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Mortes no Complexo do Salgueiro reforçam a pesquisa de Terine Husek Coelho de que quando morre um policial em serviço a chance de civis morrerem no mesmo dia aumenta em 1150%

Entrevista
30 de novembro de 2021
17:52
Este artigo tem mais de 3 ano

No último dia 20, o Rio de Janeiro amanheceu com mais uma operação sangrenta da Polícia Militar. Após uma incursão do Batalhão de Operações Especiais (Bope) da PM fluminense, ao menos nove pessoas foram mortas no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo (RJ) em uma ação que durou por volta de 35 horas e onde foram disparados, segundo noticiou o programa Fantástico, da TV Globo, 1500 tiros. 

A operação teve início duas horas depois da morte do sargento da PM Leonardo Rumbelsperger da Silva, de 40 anos, que foi morto enquanto fazia um patrulhamento de rotina na região. Moradores do Salgueiro encontraram os corpos em um manguezal próximo ao local e, segundo relatos, os corpos traziam marcas de tortura.

O episódio soma-se a uma longa lista de operações policiais que ocorrem no Rio de Janeiro logo após a morte de policiais em serviço e que, frequentemente, são muito letais. Alguns exemplos são as mortes ocorridas no Jacarezinho, em maio deste ano, a segunda maior chacina da história do Rio segundo a ONG Fogo Cruzado, quando 25 pessoas foram mortas após uma operação da Polícia Civil do Rio de Janeiro. Durante uma incursão para cumprimento de diligências policiais, o policial civil André Frias foi morto e na sequência 24 pessoas foram mortas. Outro episódio notável ocorreu em junho de 2013, quando as manifestações de rua tomaram o país e o Rio de Janeiro, e a Polícia Militar realizou uma operação no Complexo da Maré em resposta à morte de um sargento do Bope. Dez pessoas morreram na ocasião. Em 2007, o Rio testemunhou a chamada “Chacina do Pan”, quando 19 pessoas foram mortas no Complexo do Alemão após uma operação que mobilizou 1200 policiais em decorrência da morte de dois policiais dias antes do início dos Jogos Pan-Americanos. Nos anos 1990, 21 pessoas foram mortas na Chacina de Vigário Geral em resposta à morte de quatro policiais.

Terine Husek Coelho, pesquisadora do Instituto Igarapé, mestre e doutoranda em Ciências Sociais pela UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) apontou em sua pesquisa de doutorado a correlação clara entre a vitimização de policiais em serviço e o aumento da letalidade policial na mesma região após a realização de operações policiais. Dados de sua pesquisa mostram que quando um policial morre em serviço, a chance de um civil ser morto no mesmo dia aumenta em 1150%. No dia seguinte, aumenta em 350%. Na semana seguinte, em 125%. São os efeitos das chamadas “operações-vingança”, termo com que foram batizadas essas operações feitas para supostamente dar uma resposta às mortes de policiais em serviço. Terine, porém, rejeita o termo. “Eu até uso muito pouco esse termo. Porque dá a impressão de que quando você fala esse termo parece que são policiais que estão se vingando ali por conta própria, mas eu tento jogar a responsabilidade para cima”, diz, em entrevista à Agência Pública.

Para ela, o comando das instituições policiais também endossa esse tipo de operação de resposta que, segundo ela, é inócua. “Esse efeito fica se alimentando. A vitimização policial é um jeito da polícia matar mais, mas também morrer”, afirma.

A seguir, os principais trechos da entrevista. 

Você aponta em sua pesquisa uma correlação clara entre a vitimização e a letalidade policial. O que explica a existência das chamadas “operações vingança”?

