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Em 28 dias, na cidade do Mato Grosso do Sul onde fica a reserva mais populosa do país, contaminados por coronavírus aumentaram 3.500%

Reportagem
10 de junho de 2020
14:57
Este artigo tem mais de 4 ano

Todos os dias, ônibus de vários municípios da Grande Dourados, no Mato Grosso do Sul, desembarcam os mais de 4 mil funcionários da fábrica da JBS Foods Seara em Dourados, a 233 km da capital Campo Grande. Mais de 30 desses trabalhadores vivem na reserva indígena de Dourados, localizada a menos de 5 km do centro da cidade. Foram trabalhadores indígenas da JBS/Seara e seus familiares os primeiros infectados pelo coronavírus no território.

O primeiro caso positivo foi uma mulher indígena de 35 anos que trabalha na planta da empresa em Dourados. Após a confirmação, as equipes de saúde da reserva passaram a testar os demais funcionários da JBS e seus familiares. Menos de 48 horas depois, já havia dez casos entre os indígenas, sendo sete de trabalhadores e três de crianças de familiares, segundo o Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

Apenas 28 dias depois do primeiro diagnóstico, em 13 de maio, a reserva Francisco Horta Barbosa, a mais populosa do país, já contabiliza 86 casos confirmados de coronavírus, segundo o último boletim do município. Desde que o primeiro caso indígena foi registrado, o número de infectados do município, que era de 21 pessoas, teve um aumento de mais de 3.500%.

Além disso, a cidade de Dourados já ultrapassou a capital Campo Grande e é o novo epicentro da doença no Mato Grosso do Sul, com 756 confirmações. No entanto, o comércio do município segue funcionando.

Habitada por cerca de 15,8 mil indígenas, a Reserva Indígena de Dourados (RID) é dividida pelas aldeias Bororó, onde vivem os povos Guarani-Kaiowá e Ñandeva, e pela aldeia Jaguapiru, de maioria Terena. Há ainda pelo menos 1.200 indígenas em acampamentos e em outras aldeias em Dourados. Na reserva, os milhares de indígenas se aglomeram em uma área de cerca de 3,5 mil hectares, cortada pela rodovia MS-156.

A disseminação da doença na RID preocupa as lideranças da região, que logo após a confirmação dos primeiros casos publicaram uma carta que fala em “um massacre anunciado com a chegada da Covid-19”. O texto, assinado por conselhos das etnias Guarani e Kaiowá, ressalta a fragilidade do sistema de saúde indígena na região.

Para a enfermeira e líder jovem Indianara Ramires Machado, faltou empenho das instituições locais para criar condições antes que o vírus chegasse, e as equipes de saúde e lideranças indígenas estão “tendo que trocar o pneu com o carro andando”. “Nós sabíamos que uma hora ou outra ia chegar e, quando chegasse, a gente teria que estar minimamente preparado, e não teve isso. E agora estamos nesse momento que não tem mais tempo de ficar pensando muito”, afirma a Guarani-Kaiowá, presidente da Ação dos Jovens Indígenas de Dourados (AJI).

Indianara Ramires Machado é presidente da Ação dos Jovens Indígenas de Dourados

Para tentarem impedir a disseminação do coronavírus, os moradores da Bororó e da Jaguapiru têm promovido bloqueios em várias entradas da reserva com o objetivo de impedir a circulação de não indígenas na área. As barreiras sanitárias, porém, não contam com apoio do poder público e faltam equipamentos e legitimidade para os indígenas.

Pela proximidade, o trânsito de pessoas entre a reserva e a cidade é bastante intenso. Sem terras adequadas para plantio e sem rios, a esmagadora maioria dos indígenas trabalha na área urbana de Dourados. Majoritariamente pobres e com baixa instrução, vários fazem serviços de limpeza, trabalham como garis e na construção civil. Muitos dependem de programas de distribuição de renda, como o Bolsa Família, e da doação de cestas básicas.

Reserva de Dourados é bem próxima à zona urbana do município e a maioria dos indígenas trabalha na cidade

Frigoríficos no centro da disseminação

Foco dos primeiros casos de coronavírus da reserva indígena, a planta da JBS Foods Seara no município está no centro da disseminação da doença também em outras cidades da região da Grande Dourados. Segundo informações do Ministério Público do Trabalho (MPT) do Mato Grosso do Sul, na última segunda-feira (8) já havia pelo menos 412 trabalhadores da fábrica com diagnóstico positivo, incluindo os casos assintomáticos. Além de funcionários que habitam a RID, há moradores de Fátima do Sul, Vicentina, Itaporã, Glória de Dourados, Deodápolis, Rio Brilhante e Douradina que trabalham na empresa e contraíram o coronavírus.

