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Apenas um partido, o PSOL, tem mais de 2% de candidatos que declararam deficiência. Mulheres são minoria

Dados
9 de novembro de 2020
12:00
Este artigo tem mais de 3 ano

Nas últimas semanas, Jossely Oliveira, de 37 anos, chega extremamente cansada em casa. Cinco vezes por semana, até as 19h, ela tem se dedicado à campanha eleitoral nas ruas de Patos, cidade do sertão paraibano, onde quer se eleger vereadora. O cansaço de Jossely tem uma razão além das muitas horas de campanha: ela é portadora de síndrome de Asperger, um tipo de transtorno do espectro autista (TEA), que gera esgotamento excessivo por dificuldade de socialização.

Jossely é uma entre os 6.584 candidatos que afirmaram ter alguma deficiência ao se registrarem para as eleições de 2020 – apenas 1,2% do total de candidatos que concorrem neste ano. Os dados são um levantamento da Agência Pública com base em informações enviadas com exclusividade pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Segundo o TSE, esta é a primeira vez que as eleições brasileiras incluíram a autodeclaração de deficiência no registro de pedidos de candidaturas. O preenchimento, no entanto, é opcional, assim como a informação de raça/cor. A condição mais frequentemente declarada foi deficiência física, em quase metade dos casos. Em seguida, estão deficiência visual e auditiva e, a menos frequente, aquela em que se enquadra Jossely: o autismo. Cerca de um terço afirmou ter outros tipos de deficiência, sem especificação.

Os partidos com maior quantidade de candidatos PcD (Pessoas com Deficiência) em relação ao total de candidatos são o Psol (2,03%), Rede (1,88%) e PMN (1,75%). Com menos são o PDT (0,99%), DC (0,9%) e Novo (0,8%). Já PCO e PCB não registraram nenhum nome. A maioria dos candidatos com deficiência são homens, 74,6% do total; mulheres são 25,4%.

Por causa da síndrome de Asperger, Jossely utiliza um roteiro de falas para facilitar a abordagem de pessoas nas ruas. Além de ser PcD, ela é mãe de Lucy, 10 anos, e Alberto, 3, ambos autistas – a menina em um nível severo, o caçula apenas com o diagnóstico confirmado recentemente. Jossely utiliza o Centro Especializado em Reabilitação (CER) e o Centro de Atenção Psicossocial (Caps) para fazer o acompanhamento dos filhos, mas não para se consultar nesses serviços, que são exclusivos para menores de 18 anos.

Segundo ela, a decisão de concorrer pela primeira vez ao cargo de vereadora é, em parte, para quebrar estigmas e superar a baixa representatividade política de pessoas com deficiência. “O que torna a deficiência uma deficiência são barreiras impostas a nós. Se existir um grau de suporte e acessibilidade, a deficiência ou a severidade [da deficiência] pode ser reduzida. Se não tiver quem compreenda essa realidade, quem vai legislar por nós?”, indaga. 

Jossely Oliveira, candidata a vereadora pela Unidade Popular, descobriu ser autista aos 33 anos

Jossely é presidente licenciada da Associação de Pais e Amigos dos Autistas de Patos e Região (Aspaa) e descobriu ser autista aos 33 anos, quando soube do diagnóstico de Lucy e encontrou traços autísticos similares em si própria. Depois de pesquisar sobre o tema, visitou médicos especializados em Patos, mas disseram se tratar de ansiedade ou depressão, o que resultou em uma lista de remédios. Ela conseguiu o laudo após uma troca de e-mails com uma psicóloga inglesa também autista, que escreveu uma carta em que afirmou a importância da revisão do transtorno pelos especialistas do Brasil.

Caso eleita, ela defende a instalação de salas de atendimento educacional especializado (AEE) nas escolas públicas, para aliviar a sobrecarga de professores com a inclusão de psicólogos, terapeutas ocupacionais e fonoaudiólogos. Ela também propõe concurso para novos profissionais para atendimento especializado a PcDs, criação de redes de apoio para  pais e mães com filhos com deficiência e a implementação de uma Secretaria de Inclusão.

Jossely, que concorre pelo partido Unidade Popular (UP), não declarou nenhum bem em sua campanha, e sua candidatura recebeu R$ 645 em doações, segundo dados do TSE apurados no dia 4 de novembro. 

Em 2018, apenas dois candidatos com deficiência foram eleitos no país

O Censo de 2010 apontou que 24% da população no Brasil tem algum tipo de deficiência, cerca de 45,6 milhões de pessoas. O cálculo incluiu pessoas que descreveram alguma dificuldade em realizar atividades como enxergar, ouvir, caminhar e subir degraus, e a maioria delas relatou alguma dificuldade visual.