Eu tinha trabalhado na Secretaria de Segurança Pública aqui do Rio de Janeiro por um tempo antes de entrar para o mestrado e eu já vinha de São Paulo um pouco com essa ideia. Em São Paulo, conversei com um coronel que me disse assim: “Quando um policial morre, eu perco um pouco o controle da minha tropa”. Isso me chamou a atenção. Eu falei: ‘bom, tem um fenômeno aí que quando um policial morre, os policiais tendem a matar mais”. Então a gente foi fazendo uma análise de série temporal e ficou observando o comportamento da letalidade policial em diversas áreas e a gente coloca um fenômeno diferente [no estudo], que é a vitimização policial. Ou seja, queríamos saber: quando um policial morre, a letalidade altera de alguma forma? O que acontece é: quando a gente olha pro estado inteiro, ela não muda. Ou seja, quando ocorre a morte de um policial, isso não vai fazer com que todos os policiais matem mais. Se essa morte for na folga, só vai ter efeito na letalidade policial se for um policial de muito vulto, um capitão, algum policial que tenha algum apelo. Geralmente, essas mortes na folga são roubos seguidos de morte, ou quando o policial está num bico. Em geral, apesar dos policiais morrerem mais na folga, isso não tem efeito na letalidade. Mas esse policial que morre em serviço, fardado, isso geralmente impacta. O dado me diz isso. Então, a partir da leitura dos dados, eu fui atrás dos policiais. Queria entender tanto o que acontece para o próprio policial, quanto o que acontece na unidade. Entrevistei tanto policiais que estavam em uma ocorrência e viram um colega ser morto como conversei com os comandantes dessas unidades.

E o que surgiram dessas conversas com os policiais?

A dissertação tem o nome de “Medindo Forças”, e eles vão me contar em geral que se acontecer uma morte na área deles, eles têm que mostrar que são fortes, que a polícia está no comando e que têm condições de reagir a essa morte. Eles se posicionam dessa maneira. É um pouco dessa resposta institucional. Eles falam assim: “Se eu não der uma resposta, a minha tropa vai achar que eu não respondo. E elas esperam que eu faça alguma coisa. Os familiares também esperam que eu faça alguma coisa”. E esse fazer alguma coisa geralmente se traduz, aqui no Rio de Janeiro, especificamente, com mais força, numa operação policial. E numa megaoperação. Não é uma operação com dois homens, é uma megaoperação para mostrar que a polícia tem condições de reagir e que não vai se atirar na polícia em vão. 

O que acontece com um policial quando ele perde um colega? Aquilo ataca, tem uma dor, você tá perdendo um colega de trabalho do seu lado. Ou seja, quando ele morre, gera uma revolta na tropa. Somos todos humanos e, humanizando um pouco o policial, isso vai acontecer. 

Se eu não tenho uma estratégia para controlar a tropa, que resposta eu dou para essa tropa? Ela precisa de uma megaoperação? Você tem que acalmar a tropa de alguma forma e eles colocam eles com todo um arsenal ali e fazem essas megaoperações com uma tropa muito descontrolada. O efeito disso são ações muito letais como a que a gente teve na Maré, em 2013, quando um sargento do Bope morreu no período das manifestações, ou a que a gente teve na Chacina do Pan, em 2007. 

É natural a reação emocional dos policiais que perderam colegas. Mas o comando da corporação parece entrar nessa mesma postura de dar o aval a essas megaoperações de resposta nesse momento. Qual deveria ser a postura do comando nessa situação? E como você vê essa questão do envolvimento do comando? 

É bem essa a questão que eu tentei colocar na minha dissertação. Até uso muito pouco esse termo “operação vingança”. Eu tento tirar um pouco isso. Porque dá a impressão de que quando você fala esse termo parece que são policiais que estão se vingando ali por conta própria, mas eu tento jogar a responsabilidade para cima. Você enquanto a cabeça pensante, você sabe o que vai acontecer e você tem que tentar controlar a situação. Você sabe que o policial vai ficar revoltado. E o importante é saber que estratégia você tem para que essa revolta não se transforme em mais mortes. E que não seja multiplicação de dor. Porque isso não tem efeito. Isso tem efeito simbólico no policial de dizer que deu uma resposta. Mas essa não deveria ser a postura da polícia. A gente tem uma lei, a gente tem uma legislação a seguir, a gente tem caminhos que podem ser muito mais efetivos para a proteção policial do que a gente dar uma resposta desse tipo. Em uma das falas em uma UPP que eu fui fazer entrevista, a situação foi contrária. O Bope foi e matou um dos meninos dentro da comunidade e aí o tráfico foi na UPP matar um policial na frente. E era perto do carnaval e o comando falou: “Eu não posso fazer uma operação agora porque vai matar muita gente, tem muita gente na rua”. Segurou a tropa ali, mas ele precisou dar uma resposta àqueles policiais que estavam muito revoltados. Então tem umas puxadas de comando que acontecem muito pontualmente. 

