Dados inéditos revelam que o Brasil é o segundo maior comprador de agrotóxicos fabricados em solo europeu, mas proibidos para uso na União Europeia e Inglaterra. A prática já era conhecida, mas pela primeira vez se revela a importância do Brasil neste mercado. Foram 10 mil toneladas em 2018, e 12 mil em 2019. Mais da metade (77%) saiu da fábrica da Syngenta na Inglaterra, onde a empresa produz o agrotóxico paraquate.
O bloco autoriza a exportação de agrotóxicos que considera perigosos demais para aplicação na sua agricultura, mas tolera a importação de alimentos cultivados com estes produtos em outros continentes. “É o ciclo do veneno. Sabemos que esses agrotóxicos são perigosos, mas os vendemos e externalizamos os impactos de nosso próprio consumo. Enquanto isso, camponeses, indígenas e pessoas que vivem próximas ao campo sofrem no Brasil”, diz Laurent Gaberell, um dos autores do levantamento. Ele é pesquisador da Public Eye, organização suíça que monitora o comportamento de empresas do país. Os dados sobre venda de agrotóxicos foram obtidos pela organização em parceria com a Unearthed, braço de jornalismo investigativo do Greenpeace (veja dados completos em inglês).
A prática foi classificada como “discriminatória” e “uma contradição legislativa” por Baskut Tuncak, que foi relator especial da ONU para substâncias tóxicas de 2014 a julho de 2020. “A União Europeia não tolera esses agrotóxicos em seu território, mas, fora da União Europeia, diz que não é problema seu”, afirma Tuncak em entrevista à Repórter Brasil e à Agência Pública. Segundo o relator, essa situação só é permitida graças a “brechas legais” criadas para atender à indústria de agrotóxicos, que “segue violando direitos humanos fora da Europa”.
Apenas em 2018, foram mais de 81 mil toneladas autorizadas para fabricação na União Europeia e Inglaterra e venda a 85 países que não fazem parte do bloco. Os dados são de autorizações para exportação, por isso é possível que o volume efetivamente vendido seja menor.
São 41 tipos diferentes de agrotóxicos proibidos dentro do bloco europeu, mas autorizados para fabricação e exportação. Dentre os motivos que levaram a União Europeia a proibi-los estão evidências sobre sua relação com infertilidade, malformações de bebês, câncer, contaminação da água e toxicidade para animais, como as abelhas.
A Public Eye e o Unearthed usaram leis de acesso à informação para obter dados da Agência Europeia de Produtos Químicos e de órgãos do Reino Unido, Alemanha, Bélgica e França, onde ficam algumas das maiores fábricas de grandes produtoras, como Bayer, Syngenta e Basf.
“As empresas ficavam escondidas atrás do escudo da confidencialidade comercial. Pela primeira vez conseguimos acessar todas essa informações sobre 41 agrotóxicos”, afirma Gaberell, da Public Eye.
O apetite do mercado brasileiro para esses produtos fica atrás apenas dos Estados Unidos, que foi o campeão de compras. Mesmo com a relevância do mercado americano, o grosso das exportações é para “países mais pobres, onde acredita-se que esses agroquímicos danosos trazem maiores riscos”, afirma o relatório. Entre os maiores compradores estão Ucrânia, México e África do Sul.
“O que causa má formação genética na Europa também causa na Malásia. O que mata abelhas na Europa mata abelhas no Brasil ou na África do Sul. Mas as condições para aplicar a lei e controlar o uso são mais fracas nos países mais pobres”, diz Gaberell.
Ele lembra que o Brasil, a África do Sul e a Índia autorizam a pulverização aérea, algo que é proibido na União Europeia, ocorrendo apenas em situações específicas. Quando são aviões que despejam o químico, uma grande parte fica à deriva e pode alcançar rios e comunidades rurais no entorno da plantação.
Exportando os riscos
Os novos dados mostram que dentre os principais compradores de agrotóxicos proibidos na União Europeia estão os principais vendedores de alimentos para o bloco econômico: Estados Unidos, Brasil e Ucrânia. Ou seja, empresas europeias lucram vendendo agrotóxicos perigosos para que o seu alimento seja cultivado em outros continentes.
Isso ocorre porque o uso dos químicos em questão foram banidos por oferecerem risco aos trabalhadores rurais e ao meio ambiente. Mas, quando se trata de resíduos nos alimentos, o bloco fixa limites que são tolerados na comida importada.
Não são poucos os casos de alimentos brasileiros com agrotóxicos proibidos na Europa que chegam a mercados europeus. A ONG Pesticide Action Network analisou testes feitos em 770 frutas, legumes e grãos vendidos pelo Brasil à Europa em 2018. Desses, 97 tinham agrotóxicos proibidos ou de uso restrito na União Europeia.
De um total de 31 amostras de maçãs que vieram do Brasil e foram testadas, 24 tinham resíduos de agrotóxicos proibidos ou de uso restrito na Europa. Quantidades significativas também foram encontradas em outras frutas, como o mamão, a manga e o limão (veja a arte).
