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Agência de jornalismo investigativo
Entrevista

Maria Alyokhina: “Não temos armas. Temos corações, somos honestos e queremos continuar resistindo”

Integrante do coletivo punk Pussy Riot falou com a Pública sobre seu novo livro, religião e política, as semelhanças entre os governos de Putin e Bolsonaro e sobre resistência

Entrevista
30 de janeiro de 2020
18:12
Este artigo tem mais de 4 ano

“A gente subiu rápido as escadas, deixou as mochilas perto dos portões reais que separam o altar. Eles simbolizam os portões do Paraíso. Uma mulher só pode estar no trajeto de tapete verde, a chamada solea, se estiver ali para limpá-la. Ou se for uma noiva no dia do casamento. Na Rússia, não existem sacerdotes mulheres. Na Rússia, existe o Pussy Riot”.

Assim Maria “Masha” Alyokhina descreve os segundos anteriores ao episódio que mudaria o rumo de sua vida e faria o mundo conhecer o coletivo russo de balaclavas coloridas, em seu novo livro “Riot Days”, que está sendo lançado no Brasil pela editora Hedra.

Em 21 de fevereiro de 2012, Maria Alyokhina, Nadezhda Tolokonnikova e Yekaterina Samutsevich entraram na Catedral do Cristo Salvador, sede da igreja ortodoxa russa em Moscou e gravaram um clipe para a música “Punk Prayer — Mother of God, Chase Putin Away!” (Oração Punk — Mãe de Deus, enxote Putin em tradução livre). As três foram condenadas a 2 anos de prisão e o caso teve grande repercussão, principalmente por meio da campanha “Free Pussy Riot”, conduzida por artistas do mundo todo. Recentemente, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos condenou a Rússia a pagar 16 mil euros por danos morais a Alyokhina , o mesmo valor a Tolokonnikova e 5 mil a Samutsevich, além de 11.760 euros em despesas jurídicas.

Em seu novo livro, Masha conta sobre os bastidores da ação, sobre sua prisão, o tempo na solitária, a greve de fome e os direitos que lhe foram negados no período, com frases, pensamentos e desenhos. Como explicou em entrevista à Agência Pública, a publicação “não se trata de uma tese ou uma grande peça de literatura sobre o sistema prisional russo. É a história de três garotas que escolheram fazer algo”. O livro vem embalado com uma balaclava, produzido por mulheres da Cooperativa Libertas, composto por egressas do sistema prisional de São Paulo.

No Brasil para o festival “Sem Censura”, promovido pela Prefeitura de São Paulo, que terá show do Pussy Riot nesta quinta-feira (30), Masha conversou com a Pública sobre religião e política, as prisões de ativistas na Rússia, as semelhanças entre o governo Bolsonaro e o governo Putin e fez questão de terminar cada fala com uma mensagem de resistência, inclusive para a igreja: “O cristianismo é sobre amor, é sobre liberdade. Não é sobre censurar quem pensa diferente”.

Para as mulheres e meninas que se inspiram com a trajetória do Pussy Riot, a mensagem é curta e clara: “A hora de agir é agora”.

Maria Alyokhina, conhecida como Masha, veste a balaclava que vem junto com o seu livro, publicado nesta semana no Brasil

O show que vocês fizeram em 2012 dentro de uma catedral foi, entre outras coisas, uma crítica ao apoio das Igrejas ao Putin. Estamos vivendo uma situação parecida no Brasil. O Bolsonaro foi eleito com grande apoio de igrejas evangélicas e seus representantes no Congresso ameaçam os direitos humanos, direitos LGBT e das mulheres, além de várias formas de censura que estamos vendo acontecer. Você vê similaridades entre os governos do Putin e de Bolsonaro nesse sentido?

Eu vejo similaridades não apenas nesses casos. O Patriarca Kirill, bispo da Igreja Ortodoxa Russa promoveu o Putin desde antes das eleições. É por isso que fizemos uma música pedindo que Santa Maria punisse o Putin.

Nosso país tem uma história muito trágica com a Igreja. Padres foram assassinados, igrejas foram destruídas e pessoas foram enviadas para campos de concentração ou mortas apenas por terem crenças diferentes. E menos de 30 anos depois do fim da União Soviética a Igreja promoveu um ex-oficial da KGB para o poder — o Putin.