E o caso no Salgueiro?

No Salgueiro fica muito claro isso, o policial morreu às seis e meia da manhã se não me engano. A operação começa às oito horas da manhã. Não houve tempo suficiente para saber se, de fato, a pessoa que matou o policial estava dentro da comunidade. Não tem informação suficiente. Eles entram com base em pouquíssimas informações, e levantar essas informações não é papel da Polícia Militar, é responsabilidade da Polícia Civil. Ele entra na comunidade para fazer essa comunidade pagar a conta da morte desse policial. A gente não sabe se essas pessoas que morreram têm a ver ou não com essa morte e a própria polícia em geral não sabe. Na minha pesquisa, eu perguntei para os policiais: “mas vocês sabem quem matou? Tem investigação a respeito?” A resposta geralmente é não. Você não tem um programa efetivo de prevenção da morte de outros policiais. Você não tem investigações sérias e pessoas que são individualmente responsabilizadas por essas mortes.

A gente tem uma megaoperação que dá ali visibilidade, um dia ou uma semana depois, que dá essa resposta e depois nada mais acontece. Volta-se à vida normal e espera-se a próxima morte para voltar ao ciclo. E isso vai se alimentando. Alguém mata um policial, a polícia mata mais. O comando deveria ser a pessoa responsável por esse caso e dizer: “bom, se um policial morre, onde eu coloco a minha energia?”. Não é colocando os policiais numa megaoperação que vai dar certo. Isso vai gerar mortes, mas nada além disso. A gente vai ter esses casos se repetindo várias vezes. Isso é efetivo? Quando eu pergunto [aos comandantes] como eles fazem para prevenir que outras mortes de policiais aconteçam, eles me respondem: “Eu faço uma megaoperação”. Como se isso fosse prevenir outras mortes, mas não previne. Se não, a gente não teria outras histórias para contar. E é sabido que isso acontece. As pessoas sabem que quando morre um policial vai ter uma operação com muitas mortes na sequência. Isso não previne que um policial seja morto dias depois, meses depois. 

Por onde deveria passar esse protocolo de atuação em caso de mortes de policiais? Como deveria funcionar isso?

O primeiro ponto seria entender a real efetividade de uma megaoperação nesses casos. É importante ter o acompanhamento das mortes dos policiais. Entender o que aconteceu não em uma morte só, mas em muitas. Onde o policial morreu, por que morreu, como aconteceu, em que tipo de operação. A informação sobre a vitimização de policiais é muito baixa. Você tem pouquíssimas informações sobre essas mortes de policiais.

 A partir do momento em que morre um policial, você tem que ter uma intervenção. Você tem que ter psicólogos entrando no local e não é que não tenha, porque a Polícia Militar do Rio é a que mais tem psicólogos entre os seus quadros e eles tem um projeto efetivo de ir atrás de familiares. Existe um programa que dá suporte pra isso. Mas é preciso entender que quando você tem uma ocorrência, não só aqueles policiais mais próximos que vão ser afetados por isso. Mas é preciso entender que colocar eles armados na sequência em uma megaoperação é um desastre. Conversei com um policial que esteve em mais de uma ocorrência que teve letalidade. E ele me disse que ficou muitos e muitos meses revoltado, que não teve atendimento psicológico. Primeiro colocaram ele para trabalhar na mesma área. Ele se descontrolou. Aí deram férias compulsórias a ele. Mas ele me falou: “uma hora eu vou voltar pra rua e vou fazer alguém pagar essa conta”. Isso não é uma coisa que vá ser resolvida hoje, é um acompanhamento que será necessário durante muito, muito tempo. Esse é um problema da política de segurança como um todo, que é uma política de confronto. Esses policiais que participaram dessa megaoperação agora [do Salgueiro], essa megaoperação que deixou nove pessoas mortas. Isso tem um efeito sobre o policial. A polícia costuma negar esse efeito, dizer que o policial é forte. Mas se você não consegue acompanhar esse efeito, essas mortes vão se reproduzindo aqui e ali. E você fica nessa política de letalidade que a gente tem no Rio de Janeiro, a gente não consegue sair desse ciclo. 