A análise da PAN ressalta que foram poucos os alimentos testados do Brasil, por isso, os resultados não representam todos os alimentos importados do país. “Mas os dados não deixam dúvidas de que a União Européia está comprando produtos proibidos para uso em seu território. Isso é hipocrisia”, afirma a toxicologista Angeliki Lyssimachou, uma das pesquisadoras que está trabalhando com os dados na PAN.
Este levantamento faz parte de um grande compilado realizado pela PAN, cuja equipe se debruçou sobre os testes toxicológicos realizados pelos países da União Europeia com amostras de alimentos coletados em mercados.
Carbendazim: a nova polêmica no Brasil
O agrotóxico proibido na União Europeia que mais apareceu nos alimentos brasileiros disponíveis nos mercados europeus foi o carbendazim. Ele estava em 64 dos 770 alimentos testados. Principalmente nas frutas: estava presente em 24 de 30 amostras de maçã, 19 de 112 amostras de mamão e 13 de 103 das de manga.
O carbendazim foi banido na Europa porque pode causar defeitos genéticos, prejudicar a fertilidade e o feto, além de ser muito tóxico para a vida aquática.
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No Brasil, ele foi o produto mais encontrado na comida segundo testes realizados pela Anvisa entre 2013 e 2015 dentro Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos. E o terceiro mais detectado entre 2017 e 2018. Nesta última, apareceu em 51% amostras de pimentão, 24% das de abacaxi e 18% das de manga.
Ele é utilizado no cultivo de laranja, limão, maçã, feijão, soja e trigo. Segundo o Ibama, 4,8 mil toneladas do produto foram compradas em 2018. Não há dados sobre a exportação deste produto da Europa para o Brasil em 2018 ou 2019, apenas da Europa para outros países.
O carbendazim promete ser a nova polêmica da vez no Brasil porque entrou em reavaliação, o que significa que pode ser proibido ou ter sua autorização renovada. A reportagem falou com advogados que trabalham na constituição do que será a “Força-Tarefa Carbendazin”, grupo formado pelas empresas fabricantes para defender a permanência do agrotóxico no mercado brasileiro.
No Brasil, 25 empresas detêm o registro de 102 produtos contendo este agrotóxico, dentre elas a Adama (empresa do mesmo grupo da Syngenta), a Bayer e a Nortox, maior fabricante brasileira de agrotóxicos.
Procurada pela reportagem, a Bayer afirmou que vai parar de vender carbendazim em todo o mundo até o final do ano (nota completa da Bayer). A Nortox não respondeu até o fechamento desta matéria.
Campeão de exportação na Europa e de mortes no Brasil
O produto proibido na Europa que mais teve autorizações para exportação para todo o mundo é um dos agrotóxicos com maior impacto no Brasil: o paraquate. Foram 32 mil toneladas, ou 40% do total das exportações da União Europeia de agrotóxicos proibidos em 2018. Também foi, de longe, o mais exportado para o Brasil: 9 mil toneladas autorizadas em 2018.
Este mesmo produto foi o agrotóxico autorizado no Brasil que mais tirou a vida de brasileiros na última década, segundo dados do Ministério da Saúde revelados pela Repórter Brasil e Agência Pública.
De acordo com o Ibama, foram vendidos no Brasil 13 mil toneladas em 2018. Ou seja, a produção da Syngenta que saiu da Inglaterra e veio para o Brasil correspondeu a 68% das compras deste químico no país.
Procurada pela reportagem, a assessoria de comunicação da empresa afirmou que não responderia às perguntas enviadas.
O paraquate foi proibido em 2007 na União Europeia, depois que pesquisas indicaram que a exposição ao agrotóxico está associada à doença de Parkinson. Embora proíba seu uso, a União Europeia permite a importação de arroz com até 0,5 miligramas de paraquate por quilo. Nos outros alimentos, o limite fixado é o mínimo que a tecnologia consegue detectar.
Devido aos riscos à saúde humana, o paraquate tem a mais alta classificação toxicológica no Brasil e está prestes a ser banido, com data final para proibição marcada para o próximo dia 22. Mas, depois de intenso lobby das fabricantes e dos produtores de soja, o órgão regulador passou a rediscutir a proibição, abrindo a possibilidade de que novos estudos sejam apresentados.
Em julho, a Repórter Brasil e a Agência Pública revelaram o lobby da chamada “Força-Tarefa Paraquate” para impedir o banimento. O principal argumento são duas pesquisas que, em tese, poderiam provar que a substância é segura, mas que não ficarão prontas antes da data para a proibição.
Após a reportagem revelar os conflitos de interesses envolvendo um dos estudos que estava sendo feito em laboratório da Unicamp, o Comitê de Ética da universidade suspendeu a autorização da pesquisa. Este estudo foi financiado pela Associação Brasileira de Produtores de Soja (Aprosoja) e, embora suspenso pela Unicamp, continua sendo citado pela associação em defesa do produto em reuniões da Anvisa.