E as pessoas na igreja que o apoiam e apoiam o Patriarca Kirill são oligarcas, fazem parte do establishment.

O que queremos dizer, nosso conselho para vocês é para nos unirmos e mostrarmos que outra igreja é possível. Existem outras igrejas que não apoiam censura, que não apoiam o assassinato de opositores, como o da Marielle Franco aqui no Brasil.

E os processos criminais que sofremos na Rússia ajudaram a mudar isso. Hoje temos pessoas diferentes nas igrejas.

No último verão, tivemos enormes protestos em Moscou que foram duramente reprimidos pela polícia. Eles [os policiais] bateram nas pessoas, quebraram seus ossos e as espancaram. Então, um padre do centro da cidade abriu as portas de sua igreja para acolher os manifestantes. E fechou as portas para a polícia.

Imagens desse padre, da igreja e das pessoas sendo acolhidas circularam por todos os lugares. É isso que eu acredito que o cristianismo deve ser. O cristianismo é sobre amor, é sobre liberdade. Não é sobre censurar quem pensa diferente. No Brasil, como um país com muitos fiéis, isso pode ser útil. Estamos em 2020. Faz oito anos desde nossa reza punk na catedral. Faz cinco anos desde que fomos presas por dois anos. Percorremos um longo caminho.

Você acha que o governo do Putin serve como modelo para outros governos autoritários que estão se espalhando pelo mundo?

Regimes autoritários são parecidos e a maneira que ditadores agem com relação ao povo também. Mas o mais importante é o que podemos fazer frente a isso. Acho que a coisa mais poderosa que podemos fazer é construir comunidades. É mais forte que qualquer barreira de linguagem ou fronteiras. Ontem mesmo eu conversei sobre meu livro com ex-presidiárias de São Paulo. As condições que elas vivem aqui são muito sérias e também muito parecidas com as que vivemos na Rússia. Por isso que é importante nos unirmos. É importante colaborar e escutar umas às outras.

E a questão LGBT na Rússia? Gostaria que você falasse sobre a Lei da “Propaganda Gay” e também gostaria de saber se a homofobia já era tão grave na Rússia antes do Putin ou se é parte de sua agenda pessoal. Pergunto porque temos no Brasil uma política anti-LGBT com o Bolsonaro, mas mesmo antes já éramos um dos países mais violentos para pessoas LGBTs. Então isso não é novidade para nós…

A mesma coisa na Rússia. Não é a agenda do Putin, mas seu governo e o chamado parlamento — que não é parlamento porque está sob a administração do presidente — que faz leis que combatem quaisquer pessoas que pensem diferente ou que seja diferente do padrão Putin. Essa “lei da propaganda gay” oficialmente fala sobre não fazer propaganda gay para crianças. Seria para “proteger as crianças de se tornarem gays”. Informalmente é puro ódio. Hoje na Rússia se você é gay você pode ser morto. Temos suicídios de jovens e não podemos combater porque se você trabalha com a questão LGBT com crianças você pode sofrer processos criminais.

E o que acontece é que as pessoas estão deixando o país. É terrível ter um país onde as pessoas são forçadas a cruzar a fronteira se não concordam com o governo. Isso não pode ser assim. Espero que não aconteça também no Brasil.

Na Rússia as pessoas começaram a deixar o país. Intelectuais e pesquisadores de Moscou e São Petesburgo sentem que o país não os quer. Muitos perderam os empregos. Outros temem por suas vidas e decidem se mudar.

Eu já acredito que esse país é nosso e por isso devemos lutar para mudá-lo. Mesmo com pequenos passos, porque não temos uma comunidade tão grande ou armas. Mas temos corações, somos honestos e queremos continuar resistindo.

Essa lei que você mencionou não é a única coisa contra os LGBTs na Rússia. Tivemos o caso de uma moça que tinha um teatro e escreveu uma peça infantil satírica sobre papéis de gênero chamada “Azul e Rosa”. Algo ironizando o “meninos vestem azul e meninas vestem rosa” — sim, eu ouvi falar da ministra de vocês. E essa moça está enfrentando um processo criminal no qual pode ficar até 6 anos presa por ter escrito a peça e por ter publicado pinturas de aquarela de vaginas em seu Facebook. Em Londres e em outros países da Europa ela foi nomeada para diversos prêmios. Estamos agora juntando assinaturas e dando visibilidade para esse caso. E não foi o Estado que causou isso de primeira, foram pessoas preconceituosas e com ódio que denunciaram ela para a polícia.