Em 2018, contudo, o IBGE fez uma releitura desses dados utilizando critérios do chamado Grupo de Washington, formado por representantes e estatísticos das Nações Unidas. Segundo esse novo recorte – que considera apenas quem relata muita dificuldade ou incapacidade total para as mesmas atividades levantadas no Censo –, são 12,7 milhões de brasileiros com deficiência, 6,7% da população. A Pesquisa Nacional de Saúde de 2013 também estimou números similares: 12,4 milhões de pessoas com deficiência no Brasil.

Apesar de milhões de brasileiros serem classificados nas pesquisas como pessoas com deficiência, nas últimas eleições, de 2018, apenas dois candidatos com deficiência foram eleitos: o deputado federal Felipe Rigoni (PSB-ES), deficiente visual, e a senadora Mara Gabrilli (PSDB-SP), tetraplégica.

Segundo dados do TSE, em 2020, dos quase 148 milhões de eleitores brasileiros, 1,1 milhão declarou possuir alguma deficiência. 

Para Leila Lima, militante e cientista política formada pelo Centro Universitário Internacional (Uninter) de Curitiba (PR), apesar de avanços significativos na legislação brasileira, a baixa representatividade de PcDs na política é resultado do capacitismo estrutural, não da deficiência em si, e políticos que não são PcDs precisam se comprometer a atuar por essa parte da população para que pessoas com deficiência cheguem à política.

“[A representação política de PcD] deveria ser um pensamento diário, uma forma de reavaliar como nós entendemos o ser humano na sua diversidade, nas suas condições, e como nós reproduzimos isso em nossas leis e projetos de política pública”, acrescenta. Se você tem um representante, ele não é uma pessoa com deficiência e não tem essa pauta, é preciso lembrá-lo. Todos os espaços que a gente ocupar, lembrar de questionar a inclusão: esse projeto vai garantir que a pessoa com deficiência tenha igual oportunidade? Ou é viável apenas para quem não tem nenhuma deficiência?”

Leila conta que historicamente o movimento das pessoas com deficiência no Brasil começou ligado à área da saúde, de centros de reabilitação, mantidos por iniciativa não governamental. No século 20, começaram a surgir políticas públicas assistencialistas, mas não de inclusão, que exploravam mais o modelo biomédico, pesquisando causa e cura, ou de integração, que normalizavam as mais diversas condições para encaixar todos em um padrão exigido pela sociedade. Só no final dos anos 1970 é que ganhou espaço a exigência de políticas públicas que assegurassem a sua cidadania.

Projeto para cotas está parado no Congresso, mas candidatos com deficiência divergem sobre lei

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 34/2016, apresentada pelo senador Romário (PSB-RJ), reserva vagas de deputado e vereador a pessoas com deficiência. O parlamentar tem uma filha com síndrome de Down. O texto, apresentado em julho de 2016, ainda espera a escolha de um relator na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ). A única atualização sobre o processo é de dezembro de 2018 e diz que “a proposição continua a tramitar” na CCJ.

A implementação de cotas, contudo, não é unanimidade entre candidatos com deficiência. 

Candidato a vereador em São Paulo pelo PSDB, o administrador Vinicius Schaefer, de 36 anos, discorda. “A pessoa pode se candidatar porque tem lei que a obriga, mas não alcançaria um nível relevante de votos. Se houvesse também um número mínimo de PcD na Câmara de Vereadores, ficaria complicado, porque a pessoa poderia não ter formação para representar esse grupo. Aliás, a cota traz um pouco aquela ideia de que a pessoa é coitada e não é capaz”, critica.

O paulista Vinicius Schaefer, candidato a vereador por São Paulo pelo PSDB, nasceu surdo

Schaefer nasceu surdo, fundou a Associação dos Surdos de São Paulo (ASSP) e tenta pela segunda vez a vitória nas eleições municipais – em 2016, chegou a quarto suplente pelo mesmo partido. Ele realiza entrevistas junto ao intérprete de libras, Tadeu Almeida. O paulistano não declarou nenhum bem ou nenhuma doação na campanha de 2020. 

Por outro lado, Thays Martinez, que concorre como vereadora em São Paulo pelo Cidadania, é favorável a cotas. Ela perdeu a visão ainda criança, aos 4 anos, após ter contraído uma infecção de retina causada pela caxumba. “É uma medida que acelera o processo de equiparação [com minorias sociais]. Esse projeto de cotas tem que ser mais amplo e acompanhado de medidas para que em algum momento não precisemos mais delas no futuro. Mas não vejo isso acontecendo no Brasil”, lamenta.

