Os projetos para salvar a Amazônia têm que ser governamentais. O papel da Igreja é a conscientização e a sensibilização do povo. Tem um sistema capilar de comunidades espalhadas pela Amazônia, só aqui no Xingu tem 800. Colocar a ecologia integral para vivermos e anunciarmos um mundo diferente é nossa missão. Há uma visão da Amazônia que é só para explorar; a minha visão é que a Amazônia é para viver. Quando digo “para viver”, é sobre os povos que habitam a Amazônia, mas também toda a fauna e flora – a vida é a questão central. A outra visão é a Amazônia para explorar, e o atual governo, neste ponto, é bem claro: quer abrir a Amazônia para empresas nacionais e multinacionais, o que significa arrasar. Sempre digo: essa visão não pensa no futuro e nas futuras gerações. Você vê uma criancinha como aquela que está no colo da mãe, me pergunto: quais serão as condições de vida para essa gente? Estou com pena das crianças de hoje daqui a 30 anos, porque, se continuarmos desse jeito, elas não terão condições de sobreviver – e isso é uma responsabilidade nossa.
O senhor chegou ao Brasil há 54 anos. Ao longo dessas décadas, como avalia o contexto dos conflitos de terra na Amazônia? E como descreve a situação hoje?
O problema do Brasil é a falta de uma política fundiária. A ganância pela terra, a ambição é tão grande que o pequeno não tem lugar. Durante todo esse tempo em que estou aqui, tem problema de terra. Tem tanta terra, mas tem também a cobiça de ter imensas fazendas em detrimento do pequeno agricultor e sua família. Não me lembro qual presidente foi que se encontrou com o papa Paulo VI, e ele mesmo, o papa, disse que os problemas do Brasil só se resolvem mediante uma política fundiária, porque, do jeito como está, o pequeno é expulso. Quando falamos em ecologia, também falamos dos pecados da ecologia: por exemplo, os dez mandamentos falam em não matar, e muita gente pensa em Caim e Abel, ou seja, um homem se levanta contra outro homem e o mata. Mas tirar as condições de vida de povos e famílias inteiras é matar, é também contra o mandamento de Deus. Não furtar: ora, quando expulsamos pessoas que há muitos e muitos anos moram em um determinado lugar, desde o tempo do tataravô, é também roubar as condições de vida daquelas pessoas. Tudo isso tem uma consequência até para a moral, para a ética da pessoa, e a Igreja tem que apelar para isso para que as pessoas pensem e se livrem desse pecado ecológico.
Essa é uma pergunta complexa, mas qual seria a solução para esses conflitos?
Claro que é complexo, mas a solução seria uma política fundiária que leve em conta também o pequeno agricultor e sua família. Hoje, a ideia é fazer grandes plantações e fazendas, dizem que a agricultura familiar não serve porque não dá muito resultado. Eu nunca entendi isso. Se tem mil famílias trabalhando e se sustentando com seu próprio trabalho, por que ter fazendas enormes para soja, cana-de-açúcar ou gado? Todo mundo é expulso e só ficam o boi e algumas máquinas. Isso é um absurdo, é contra o Brasil e contra os brasileiros.
O senhor foi crítico dos governos de Lula e Dilma Rousseff pelas políticas para Amazônia, não só ambientais, mas também voltadas para os povos da floresta. Acredita que as decisões tomadas nesses governos contribuíram para que a situação chegasse ao ponto em que se encontra hoje?
De certa maneira, sim. O PT falava muito na política fundiária, mas, no fim das contas, o que aconteceu? Não estou falando que o PT é pior ou melhor ou qualquer coisa do gênero, mas o que aconteceu foi que nunca ninguém teve coragem de meter a cara e dizer “vamos resolver esse negócio”. Esse é o problema. Entra governo e sai governo e é tudo do mesmo jeito. O sistema neoliberal não prioriza o pequeno. Nós estamos numa situação de casa-grande e senzala, isso nunca mudou, não é nem de esquerda e direita. Casa-grande e senzala são eles que mandam e o pobre que se dane.
O senhor disse que nenhum governo teve coragem de fazer a reforma agrária. Levando isso em conta, há diferenças entre os governos do PT e o de Jair Bolsonaro?
Aí não tem comparação, de jeito nenhum. Nem vou comparar porque não dá. É extrema direita conta centro-esquerda – não vou dizer que o PT era esquerdista, isso é papo. Inclusive, o Lula sempre negociou com gente que eu não achava justo, extrema esquerda nunca foi. Para mim, essa extrema direita agora nos faz retroceder muito na história do Brasil.
O que o governo Bolsonaro planeja para a Amazônia, na sua avaliação?
Ele não conhece a Amazônia, então como pode ter uma visão? O que não se conhece não se ama, pode anotar. Como posso amar algo que não conheço?
É uma visão desenvolvimentista?
Sim. A Amazônia é campo de exploração, província, onde se busca e não se coloca nada. Nós, do Pará, somos o mais rico estado do Brasil em solo e subsolo, em termos de minérios e tudo. O que o Pará, na realidade, recebeu em troca? Quantos comboios andam neste momento para levar minério para fora?
Qual o modelo de desenvolvimento possível para a Amazônia, na sua opinião?
Estive agora em São Félix do Xingu e viajei 1.016 quilômetros num dia. Por onde passei, com raras exceções, não tem mais a floresta tropical. Tirando reservas e terras indígenas, é tudo praticamente para gado. A primeira coisa para o progresso da Amazônia é parar definitivamente com o desmatamento, a floresta em pé tem muito mais valor do que o gado que está por aí. Neste ponto, tem que ter uma fiscalização muito mais exigente e presente, exatamente para evitar esses abusos, essa destruição. Depois, a Amazônia não vai ficar debaixo de uma redoma: ela tem suas riquezas, que têm que ser exploradas de maneira racional e não inescrupulosa, como está sendo feito agora. Não se diz que não se pode fazer nada na Amazônia, de jeito nenhum, mas a exploração predatória feita agora tem que parar e tem que haver projetos que realmente condizem com esse bioma.
O senhor vê isso acontecendo num futuro próximo?
Eu espero. Estamos numa encruzilhada: se não acontece alguma coisa, a Amazônia já era, e é irreversível para o Brasil e para o mundo.
Quais respostas os povos da floresta oferecem à crise socioambiental que enfrentamos? Quais os maiores ensinamentos que o senhor aprendeu com eles ao longo desses anos?
Esses povos cuidam da floresta porque é seu habitat. Com raras exceções, são guardiões da floresta e da Amazônia. Sua contribuição é exatamente esse amor ao meio ambiente, aos rios – que não querem ver poluídos – e, nesse ponto, estão nos dando um grande exemplo, que o mundo branco – esse mundo em que nós vivemos – não quer respeitar. Como já te falei, estive no Alto Xingu, onde existe o rio Fresco, grande afluente do Xingu. Conheci esse rio com águas cristalinas, agora é um café com leite. A desgraça dos garimpos e da mineração deixa atrás de si uma cratera e tudo isso vai para a água, o que prejudica, logicamente, a população. A luta pela pureza, vamos dizer, do ar, dos rios e da água, a luta pela defesa da floresta nós aprendemos com eles.