Maria Alyokhina é membro do grupo de punk rock Pussy Riot

As imagens e propagandas são muito importantes para a manutenção do governo Putin. Você foi presa algumas vezes, não por ter “depredado um patrimônio”, por exemplo, mas por atentar contra esses símbolos que são caros pra eles. Pode falar um pouco sobre isso?

Oficialmente eu fui acusada de intolerância religiosa. O que é muito estranho, porque sou cristã e não tenho ódio contra cristãos. Da última vez eu estava em uma ação voluntária com outras meninas da igreja em um hospital e fui presa. E fui presa outras vezes por simples ativismo. Outra vez eu fui presa durante um ato, mas eu estava apenas na rua, mexendo no celular. Eles me prenderam pelo meu rosto, porque a polícia me conhece. Fui multada em 2 mil euros só por ser quem eu sou. Foi um cara da polícia política, que é um grande departamento especial da polícia russa que trabalha como ativistas, fazendo provocações e violências. Ele correu, fez uma selfie comigo e correu para a polícia para me mandar prender.

Você pode falar um pouco mais dos movimentos de resistência, especialmente o LGBT e o feminista? Como eles têm se articulado e na sua opinião, são eles os maiores movimentos de resistência contra governos autoritários hoje?

Na Rússia temos diferentes movimentos protestando juntos. Não posso dizer que um é mais importante que o outro. O ponto principal que lutamos é pelos direitos humanos e liberdade para os presos políticos. Todos concordamos com isso e também pedimos por eleições livres.

Não sei se vocês estão sabendo, mas o Putin decidiu mudar a Constituição recentemente e criar um novo cargo que será vitalício e que vai controlar tudo, até o presidente. É como uma reconstrução do sistema soviético. E da última vez para superar o sistema demorou um século. Então ver que eles estão tentando fazer isso de novo é chocante e muito triste. Mas ao mesmo tempo entendemos que precisamos enfrentar isso juntos.

“Acho que a coisa mais poderosa que podemos fazer é construir comunidades”, afirma Maria Alyokhina em entrevista à Agência Pública

Como uma ex-prisioneira política, como está essa questão na Rússia hoje?

Muito pior que em 2012. Temos centenas de pessoas presas hoje. Mas a sociedade também está mais preparada. Temos a mídia e ativistas de direitos humanos denunciando os abusos dos últimos anos e lutando pelos prisioneiros políticos. As pessoas começaram a se unir muito mais do que antes porque agora elas entendem que se hoje não é com elas, amanhã pode ser. Não importa quais são suas visões políticas ou quem você é, com o que você trabalha, pode ser qualquer um.

Então vamos para as ruas, vamos para a corte defender quem está sendo preso. Estamos nas redes sociais, fazendo notícias, atos, arte. São muitos apoiadores e nos últimos anos alguns músicos muito populares, como rappers, se juntaram aos protestos fazendo música nos atos. Eles estão arriscando tudo que têm e podem ser punidos a qualquer minuto, mas eles entenderam que deveriam se posicionar e que se não o fizessem seria uma vergonha.

É legal porque eles não fazem apenas músicas e performances, mas eles vão nas prisões, pegam aquelas filas de horas e levam comida, participam. É um outro nível de colaboração. Há três anos não era assim. E também padres. Mais de trezentos padres assinaram cartas pedindo pela soltura de presos políticos. E eles tiveram problemas por isso, mas não voltaram atrás.

Você pode falar um pouco do seu livro?

Estou muito feliz que meu livro está em português agora. Isso aconteceu muito espontaneamente. Muito legal. Tentamos escrevê-lo da maneira mais simples possível, porque não se trata de uma tese ou uma grande peça de literatura sobre o sistema prisional russo. É a história de três garotas que escolheram fazer algo. E eu espero que outras ações aconteçam depois desse livro.

Pussy Riot é uma grande inspiração pra muitas mulheres e meninas brasileiras. Alguma mensagem pra elas?

A hora de agir é agora.

Fotógrafo:

Colaborou Ethel Rudnitzki

Julia Dolce/Agência Pública
Julia Dolce/Agência Pública
Julia Dolce/Agência Pública

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