Formada em direito pela Universidade de São Paulo (USP), Thays tentou se eleger pela primeira vez em 2006, como deputada federal pelo PV. Ela inspirou a criação de duas leis no início dos anos 2000, uma no estado de São Paulo (nº 10.784) e outra federal (nº 11.126), que permitem o acesso de cães-guias a locais públicos e privados. Isso ocorreu depois que ela foi proibida por funcionários do Metrô de entrar na estação com Bóris, seu cão-guia, porque animais não eram permitidos naquele espaço. Em 2020, Thays declarou R$ 24 mil em bens e R$ 58 mil em recursos recebidos para a sua campanha. 

Thays Martinez é candidata a vereadora pelo Cidadania em São Paulo

Para Dylson Bessa, historiador e coordenador do Fórum Maranhense das Entidades de Pessoas com Deficiência e Patologia, eleger candidatos com deficiência é importante para garantir a representatividade em espaços políticos, além de romper com a invisibilidade e enfrentar o capacitismo. “É importante ter representação em qualquer espaço, ainda mais se for de referência, em lugares em que a pessoa possa servir de inspiração, apoio e força para que outras busquem também ocupar espaços políticos”, explica Bessa.

Maior parte dos candidatos com deficiência disputa vaga de vereador

No Brasil, a maioria das candidaturas de pessoas com deficiência é para vereador. Segundo apuração da Pública, 92,6% dos candidatos PcD em 2020 concorrem a cargo de vereador, enquanto 3,8% para prefeitos e 3,6% a vice-prefeitos. A empresária Meirinha Valle, de 72 anos, faz parte do último grupo, depois que decidiu concorrer a vice-prefeita de Goiânia (GO) pelo PSDB. 

Meirinha Valle representa os pouco mais de 3% candidatos a vice-prefeito no Brasil

Ela, que ficou paraplégica após uma anestesia mal aplicada em uma cirurgia de obstrução intestinal em 2007, já foi duas vezes vereadora por Porangatu, em Goiás, presidiu o PSDB-Mulher em Goiás e assumiu a Casa Civil do estado. Ao TSE, informou bens avaliados em R$ 162 mil, incluindo, por exemplo, casa, automóvel e depósito em conta bancária. Porém, não há registros de prestação de contas à Justiça Eleitoral.

Meirinha conta à reportagem que acompanha o candidato a prefeito Tales Barreto em todas as visitas por Goiânia. Mas sentiu a dificuldade de percorrer a cidade onde vive – faltam sinalização nos semáforos e piso tátil direcional e as calçadas são irregulares, por exemplo. “Não é fácil fazer essa campanha diante de todas as dificuldades. Sem estrutura e acessibilidade, como é que você faz?” Entre suas propostas, ela defende a capacitação de qualificação de escolas e empresas e incentivo ao esporte para paratletas de Goiânia. 

Aplicar o lema “nada sobre nós, sem nós” na vida política é um dos motivos que levaram a advogada Priscilla Selares, de 38 anos, a concorrer nas eleições 2020. A expressão é um lema da luta pela inclusão, repetido por militantes com deficiência, que pede que qualquer decisão a respeito das pessoas com deficiência deva ser tomada com a participação e a opinião delas.

Priscilla Selares se candidatou pelo Podemos em São Luís, capital do Maranhão

Priscilla perdeu quase toda a visão aos 18 anos por causa de um acidente vascular cerebral (AVC) enquanto cursava direito na Universidade Federal Fluminense (UFF), no Rio de Janeiro. Foi também ali que começou a se dedicar à defesa dos direitos da pessoa com deficiência. Carioca, filha de maranhense e casada com maranhense, há seis anos se mudou para São Luís (MA).

“É a primeira vez que sou candidata [a vereadora]. Nunca tinha pensado em ser candidata de nada, a nenhum cargo do poder legislativo e nem executivo. Mas as coisas foram acontecendo em razão da própria militância”. Priscilla declarou ao TSE que não possui bens em seu nome e que recebeu R$ 30 mil de recursos do Podemos, seu partido, para a campanha.

Ela diz ter decidido concorrer para incentivar outras mulheres, com deficiência ou não, a ocupar espaços políticos de poder e decisão e por acreditar que seu conhecimento e militância possam fazer a diferença no exercício da função de vereadora. Ela promete criar um plano municipal de acessibilidade, concessão de incentivos fiscais para que donos de imóveis façam adequações necessárias, isenção de tributos municipais para mulheres e pessoas com deficiência empreendedoras durante os primeiros anos do negócio, cotas em concursos municipais para cargos efetivos e comissionados para mulheres, negros(as), pessoas com deficiência, indígenas e LGBTQI+, entre outras propostas.

Em meio à polarização política, Meirinha acredita que esquerda e direita podem trabalhar juntas pelas pessoas com deficiência. “Temos que unir forças porque só assim cresceremos, se deixarmos as diferenças de lado e fazer um trabalho conjunto. É algo meio utópico de se dizer, mas se conseguirmos chegar a esse fator comum, vamos alcançar inúmeros objetivos”, diz.

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