O prefeito de Douradina, Jean Sérgio (PTN), cidade que também tem uma aldeia com indígenas que são funcionários da JBS e que foram infectados, pediu a interdição temporária da indústria. A JBS afastou todos os indígenas do trabalho e prometeu testar todos os funcionários da planta, voltada para a produção de cortes e derivados de carne suína.

A planta da JBS localizada no município de Dourados foi o foco dos primeiros casos de coronavírus na reserva indígena

Os numerosos casos de contaminação em frigoríficos do Mato Grosso do Sul acenderam o alerta do MPT. O órgão, que em abril já havia notificado mais de 30 indústrias para que elas seguissem práticas sanitárias para frear a doença, solicitou nova inspeção nas plantas de empresas locais para verificar se os protocolos eram efetivos e estavam sendo cumpridos.

Segundo dados do MPT, no final de maio havia 157 funcionários infectados em outros três frigoríficos da região, sendo um deles em Dourados, um em Bonito e um em Guia Lopes da Laguna – cidade que tem a maior incidência de casos no estado.

Apesar da grande quantidade de casos, que em 29 de maio representavam 25% do total do estado, a manutenção do funcionamento dos frigoríficos foi defendida pelo procurador do MPT Jeferson Pereira em coletiva de imprensa. Para ele, a situação nas indústrias “sob constante vigília” e os protocolos estipulados nos planos de biossegurança “são efetivos”. O procurador, que defende “equacionar economia, saúde e sustento dos trabalhadores”, destacou doações feitas pela JBS a um hospital de Dourados e criticou a gestão da prefeitura do município.

Procurada, a JBS afirmou que “adota um rigoroso protocolo de controle e prevenção da doença em suas unidades” e que vai doar R$ 21 milhões para o combate ao coronavírus no Mato Grosso do Sul, sendo parte desses recursos destinada à Casa de Cursilho e ao Hospital da Missão, em Dourados.

A JBS de Dourados não é a única do país a estar no centro da disseminação de coronavírus. Uma planta da empresa em Passo Fundo (RS) ficou interditada por quase um mês, após ter tido 94 confirmações entre funcionários, além de sete mortes de colaboradores ou familiares. Na também gaúcha Caxias do Sul, procuradores do MPT pediram a interdição da indústria após a confirmação de 23 casos e a constatação de irregularidades. Uma planta em São Miguel do Guaporé (RO) também teve as atividades paralisadas após dezenas de funcionários terem contraído a doença. Em Ipumirim (SC), uma fábrica da JBS ficou mais de dez dias interditada após 86 trabalhadores terem testado positivo – segundo auditores fiscais, parte deles continuou trabalhando mesmo depois do diagnóstico.

“Empurra-empurra” dos órgãos

Indígenas da reserva de Dourados enfrentam escassez de água em maio à pandemia de Covid-19

A explosão de casos de coronavírus na reserva de Dourados provocou reação do Ministério Público Federal (MPF) no Mato Grosso do Sul. O órgão ingressou com uma ação civil pública solicitando que a União seja obrigada a adquirir e distribuir equipamentos de proteção individual (EPIs) ao Dsei do estado. A medida veio depois de recomendação feita ao Dsei e à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) não ter sido cumprida. A Justiça Federal em Dourados negou a liminar urgente do MPF e vai ouvir o governo federal antes de decidir sobre a ação.

Para o procurador responsável pela ação, Marco Antônio Delfino, há um jogo de “empurra- empurra” dos órgãos públicos em relação à saúde indígena, que é sempre “relegada a um problema da Sesai”. “Justamente nos momentos de tensão, de demanda por serviços, em que você teria que cobrar do gestor municipal ou estadual, se joga para a saúde indígena”, explica.

Além disso, ele aponta os povos indígenas como os mais afetados pela descontinuidade do Ministério da Saúde, já que a Sesai está ligada à pasta. “Isso acaba impactando nessa lentidão de resolução. Eu participei de várias reuniões, e uma das críticas é de que houve uma demora da Sesai em reconhecer transmissão comunitária. Se estabeleceu um plano de contingência que estava anterior à fase efetiva. Eles não acompanharam o avanço da doença”, aponta o procurador.