A revisão do paraquate chegou a ser proibida pela Justiça, mas a Anvisa ganhou recurso e voltou a incluí-la na pauta da diretoria colegiada. A próxima reunião que pode decidir o assunto será nesta quarta-feira (15).
A discussão mobiliza organizações de diversas esferas. A Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida reuniu mais de 200 assinaturas de organizações, deputados e até de universidades pedindo que a Anvisa mantenha a proibição do paraquate.
Mais riscos
Além do paraquate, há outros cinco agrotóxicos que são proibidos na Europa e que tiveram a fabricação na Europa para venda no Brasil autorizada em 2018. O propargite, produzido pela Arysta (empresa de propriedade de um conglomerado indiano que tem fábricas na Europa) foi proibido na União Europeia em 2011 por ser considerado extremamente tóxico quando inalado, tóxico para a vida aquática, ter potencial de causar sérios danos aos olhos, além de haver indícios de que causa câncer. Em 2018, foram autorizadas vendas de 600 toneladas do produto para o Brasil. Em 2019, 608 toneladas.
A cianamida, produzido pela alemã Alzchem, é um regulador de crescimento vegetal que foi proibido em 2008. Em contato com a pele, causa queimaduras severas, danos aos olhos, e há indícios de que causa câncer. Além de prejudicar a fertilidade e o feto, provoca danos aos órgãos internos com a exposição prolongada, e também é danoso à vida aquática. Em 2018, foram autorizadas vendas de 460 toneladas do produto.
“Ele foi proibido na União Europeia porque as autoridades concluíram que é impossível proteger-se durante sua aplicação, mesmo usando luvas, máscaras e outros equipamentos”, afirma o toxicologista Peter Clausing, membro da seção alemã da PAN (Rede de Ação Contra Pesticidas).
Há ainda três químicos produzidos pela Bayer e vendidos ao Brasil: o etoxissulfurom, a ciflutrina, e o tiodicarbe.
Questionada sobre a prática das empresas continuarem vendendo produtos proibidos na Europa devido aos riscos à saúde, a CropLife (associação que representa a maiores fabricantes de agrotóxicos do mundo como Bayer e Syngenta), respondeu que respeita as particularidades de cada país. “Cada país tem suas particularidades de solo, clima e pragas, além de seus mecanismos de aprovação, regulamentação e fiscalização de uso de defensivos químicos. Os membros da CropLife Brasil obedecem contextos locais, que são diferentes de uma região para outra, e nem por isso menos rigorosos” (resposta na íntegra).
“É importante ressaltar que os produtos autorizados em outros países não são automaticamente autorizados no Brasil”, afirmou em nota o Sindiveg (Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal), que representa também as fabricantes brasileiras como a Nortox e Ourofino Agrociência. O grupo argumenta ainda sobre as diferenças de clima entre os continentes. “O ataque de pragas no Brasil é mais severo por conta das condições climáticas de um país tropical, com temperaturas mais altas e ambiente mais úmido”, diz a nota (leia na íntegra).
As diferenças entre os ambientes também foi ressaltada pelo pesquisador Christopher Portier, ex-diretor do Centro Nacional para Saúde Ambiental e da Agência para Registro de Substâncias Tóxicas e Doenças dos Estados Unidos “Existem diferentes pragas em diferentes partes do mundo. Se um país tem uma praga de gafanhotos que ameaça sua segurança alimentar, pode considerar necessário comprar agrotóxicos que outros países proibiram porque não têm esse tipo de problema”, afirma.
Ele diz, porém, que esse tipo de situação só se aplica em casos excepcionais e que esse argumento “é excessivamente evocado pelas empresas produtoras de agrotóxicos. Um produto como o paraquate provavelmente deveria ser controlado”.
Pressão sobre a Comissão Europeia
Com o lançamento do relatório com os novos dados, a Public Eye pretende mobilizar a opinião pública contra a prática. Em resposta à organização, a Comissão Europeia afirma que a Convenção de Roterdã (da qual Brasil é signatário) traz regras contra a exportação de agrotóxicos proibidos. “A Convenção é construída sob o princípio de que cabe aos países importadores decidirem se querem ou não importar agrotóxicos listados”.
Outro exemplo é a Convenção Bamako, ratificada por 25 países africanos. Com o objetivo de impedir a transferência de lixo tóxico, a convenção barra substâncias proibidas nos países de origem, como os agrotóxicos.
“É a regra de não importar nada que o país exportador não venderia a si mesmo”, afirma Portier. “Os países estão controlando o que querem e protegendo sua própria população”.
No horizonte do Brasil, porém, não há iniciativas neste sentido. Sob o governo Bolsonaro, a Anvisa liberou mais produtos agrotóxicos do que qualquer outro governo. Neste momento, o órgão debate até rever a proibição do paraquate, o produto mais importado da Europa dentro da prática denunciada pelas organizações.