Em evento na Assembleia do Rio na última quinta-feira (25), o governador Cláudio Castro afirmou sem provas que “se as pessoas estavam camufladas no mangue, certamente coisa boa não estavam fazendo”

Você demonstra basicamente na sua pesquisa que reduzir a vitimização de policiais poderia ter efeitos positivos em termos da redução das mortes causadas por policiais. De que forma poderia-se prevenir a morte de policiais?

Eu trabalho com Segurança Pública desde 2008 e eu trabalho conversando com a polícia. Eu não sou dessas radicais do meio que não conversa com a polícia. Acho que a saída sempre é olhar a instituição policial. Você consegue enxergá-la e entender todas as dificuldades que existem no fazer policial. É muito simples a gente de fora dizer que o policial não pode matar. É óbvio que não pode matar. Mas é preciso entender quais são essas situações nas quais ele perde o controle, tentar entendê-lo como humano também. Por um lado, é preciso ter um olhar muito forte sobre vitimização e sobre a valorização policial como um todo. A vitimização é a ponta. Tem histórias e histórias por trás dessa vitimização. Você tem a política de confronto, tem como você expõe o policial ao risco muitas vezes. Por exemplo, você teve a operação no Jacarezinho, a última mais letal do Rio de Janeiro, que foi uma operação super pensada, que a Polícia Civil diz que fez dez meses de investigação para entender o que estava acontecendo ali antes de fazer a operação. A operação começa com a morte de um policial. Em minutos de operação. Quer dizer, você fez dez meses de investigação e o primeiro a morrer é o policial? Você não pensou que ia haver confronto? A responsabilidade do confronto é só de quem atira do outro lado, não é sua também? Claro que a gente tem um crime organizado muito forte. Mas a postura que a polícia se coloca diante desse cenário, essa guerra às drogas, isso gera a morte do policial e tem efeitos pra dentro da polícia. E você tem policiais trabalhando em condições muito precárias, sem estrutura física ou psicológica, que vai vendo situações muito fortes no seu dia a dia de trabalho sem ter protocolos claros de como ele atua em diferentes áreas para ser protegido. Isso tudo também resulta em vitimização.

Outro efeito que existe. Eu fui conversar com um comandante da UPP e ele me disse: “Eu sou viciado em conflito, em tiroteio”. Isso é um efeito que tem. Ele me disse assim: “Eu tô em casa, alguém me manda uma mensagem avisando que tá tendo conflito, eu saio de casa e venho pra cá”. Ele me disse que já chegou a rir em tiroteio. É uma maluquice que ele entrou por conta desses confrontos, ele vai procurar os confrontos. Isso é um efeito psicológico gerado por uma atividade tão complexa como é ser policial no Rio de Janeiro. É preciso entender as complexidades e conter esses efeitos. Um policial que procura conflito não pode ser subcomandante de uma unidade. Como ele tá lá? Como ninguém consegue observar? Outro ponto: a polícia dá medalhas por bravura. A gente fez um levantamento no Igarapé de promoção de policiais por bravura em 18 estados. Não importa a formação que ele tem, quanto tempo de instituição, ele pode ser promovido por bravura. A bravura é um ato de heroísmo que pode dar muito certo, mas pode dar muito errado.

Óbvio que a profissão policial exige coragem em algum nível, mas se você diz que se ele fizer um ato heróico ele será premiado é você dizer que ele pode se enfiar numa situação extremamente de risco e morrer esperando a promoção por bravura. Se você não premia o outro policial, que consegue mediar conflitos, que consegue diminuir a tensão de uma área.. Um ato de bravura que pode ser ele conseguir prender ou, no linguajar deles, “eliminar” alguém, isso pode ter volta. E esse efeito fica se alimentando. A vitimização policial é um jeito da polícia matar mais, mas também morrer. E esse entendimento é muito pouco claro ainda. Eu não tive fôlego para continuar a pesquisa, mas seria interessante entender também o outro lado da minha pesquisa: como o aumento da letalidade policial, das mortes causadas por policiais, levam também ao aumento da vitimização de policiais. São mortes que ficam se alimentando, o que é horrível, em um cenário em que no final a gente tá procurando segurança. E a política de segurança deixa a gente com muito mais medo no final.

Reprodução
Julia Passos/Alerj

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