A demora fez com que equipamentos importantes para o atendimento inicial de pacientes com Covid-19, como oxímetros e cilindros de oxigênio, só chegassem nos últimos dias. Segundo a responsável pela atenção primária do Dsei-MS, os equipamentos não fazem parte da estrutural usual dos postos de saúde. “Dentro da atenção básica, esses materiais não são de rotina, e a gente ainda não teve tempo de equipar nossas unidades dentro dessa necessidade que surgiu. A gente está instruindo um processo agora para a aquisição, mas em algumas unidades, como de Dourados, houve contrapartida de estado, município e JBS, e eles emprestaram oxímetros e cilindros de oxigênio”, afirma Eliete Domingues, chefe da atenção primária do Dsei-MS.

Os EPIs, fundamentais para as equipes de saúde e assistência social, só chegaram nos últimos dias, graças a doações da sociedade civil. Além disso, há quantidade limitada dos equipamentos de proteção individual, e o problema ainda não foi sanado definitivamente. “Houve uma descentralização dessa aquisição, quando claramente podia ter havido por parte do governo uma priorização. O governo está nesse processo ainda negacionista. Brasília só vai reagir no dia em que começarem a morrer as pessoas”, diz o procurador Marco Antônio Delfino. Até o momento, não houve óbitos de indígenas em Dourados, mas o último boletim aponta três casos de internação.

Na comunidade, profissionais tiveram que atender famílias em situação de vulnerabilidade sem equipamento adequado, conta uma fonte à Agência Pública, que pediu para não ser identificada. “Depois que uma pessoa testou positivo, a mãe dela [nos procurou] e a gente não tinha nenhum equipamento, no máximo a nossa máscara de tecido. Foram dias tentando conversar com a gestão, a gestão só ignorando, e já com caso positivo lá. A gente não tinha luva, não tinha nada. Aí, depois que essa pessoa foi lá, batemos o pé, e aí mandaram uns negócios para tapear, mas que também não protegem nada”, relata.

Além de dificuldades com EPIs e equipamentos, os indígenas enfrentam problemas com atendimentos de emergência. Na última quarta-feira (3), o cacique da aldeia Jaguapiru, Izael Morales, o “Neco”, estava acompanhando a equipe de saúde na notificação de uma família com pessoas contaminadas, para que elas ficassem em casa. Chegando ao local, uma senhora diagnosticada com Covid-19 estava se sentindo mal, com falta de ar e tosse. Morales ligou primeiro para o Corpo de Bombeiros e depois para o Samu, mas o médico responsável pelo serviço se recusou a mandar uma ambulância para o local. Com a negativa, ele próprio transportou a mulher para um hospital da região.

Vulnerabilidade social e isolamento

Em carta, lideranças Guarani e Kaiowá ressaltam a fragilidade do sistema de saúde indígena na região

Com a pandemia de coronavírus, a RID viu aumentar a vulnerabilidade social de sua população. “São famílias que já não conseguiam emprego, e agora não conseguem fazer uma diária, estão parados. Eu acredito que isso vai afetar muito a comunidade. Está tendo aí essa ajuda emergencial do governo, mas isso vai acabar, e eu temo ter coisas ruins na comunidade. Com toda essa dificuldade ninguém vai parar em casa, vão procurar alternativas para buscar alimento”, afirma Neco. Para tentar minimizar a situação, a Secretaria Municipal de Assistência Social (Semas) de Dourados trabalha em um plano de contingência para auxiliar a população indígena e tem concedido cestas básicas para as famílias da reserva.

O avanço da pandemia na região ainda fez com que os Terena, Guarani-Kaiowá e Ñandeva de Dourados passassem a sofrer ainda mais preconceito dos não indígenas, sendo chamados de “pinguços e baderneiros” em redes sociais, além de ter seus benefícios sociais questionados. “Quando sai alguma notícia indígena, elas acabam tendo bastante relato nos comentários. É um vômito do pessoal da cidade em relação ao pessoal da aldeia”, conta a líder jovem Indianara. As ofensas virtuais estão investigadas pelo MPF.

Os indígenas da reserva de Dourados enfrentam também um problema sistêmico: na maior parte do tempo, não há água para lavar as mãos, procedimento fundamental para evitar o contágio da doença. “Em algumas regiões da aldeia têm faltado bastante. Depende muito da região, tem lugar que vem todo dia, mas determinado período. Tem região que vem a cada dois dias, tem outras que vem duas ou três vezes na semana. É muito difícil você encontrar uma área na aldeia que tenha água 24 horas por dia”, afirma Indianara, que trabalha como enfermeira na comunidade.

Fundamental para a contenção do coronavírus, o isolamento domiciliar dos casos positivos é um desafio para os indígenas da reserva de Dourados, já que muitos vivem em grandes núcleos familiares, com mais de dez pessoas em uma mesma casa. “Como você vai falar em isolamento se na casa que eles vivem tem a família inteira e o papagaio, tudo?”, questiona a antropóloga Maria de Lourdes Alcântara, coordenadora do Grupo de Apoio aos Povos Guarani-Kaiowá e Aruak (GAPK). “Esse protocolo não vai ser seguido pela população indígena. Eles têm a livre determinação, a consulta livre, prévia e informada. Pergunta se eles foram consultados?”, diz.

Os planos de contingência do estado, que tem a segunda maior população indígena do país, e do município, que tem a maior reserva do país, não incluem nenhum tópico sobre a saúde indígena. De acordo com Indianara, o plano de contingência do Dsei não contou com a participação ativa dos moradores da reserva. “O plano de contingência veio pronto de Brasília, e cada Dsei teria que adaptar a sua realidade. Mas não foi uma construção, foi de cima, Brasília”, ressalta a indígena.

Segundo Eliete Domingues, o Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi) teve participação. “Na elaboração, foi encaminhado para o conselho distrital, para que ele pudesse fazer sua participação, e foi encaminhado para os conselheiros locais, que são moradores dos territórios e que também fazem parte do comitê de enfrentamento local”, afirma a coordenadora, que ressaltou que as orientações do plano são “bem técnicas e protocolares”.

Logo após as primeiras confirmações na região, o Dsei disponibilizou o espaço da Casa de Apoio à Saúde Indígena (Casai) de Dourados, mas o rápido avanço da doença fez com que o local não suportasse a demanda.

A solução encontrada foi a cessão de um espaço pela Diocese de Dourados, a Casa de Cursilho, que tem capacidade para receber cerca de 80 pessoas e está sendo destinada àqueles que não têm condições de fazer o isolamento em sua própria casa. A limpeza e a logística estão sendo bancadas pela JBS, enquanto o atendimento de enfermagem é de responsabilidade da Casai. O espaço, entretanto, é distante da aldeia, e há alguma resistência entre os indígenas para permanecer no local.

Para Neco, cacique da aldeia Jaguapiru, é preciso que os órgãos públicos atuem mais incisivamente para frear o avanço da doença. A principal demanda do líder é por ajuda com transporte, alimentação e EPIs para que as equipes possam transitar pela reserva conscientizando a população. “A nossa necessidade mesmo é que a Funai, o MPF nos auxilie de verdade, não só no caderno, que às vezes está escrito que teve investimento, mas a gente não vê investimento nenhum aqui no lugar. Nós precisamos desse auxílio para poder alcançar os familiares e poder conscientizá-los”, diz.

Com os primeiros diagnósticos de indígenas em Dourados, o governo do estado ampliou a testagem nas aldeias, e desde então já foram testadas 420 pessoas. Se fosse um município, a reserva teria a quinta maior taxa de incidência de contaminados do estado, com mais de 540 casos por 100 mil habitantes. Dourados, por exemplo, tem 339 casos por 100 mil habitantes, enquanto o Mato Grosso do Sul tem 87,3.

Em 6 de junho, a Articulação para os Povos Indígenas do Brasil (Apib) falava em 2.390 indígenas de 93 povos que já se infectaram pelo coronavírus, com 236 mortes em todo o país. O número é maior do que o apresentado pela Sesai, que não inclui os indígenas não aldeados e contabilizava 2.328 casos e 85 óbitos em 9 de junho.

No Mato Grosso do Sul, a doença avança sobre o estado que é, por enquanto, um dos menos atingidos do país. No mesmo período, as confirmações de coronavírus passaram de 430 para 2.597 casos, um aumento de mais de 500% em 28 dias. São 24 óbitos no estado, dois deles em Dourados. Segundo um estudo da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), o estado pode registrar quase 120 mil casos até o final de julho e ter um colapso no sistema de saúde.

Colaborou: Anna Beatriz Anjos

Everson Tavares/Agência Pública
Larissa Fernandes/Agência Pública
Divulgação
Everson Tavares/Agência Pública
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